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Migrantes e Refugiados: Marco Jurídico e Estratégia no Limiar do Século XXI+

Guilherme da Cunha*

Meu país não está na geografia, está no tempo. Aqueles que vivem quando eu vivo são meus compatriotas e o que fizermos desse tempo será nossa medida.

Roberto Matta, pintor chileno radicado em Paris.

Introdução

A reflexão de Matta ilustra perfeitamente a visão maior ou do sistema das Nações Unidas sobre os problemas que afetam o conjunto da humanidade. Ela enfatiza a importância da responsabilidade dos cidadãos e dos governos diante dos problemas transnacionais do mundo contemporâneo.

O final da guerra fria e a bipolaridade do poder mundial significaram mudanças radicais nas relações internacionais. Vivemos, hoje, um momento de ruptura histórica, de transição entre uma ordem internacional que deixou de existir e uma nova ordem cuja natureza, valores e projeto de civilização ignoramos. Nessa viagem interminável, navegamos, por assim dizer, em águas desconhecidas, com pouca visibilidade e muita turbulência. Devemos evitar, ao mesmo tempo, os escolhos de um triunfalismo que tomou conta de nós com a queda do muro de Berlim e os empecilhos de um pessimismo excessivo que parece caracterizar o presente e o futuro das relações internacionais. A impressão imediata e mediatizada que temos da conjuntura internacional atual é como se ela resultasse de uma combinação estranha, às vezes explosiva, de movimentos simultâneos de aceleração, estancamento e repetição.

Uma reflexão crítica sobre o atual estado do mundo supõe entender os avanços e os retrocessos ocorridos nos últimos anos durante o permanente combate entabulado contra a barbárie para preservar e consolidar o Estado de Direito democrático herdado de nossos antepassados. A este respeito devemos destacar os êxitos alcançados, nesta última década, tais como o desaparecimento de estados totalitários, o avanço do processo de democratização no mundo, o final do regime do apartheid, um relativo progresso na política mundial de desarmamento e a consideração progressiva da temática do gênero. Tais avanços sustentam-se nas distintas Declarações e Programas de Ação adotados pela Comunidade Internacional, durante as cúpulas mundiais organizadas pela ONU, sobre diversos temas relacionados com o desenvolvimento humano[1].

No presente trabalho, ocupar-me-ei do fenômeno migratório latu sensu que inclui a categoria dos refugiados, estes últimos considerados como subespécie sui generis por serem migrantes forçados que se viram obrigados a fugir de seu país e a buscar asilo. Analisarei também o marco jurídico aplicável a ambas as categorias, a normativa relativa à proteção do ser humano, aos direitos humanos dos refugiados, e a problemática que a crise atual do asilo apresenta. Para finalizar, apresentarei uma série de propostas que constituiriam uma estratégia para encarar o século XXI.

Sobre o fenômeno migratório

A população mundial já supera a marca dos 5,6 bilhões de pessoas e, segundo as projeções das Nações Unidas, alcançará 11 bilhões em meados do próximo século. Noventa e cinco por cento deste aumento ocorrerá nos países mais pobres. No ano 2000, 8 entre cada 10 cidades com mais de 15 milhões de habitantes estarão localizadas nos países do Terceiro Mundo. No ano 2025, a população do mundo industrializado – Europa, América do Norte, Austrália e Japão – crescerá de 1,2 para 1,35 bilhões de pessoas, enquanto a população do Terceiro Mundo crescerá de 4,1 bilhões para 7,2 bilhões. Com certeza, este crescimento demográfico desproporcional supõe um rejuvenescimento da população nos países mais pobres, nos quais os jovens dificilmente encontrarão trabalho. Esta situação coincide com a política de imigração zero dos países ricos que se debatem com a recessão econômica e o fantasma do desemprego.

Segundo as Nações Unidas, existem mais de 100 milhões de imigrantes no mundo. O número de refugiados e outras pessoas que se encontram sob a proteção do ACNUR, ou seja, vítimas de perseguição, de guerras e de intolerância, aproxima-se de 23 milhões de pessoas, enquanto o número dos deslocados internos, em seus países, ultrapassa 30 milhões[2].

O poeta e filósofo mexicano Octavio Paz, ao considerar o fluxo migratório procedente da América Central e do México em direção aos Estados Unidos, compara-o ao vento e às correntes marítimas, como se fossem fenômenos naturais e, portanto, incontroláveis. A mesma reflexão pode ser aplicada a outras regiões do planeta que funcionam como corredores de fluxos migratórios, tais como a fronteira Odernisse, entre a Polônia e a Alemanha; o Mediterrâneo Ocidental, entre os países magrebinos e subsaarianos e a fronteira sul da União Européia; e o mar do sul da China, entre os países mais pobres e os outrora denominados “tigres do Sudeste Asiático”.

O fenômeno migratório acompanhou a história da humanidade e, na maioria das vezes significou modernização e progresso humano. Nesse sentido amplo, somos todos, salvo os autóctones, resultado dos deslocamentos de população que nos antecederam.

De um ponto de vista histórico, devemos desdramatizar o fenômeno migratório e impedir que em momentos de crise, como o atual, sejam os movimentos nacionalistas radicais, xenófobos e racistas, os inspiradores de políticas públicas sobre migração. Atribuir ao outro, diferente de nós, a responsabilidade de todos os nossos males é o que dá origem a tensões e conflitos entre diferentes grupos étnicos. Denunciar sem trégua nem silêncio a manipulação política dos movimentos migratórios e o pretexto de “bode expiatório” contribui para formar uma consciência de cidadania democrática.

Naturalmente, nesta época de crise econômica, de turbulência política e de crescimento demográfico desigual na qual vivemos, os interesses objetivos dos Estados afetados deverão ser atendidos sempre e quando os fluxos migratórios forem de massa e atentem contra a segurança nacional e a estabilidade econômica dos países de acolhida. Alcançar este equilíbrio, que implica necessariamente o respeito aos direitos humanos dos imigrantes, forçados ou não, dependerá de uma política regional e concertada entre os Estados-membros da Comunidade Internacional. É imperativa uma política global fundamentada no princípio da divisão da carga – burden sharing – e, orientada basicamente para eliminar as causas do atraso econômico e político que afeta os Estados mais vulneráveis ou periféricos do planeta onde as pessoas, mais que cidadãos, são indivíduos que deambulam entre a sobrevivência violenta e a imigração3.

A pobreza e a incapacidade de ganhar ou produzir suficientemente para a própria subsistência ou a da família são as principais razões por trás do movimento de pessoas de um Estado para outro em busca de trabalho. O fenômeno migratório não é um produto deste século, mulheres e homens abandonaram suas terras de origem, buscando trabalho em outros lugares, desde o aparecimento do sistema de trabalho remunerado. Atualmente, tal fenômeno engloba milhões de pessoas e podemos dizer, sem dúvida, que não há nenhum continente, nem região no mundo que não tenha seu contingente de trabalhadores migrantes.

A Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e de seus Familiares, aprovada pela Assembléia Geral em sua resolução 45/158, de 18 de dezembro de 1990, que entretanto, não entrou ainda em vigência, estabelece em seu artigo 2 que:

“se entenderá por ‘trabalhador migrante’ toda pessoa que vá realizar, realize ou tenha realizado atividade remunerada em um Estado do qual não seja nacional”.

Os trabalhadores migrantes são estrangeiros e, apenas por este motivo, podem despertar suspeitas ou hostilidades nas comunidades onde vivem e trabalham, ou ser objeto de discriminação. Na maioria dos casos, são economicamente pobres e compartilham os problemas dos grupos menos favorecidos da sociedade do Estado, que os acolhe. Neste sentido, a Convenção estabelece que os trabalhadores migrantes gozarão de tratamento não menos favorável do que o recebido pelos nacionais do Estado de emprego, no que se refere à remuneração e a outras condições de trabalho e de emprego. Os trabalhadores migrantes e seus familiares gozarão de igualdade de tratamento e respeito dos nacionais em relação ao acesso a instituições e às redes de ensino, aos serviços de orientação profissional e de emprego, ao acesso à moradia e à proteção contra a exploração em relação a aluguéis, aos serviços sociais e de saúde, à vida cultural e participação nela; usufruirão, além disso, de igualdade de tratamento em matéria tributária. A Convenção estabelece que os trabalhadores migrantes e seus familiares terão, no Estado de emprego, direito à liberdade e à segurança pessoais, direito de circular livremente e de escolher livremente sua atividade remunerada, direito de filiar-se livremente a sindicatos ou outras associações estabelecidas, conforme a lei, com vistas a defender seus interesses econômicos, sociais e culturais. Terão, portanto, direito a manter vínculos culturais com seu Estado de origem, participar nos assuntos públicos, votar e serem eleitos em eleições realizadas nesse Estado. A Convenção limita o arbítrio do Estado de emprego no que se refere à expulsão e estimula a integração dos trabalhadores migrantes e suas famílias a seu ambiente social, sem perder sua identidade cultural.

A pobreza em massa, o desemprego e o subemprego existentes em muito países em desenvolvimento oferecem a empregadores e a agentes privados inescrupulosos um terreno fácil para a contratação ilegal. Em alguns casos, o translado clandestino dos trabalhadores adquire caráter de operação delituosa. Os trabalhadores migrantes ilegais são objeto de exploração, sendo a situação destes, no pior dos casos, semelhante à escravidão ou ao trabalho forçado. O trabalhador migrante ilegal, aprisionado nessa armadilha, é uma vítima que raramente recorrerá à justiça por medo de ser descoberto e expulso. Em virtude do disposto no artigo 68 da Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e de seus Familiares, insta-se aos Estados-Partes colaborar “com vistas a impedir e a eliminar os movimentos e o emprego ilegais ou clandestinos dos trabalhadores migrantes em situação irregular”, exortando-os, assim, para que adotem medidas adequadas contra a difusão de informação enganosa no que se refere à emigração e à imigração, para detectar e eliminar movimentos ilegais ou clandestinos e para impor sanções efetivas a pessoas, grupos ou entidades que organizem ou dirijam a imigração ilegal ou clandestina ou prestem assistência neste sentido, façam uso da violência, ou de ameaças ou intimidações contra os trabalhadores migrantes em situação irregular, ou dêem emprego a esses trabalhadores. Entretanto, há poucas esperanças de acabar com o tráfico clandestino de mão-de-obra estrangeira se não forem atacadas as causas subjacentes da migração de trabalhadores, tais como o subdesenvolvimento econômico e o subemprego crônico. De fato, torna-se imperativo adotar medidas para promover o desenvolvimento econômico e reduzir o fosso existente entre os países industrializados e as regiões em desenvolvimento.

A Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Imigrantes e de seus Familiares ficou em aberto desde sua aprovação, em 1990, para assinatura de todos os Estados-Membros das Nações Unidas e entrará em vigor após a ratificação ou a adesão de vinte Estados. Até a presente data apenas seis Estados haviam ratificado a Convenção (Colômbia, Egito, Filipinas, Marrocos, Seychelles e Uganda) e três a haviam assinado (Chile, México e Mônaco).

Atento à emergência de novas tendências racistas e xenófobas que poderiam afetar o bem-estar social dos trabalhadores migrantes e de seus familiares, e levando em conta que o objetivo essencial da Convenção é que todos os trabalhadores migrantes possam gozar dos direitos humanos independentemente de sua situação jurídica, é crucial e necessário que os Estados a ratifiquem o mais breve possível. Lamentavelmente e diante da inexistência de regulamentação vigente nessa matéria, não há dúvidas de que se aplica a essa categoria de pessoas o Direito Internacional dos Direitos Humanos.

As normas jurídicas relativas à proteção do ser humano

A intolerância, a perseguição dos dissidentes, a violação dos direitos humanos, as guerras, a violência generalizada, a extrema pobreza ou o caos econômico e político que parecem ter-se instalado em algumas regiões do planeta geraram deslocamentos maciços de população. Entre as pessoas afetadas por esses flagelos, encontram-se os refugiados cujo estatuto migratório está regulamentado pelo Direito Internacional Público. Contrariamente ao que sucede com os migrantes econômicos que se deslocam legitimamente em busca de melhores condições de vida, os refugiados deslocam-se para preservar suas vidas, liberdade e segurança.

O artigo 3 da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 estabelece que:

“Todo indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança de sua pessoa”

Quando esses valores fundamentais que estão protegidos legalmente pelo Estado de Direito democrático são ameaçados ou constituem objeto de discriminação por motivo de raça, religião, nacionalidade ou por pertencer a um determinado grupo social ou opiniões políticas, estão dadas as condições para que uma pessoa recorra à proteção substitutiva de um terceiro país.

O artigo 14 da mesma Declaração Universal define, nesse sentido, que:

“Em caso de perseguição toda pessoa tem direito a buscar asilo e a desfrutar dele, em qualquer país”

e recorda em seu parágrafo 2 que:

“Este direito não poderá ser invocado contra uma ação judicial realmente originada por delitos comuns ou por atos opostos aos Propósitos e Princípios das Nações Unidas”.

Em âmbito regional, o artigo 22 da Convenção Americana sobre os Direitos Humanos – Pacto de São José da Costa Rica, de 1969 –, ao tratar do direito de circulação e de residência, determina com maior rigor ainda o direito de asilo, no caso de perseguição e impõe aos Estados signatários o respeito absoluto ao princípio de não-devolução (parágrafos 7 e 8).

É necessário esclarecer que, apesar das semelhanças de propósitos, existe uma diferença substancial entre os institutos jurídicos de asilo e de refúgio. O direito internacional dos refugiados reconhece o asilo em seu sentido amplo de proteção, acesso ao território e respeito ao princípio de non-refoulement ou de não-devolução, expulsão ou extradição de um refugiado a seu país de origem, onde sua vida, liberdade e segurança corram perigo.

O direito de asilo, seja político, territorial ou diplomático, existe apenas na América Latina onde os Estados signatários de tais tratados estão obrigados a conceder proteção àquelas pessoas perseguidas por motivos políticos, ou porque cometeram um delito comum conexo com a política4.

Esse costume ou prática regional é secular e está relacionado com a turbulência histórico-política do continente. Nem por isso é menos significativa a contribuição dos juristas latino-americanos ao tema da proteção internacional dos refugiados cuja regulamentação é posterior à Segunda Guerra Mundial5. Nesta apresentação, utilizo o conceito de asilo como equivalente à concessão do estatuto de refugiado segundo aquela regulamentação.

O Direito Internacional Público contempla três conjuntos de normas destinadas à proteção da pessoa humana:

(i) o Direito Internacional Humanitário, composto pelas quatro Convenções de Genebra e supervisionado pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICR) estabelece um regime de proteção do ser humano em situações de conflito armado internacional ou não-internacional;

(ii) o Direito Internacional dos Direitos Humanos, composto basicamente pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, os dois Pactos Internacionais sobre direitos civis e políticos e sociais, econômicos e culturais de 1967, as Convenções regionais sobre direitos humanos, as Convenções contra a tortura e a Convenção contra todo tipo de discriminação contra a mulher e,

(iii) o Direito Internacional dos Refugiados, composto basicamente pela Convenção da ONU, de 1951, relativa ao Estatuto dos Refugiados e seu Protocolo Adicional de 1967, supervisionados pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR).

O Prof. Dr. Antonio Augusto Cançado Trindade analisa, com detalhes, em seu profundo e utilíssimo Tratado de Direito Internacional de Direitos Humanos6, as semelhanças e convergências entre as três vertentes da proteção internacional da pessoa humana e conclui que elas constituem um corpus juris consistente e complementar. A coexistência normativa, conceitual e operacional destas normas que perseguem o mesmo objetivo, a saber, a proteção do ser humano em toda e qualquer circunstância, permite sua aplicação simultânea, sobretudo em situações de emergência humanitária tão comuns neste aparentemente caótico final de milênio.

O jurista e filósofo italiano Norberto Bobbio, ao refletir sobre o reconhecimento progressivo dos direitos humanos, diz: ”Direitos humanos, democracia e paz são três momentos necessários do mesmo movimento histórico: sem direitos humanos reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem democracia, não existem condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos”. Ao enfatizar o ideal kantiano da “paz perpétua”, Bobbio postula que o progresso moral e político da humanidade, assim como o caráter democrático de nossas sociedades depende, em grande parte, da correta e eficaz observância destes direitos7.

Os direitos humanos dos refugiados e a crise do asilo

O refugiado é, antes de tudo, uma vítima da violação de seus direitos humanos. A concessão do asilo permite recuperar a dignidade cidadã ignorada em seu país de origem. Os refugiados são seres humanos desesperados, imersos em uma situação que os vence uma vez rompido o vínculo de pertencer à sua comunidade de origem. Assim como os imigrantes, eles podem contribuir para a mudança, para o desenvolvimento e para a inovação cultural dos países que lhes concedem asilo. Muitos são, na história, os exemplos de refugiados que contribuíram para o progresso humano.

O ACNUR foi criado após o término da Segunda Guerra Mundial e sua missão8 consiste em promover, juntamente com os Estados e os organismos não-governamentais, a proteção internacional e a assistência aos refugiados, entendendo por isso a busca de soluções a seus problemas. A Missão ou o Estatuto do ACNUR define que suas atividades são de caráter estritamente humanitário e apolítico. A criação do ACNUR levou a Comunidade Internacional a elaborar uma Convenção que determinará os direitos e as obrigações dos refugiados por meio de um estatuto migratório próprio. Deste encontro, ocorrido em julho de 1951, em Genebra, resultou a Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados.

A Convenção de Genebra, de 1951, é conhecida como Carta dos Direitos dos Refugiados. Ela regulamenta a situação jurídica dos refugiados em um marco migratório determinado, outorgando-lhes os direitos de residência, de trabalho remunerado, de propriedade, de associação, de acesso aos tribunais, à educação e à assistência social, a documento de identidade e de viagem e, sobretudo, o direito a não ser devolvido, contra sua vontade, a seu país de origem, onde sua vida, liberdade e segurança estejam em perigo. Alguns autores, como Hector Gros Espiell, consideram o princípio do non-refoulement (art. 33 da Convenção) como parte integrante do jus cogens9. Em seu artigo 1º, A, 2, a Convenção define o termo “refugiado”, indicando que este se aplicará a qualquer pessoa que:

“... em decorrência dos acontecimentos ocorridos na Europa antes de 1º de janeiro de 1951 e devido a temores fundados de ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, ou por pertencer a determinado grupo social ou opiniões políticas, se encontre fora do país de sua nacionalidade e não possa ou, devido a tais temores, não queira recorrer à proteção de tal país; ou que, carecendo de nacionalidade e se achando, em conseqüência de tais acontecimentos, fora do país onde antes tinha sua residência habitual, não possa ou, devido a tais temores, não queira regressar a ele”.10

Essa definição constitui o conceito jurídico clássico de refugiado orientada para a proteção do indivíduo que, temendo ser vítima de perseguição pelos motivos indicados, abandona seu país e busca asilo. A concessão do estatuto de refugiado pelo Estado signatário deverá observar as causas, os critérios geográficos e temporais da definição, assim como avaliar um justo equilíbrio entre o temor fundado de perseguição (elemento subjetivo) e as condições existentes no país de origem do solicitante de asilo (elemento objetivo).

Não há dúvida alguma de que a definição do termo “refugiado” e a codificação internacional de seus direitos e obrigações significou uma conquista importante para a humanidade em geral e para o Estado de Direito democrático, em particular. Entretanto, esta definição considera algumas limitações devido ao contexto histórico-político em que foi elaborada. Tais limitações são de ordem geográfica (acontecimentos ocorridos na Europa), temporal (antes de 1º de janeiro de 1951) e político-ideológica (guerra fria).

O Protocolo Adicional de 1967 procurou sanar algumas dessas limitações ao suprimir a data limite de 1951 (reserva temporal), assim como a referência explícita ao espaço geográfico europeu (reserva geográfica), concedendo, desse modo, caráter universal à Convenção de Genebra, de 1951. Era evidente que o problema dos refugiados não se restringia apenas à Segunda Guerra Mundial ocorrida na Europa, mas que a proteção dos refugiados devia se impor igualmente em outros continentes, palcos de novos conflitos e convulsões.

O continente africano, em pleno processo de descolonização e de guerras de liberação nacional durante os anos 60, foi o primeiro a ser afetado pelos deslocamentos em massa da população. Os Estados africanos, conscientes do desafio que representava essa nova situação, decidiram adotar, em 1969, a Convenção da Organização da Unidade Africana (OUA) para tratar dos aspectos específicos do problema dos refugiados na África. Esta Convenção preserva, em sua totalidade o conjunto de artigos da Convenção de 1951 e de seu Protocolo Adicional de 1967, porém inova no sentido de estender o benefício da proteção internacional a outra categoria de pessoas que, segundo a Convenção de 1969, merecia, igualmente, o estatuto de refugiados.

De fato, o artigo 1º, parágrafo 2 da Convenção estabelece que:

“O termo refugiado será aplicado também a toda pessoa que, devido a uma agressão externa, ocupação ou dominação estrangeira, ou acontecimentos que perturbem gravemente a ordem pública, em parte ou na totalidade de seu país de origem, ou do país de sua nacionalidade, está obrigada a abandonar seu domicílio habitual para buscar refúgio em outro lugar fora de seu país de origem ou do país de sua nacionalidade”.11

A Convenção da OUA representa um claro avanço em relação à Convenção de 1951, por estender a proteção internacional àquelas pessoas que cruzam uma fronteira internacional por motivos adicionais aos indicados nessa última em seu artigo 1, A, 2, tais como: causa de agressão externa, ocupação, domínio estrangeiro ou acontecimentos que perturbem gravemente a ordem pública. Dizemos que se trata de um avanço toda vez que amplia o âmbito de aplicação de um instrumento de Direito Internacional dos Refugiados a todos aqueles que necessitam ser protegidos.

Da mesma forma, em outro contexto, o da América Central dos anos 80, um grupo de juristas latino-americanos, reunidos em um Colóquio organizado pelo ACNUR, em 1984, em Cartagena das Indias, Colômbia, ampliou ainda mais o conceito de refugiado previsto na Convenção de 1951 e na Convenção da OUA de 1969. Resultado disso é o que foi transmitido com a definição de Cartagena, contida na conclusão terceira da Declaração, ao propor que o conceito de refugiado deveria também ser estendido a todas as pessoas que:

“...fugiram de seus países porque sua vida, segurança ou liberdade foram ameaçadas pela violência generalizada, agressão estrangeira, os conflitos internos, violação em massa dos direitos humanos ou outras circunstâncias que tenham perturbado gravemente a ordem pública”.12

É importante reiterar que, tanto a definição contida na Convenção da OUA, de 1969, como na Declaração de Cartagena, de 1984, não substituem a definição do artigo 1, A, 2) da Convenção de Genebra de 1951 e tampouco excluem o regime jurídico de tratamento dos refugiados ali estabelecidos. Ambas as definições incorporam e, ao mesmo tempo, ampliam o conceito clássico de refugiado a outros beneficiários, adaptando-o às novas realidades histórico-políticas do mundo contemporâneo, sem renunciar ao marco jurídico da Convenção de Genebra, de 1951, e seu Protocolo Adicional de 1967.

A definição ampliada do conceito de refugiado que figura na Convenção da OUA e na Declaração de Cartagena pretende responder às novas situações criadas pelos conflitos étnico-nacionais que se intensificaram com o final da guerra fria. A desintegração dos Estados, as guerras, a violência generalizada e a violação sistemática dos direitos humanos constituem as principais causas dos deslocamentos em massa da população. O reconhecimento da condição de refugiado deixa de ser individualizado e as condições objetivas existentes nos países de origem dos solicitantes prevalecem sobre o critério subjetivo relativo ao temor fundado de perseguição. Cabe mencionar, a respeito, a reflexão do jurista brasileiro Antonio Cançado Trindade, ao afirmar que: “... dentro dessa mesma evolução, o critério subjetivo clássico de qualificação dos indivíduos – que abandonam seus lares em busca de refúgio – mostra-se, em nossos dias, anacrônico, sendo substituído pelo critério objetivo, centrado preferencialmente nas necessidades de proteção”.13

Tal enfoque é compatível com a prática de proteção internacional exercida pelo ACNUR, em todo o mundo, onde a maioria dos refugiados reconhecidos o são, tendo presente a magnitude e a complexidade das atuais crises de emergência humanitária que afetam os diversos continentes. Assim, por exemplo, em situações de conflito e de violência generalizada existentes na África Central (região dos Grandes Lagos), nos Balcãs (ex-Iugoslávia e Albânia) ou na Ásia Central (Estados da ex-União Soviética como Chechenia, Arzeibajão, Armênia, Tajikistão ou Georgia), é praticamente impossível proceder ao reconhecimento individualizado ou avaliar o temor fundado de persecução de cada pessoa que abandona seu país em busca de refúgio. São milhares e, algumas vezes, milhões de pessoas afetadas, em sua maioria mulheres, crianças e velhos que não participam dos combates e que necessitam ser protegidas.

Aplicar a noção de “refugiado” em sentido amplo significa, na prática, estender a missão original do ACNUR e, além disso, ampliá-lo a outras categorias de beneficiários como as vítimas de guerra, da violência generalizada ou da violação sistemática dos direitos humanos e, algumas vezes, às pessoas deslocadas em seus próprios países que se encontram em situação similar à dos refugiados sem que houvessem cruzado uma fronteira internacional (província iugoslava do Kosovo, atualmente, com mais de 200 000 deslocados internos, Bósnia Herzegovina, Colômbia, Peru, República Democrática do Congo, Ruanda, Somália, Sri Lanka, Sudão, entre outros exemplos). No caso particular da Colômbia, e a pedido de seu governo, o ACNUR, com prévia autorização do Secretariado-Geral, criou um Escritório de Encarregado de Missão, em Bogotá. Segundo as informações disponíveis, o número de deslocados internos, vítimas da violência desencadeada naquele país, entre os anos 1985 e 1996, é estimado em 900.000 pessoas.

A esse respeito, deve-se destacar a Declaração de São José sobre os Refugiados e Pessoas Deslocadas, de 1994, que foi adotada no marco do décimo aniversário da Declaração de Cartagena. A Declaração de São José atualiza, reitera e amplia o âmbito de aplicação da Declaração de Cartagena, ao enfatizar a importância dos direitos humanos dos refugiados e das pessoas deslocadas internamente na América Latina e no Caribe, incluindo os movimentos migratórios forçados, provocados por causas distintas das previstas na Declaração de Cartagena. A nova Declaração afirma que a plena observância dos direitos econômicos, sociais e culturais constituem a base do desenvolvimento humano sustentável, da construção da paz e da consolidação da democracia no continente. A Declaração de São José inova, assim mesmo, ao considerar a importância do enfoque de gênero, dos direitos das populações indígenas e das crianças, assim como, das pessoas que emigram por motivos econômicos, recordando-nos que elas são, em primeiro lugar, “ titulares de direitos humanos que devem ser respeitados em todo momento, circunstância e lugar.”14

Hoje em dia, o direito de asilo está em crise. Esta crise é universal, porém, talvez se requeira mais ajuda dos países desenvolvidos cujos governos estejam adotando políticas cada vez mais restritivas a respeito. Incumbe, naturalmente, à cidadania organizada e aos governos dos Estados-membros impedir, por todos os meios, que esta importante conquista da humanidade se debilite ou, pior ainda, desapareça do marco jurídico-institucional do Estado de Direito democrático.15

O aumento considerável do número de refugiados e de pessoas deslocadas internamente, nestes últimos anos, chegou a preocupar a Comunidade Internacional e sua expressão político-institucional, as Nações Unidas; ambas preocupadas ou pouco aptas para enfrentar as causas políticas e econômicas que deram origem a este grave problema humanitário.

A crise do direito de asilo agravou-se com o fim da guerra fria e a desintegração do mundo comunista. O desaparecimento da ex-União Sociétiva anulou a vantagem ideológica ou geopolítica que representavam os refugiados para ambos os blocos do poder mundial. Atualmente, a maioria das crises humanitárias, com exceção da Guerra do Golfo e, até certo ponto, a desintegração da ex-Iugoslávia, não ameaçam diretamente os interesses estratégicos das grandes potências. O que está ocorrendo na província iugoslava do Kosovo ilustra perfeitamente o mencionado anteriormente.

De fato, nos países desenvolvidos parece consolidar-se a tendência restritiva no tratamento outorgado à situação migratória dos estrangeiros em geral e dos refugiados, em particular. A crise econômica que nos afeta, particularmente, o fenômeno do desemprego, conduz os governos, apoiados pela opinião pública, a restringir a entrada de estrangeiros pobres e pouco qualificados em seus territórios. Imposição de visto de entrada, sanções às companhias aéreas que transportam estrangeiros sem documentos, severos controles de fronteira, procedimentos de elegibilidade acelerados, detenções, limitações ao direito de reunião familiar e aplicação restrita do conceito de refugiado (Art. 1, A 2) da Convenção de Genebra de 1951 e tantas outras medidas de caráter administrativo, levam a relacionar indiscriminadamente migrantes econômicos e solicitantes de asilo. Tal tendência é ainda mais perigosa quando prepondera nas políticas públicas o enfoque que amalgama solicitantes de asilo, refugiados, migrantes econômicos e terrorismo. Nesse mesmo contexto, os movimentos sociais de caráter racista e xenófobo, que imaginávamos enterrados, ressurgiram com força e, em alguns países, são os que sustentam políticas públicas anti-imigrantes e refugiados. É bom lembrar que políticas públicas dessa natureza debilitam o Estado de Direito democrático, em geral, e o direito de asilo, em particular.

A esse respeito, vale citar a profunda e oportuna reflexão do filósofo espanhol Fernando Savater sobre a “Obrigação Democrática do Asilo”, na qual diz:

“Uma das mentes mais lúcidas e vigorosas do pensamento contemporâneo, Hannah Arendt, profetizou que nosso século acabaria marcado pela existência de refugiados em massa, fugitivos, gente despossuída de todos seus direitos e obrigada a buscá-los longe de sua pátria. Acertou plenamente, por infortúnio, as imagens dos que fogem da guerra, do racismo, da intolerância religiosa ou ideológica, ou simplesmente da fome, dos que fogem arrastando como podem seus escassos pertences, desses homens e mulheres que se apressam sem saber para onde, jovens, velhos ou crianças, com a bruma do espanto e do despojamento no olhar, as imagens dos que atravessam a pé os montes e as brasas dos desertos, dos que dormem sonhos de acossados no lodo, dos que entulham embarcações precárias que, as vezes, afundam nas ondas, as imagens dos que cruzam cercas e sorteiam como podem os disparos de guardiões implacáveis, essas imagens são hoje o equivalente moral do que foram em seu tempo as cenas dos reclusos famélicos e aterrorizados nos campos de concentração nazistas e comunistas. Se diante de filmes como: “A Lista de Schindler” nos sentimos obrigados a soluçar “nunca mais!”, a sinceridade desse movimento de justiça e compaixão será medido por nossa atitude diante dos perseguidos e fustigados de hoje: ontem, era imperativo libertá-los de seus cárceres, hoje, trata-se de acolhê-los em nossos países, sob nossas leis e compartilhar nossas liberdades”.

“A história sempre foi uma catástrofe, cujos resultados positivos foram pagos ao preço terrível de lágrimas e sangue. Nosso século não constituiu exceção, ao contrário: as ideologias cientificamente exterminadoras em nome de uma raça ou de uma classe, as armas de destruição em massa, o próprio aumento da população humana, contribuíram para aumentar seus semelhantes. A obrigação de asilo é uma das poucas tradições que podemos qualificar, sem dúvida, como realmente civilizada. E é também o grande desafio atual que se coloca à nossas democracias. Os solicitantes, é sabido desde Esquila, devem ser acolhidos: a barbárie que os persegue é sua carta de cidadania diante dos quais nos temos como diferentes e melhores que os bárbaros. Não há desculpas, apenas reparos prudentes. Afinal de contas, a condição do desterrado lembra-nos, não apenas a todo democrata, a todo ser humano reflexivo, a nossa própria. Pois, como disse Empédocles, “a alma também está exilada: nascer é sempre viajar para um país estrangeiro”. De nós depende que o acossado e o desassossego desta condição comum se convertam em fraternidade cívica”.16

Por outro lado, verifica-se, na prática, uma dificuldade cada vez maior em distinguir um imigrante de um solicitante de asilo. Na verdade, considerando o contexto econômico, social e político do país de onde procedem, ambas as categorias de pessoas confundem-se e ambas necessitam de proteção internacional. Impõe-se, portanto, evitar que um refugiado genuíno seja devolvido a seu país de origem onde sua vida, liberdade e segurança corram perigo.

As pessoas que se deslocam o fazem, fundamentalmente, por motivos econômicos ou políticos e, na maioria dos casos, levando em conta a conjuntura internacional atual; não pretendem chegar a nenhum paraíso, senão, escapar do inferno existente em seu país. Os cidadãos bósnios, albaneses, liberianos, kosovarianos, angolanos, haitianos, congoleses e tantos outros, encontram-se nessa categoria de indivíduos à deriva e seria pouco humano ou democrático negar-lhes proteção.

Como disse a Sra. Sadako Ogata, atual Alta Comissionada das Nações Unidas, o problema dos refugiados é um problema de humanidade e da humanidade17.

Estratégias de solução no limiar do século XXI

Os temas relativos à problemática que encerra o fenômeno migratório ocupa, hoje, um alto grau de prioridade na agenda política dos Estados desenvolvidos.

Como disse anteriormente, embora tenhamos presenciado, durante os últimos dez anos, uma série de acontecimentos positivos na ordem internacional, tais como a democratização de Estados totalitários ou o aumento do nível de vida de muitos países em desenvolvimento, como também, obtido sucessos importantes sobre a situação dos refugiados, ao verificar-se que milhões de pessoas puderam retornar a seus lares e retomar sua vida de maneira pacífica e produtiva e que muitos países continuarão concedendo asilo àqueles que se viram obrigados a fugir de seus lares, não é menos certo dizer também que existem tendências negativas realmente preocupantes. Neste sentido, o ACNUR enfrenta, atualmente, uma crise que afeta severamente a proteção internacional dos refugiados, ao mesmo tempo em que o deslocamento de pessoas está crescendo. São muitos os países que ainda apresentam evidente fragilidade política, social e econômica que os torna vulneráveis a possíveis conflitos armados internos e que se mostram incapazes de proteger seus cidadãos e, o que é pior ainda, não estão dispostos a fazê-lo. Os etnonacionalismos e as tendências separatistas das comunidades exacerbam, na maioria dos casos, os governos autoritários, grupos rebeldes e senhores da guerra a recorrer à tática do terror, que compreende ataques aos campos de refugiados, limpeza étnica, deslocamento forçado, em massa, de populações e outras atrocidades como tortura, execuções sumárias e violações de mulheres e meninas. Diante de situações como as apresentadas, não devo fazer menos do que afirmar que não pode haver segurança nos Estados enquanto não houver, nem se garantir, a segurança dos cidadãos.

O ACNUR refletiu sobre como proceder para que os Estados assumam suas responsabilidades para atenuar a tensão existente entre os interesses dos Estados e a proteção dos refugiados e como conseguir diminuir o fosso existente entre as obrigações humanitárias que lhes cabe e suas políticas e práticas públicas em matéria de proteção dos refugiados. Em recente publicação do ACNUR, intitulada La situación de los Refugiados en el Mundo – Un Programa Humanitário18, desenvolve-se uma estratégia mundial para enfrentar os problemas referentes aos deslocamentos, em massa, de populações, que apela para a um programa político e econômico voltado para a prevenção e que pode ser resumido como segue:

Erradicar a pobreza, para alcançar um crescimento econômico equitativo e o desenvolvimento humano. Isto constitui um caminho bastante eficaz para salvaguardar a segurança das pessoas. Para lográ-lo, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, em seu informe sobre o Desenvolvimento Humano de 1997, propõe como prioridade de ação:

a. capacitação das pessoas e das comunidades pobres, de maneira tal que possam participar das decisões que afetam suas vidas e ter acesso a outras vantagens que os converta em pessoas menos vulneráveis;

b. conseguir a igualdade entre os sexos e terminar com todo tipo de discriminação contra a mulher, no sentido de que possam ter acesso a oportunidades de emprego;

c. promover formas de crescimento econômico que favoreçam os mais pobres, garantindo o pleno emprego;

d. ter mais cuidado com a gestão do processo de mundialização, de tal maneira que se preste atenção à equidade e se possa reduzir a distância entre as sociedades “vencedoras” e as “perdedoras”;

e. garantir o estabelecimento de Estados fortes e legítimos, responsáveis pela segurança de seus cidadãos e preocupados em promover os interesses dos mais pobres;

f. oferecer aos países mais pobres apoio internacional fundado no perdão parcial de suas dívidas, na introdução de melhorias quanto à qualidade e à quantidade da ajuda e na abertura dos mercados de todo o mundo às explorações agrícolas.

Investir na paz, para conseguir a estabilidade e a consolidação da paz naqueles países que saíram de recentes conflitos armados, pois, do contrário, a ameaça da guerra permanecerá latente, afetando não apenas a região envolvida, mas também a comunidade internacional em seu conjunto. A pacificação exige um compromisso continuado, é um processo no qual não basta que a comunidade internacional negocie um acordo de paz ou desmobilize os combatentes, supervisione as eleições e, em seguida, abandone o país à sua sorte. A questão dos processos de paz deve ser abordada a partir de uma perspectiva mais ampla, planificada de maneira conjunta, coordenada e a longo prazo, levando em conta não apenas a ação humanitária, mas também a política e o desenvolvimento.

Limitar o comércio de armas, por meio da imposição de maiores restrições à fabricação, venda e uso de armas mortíferas, tornar ilegais os instrumentos de guerra mais destrutivos, limitar a aplicação de novas tecnologias armamentistas. É necessário que os países compreendam que é perfeitamente possível possuir economia próspera sem uma grande indústria armamentista.

Promover a democracia e os direitos humanos, como únicos pilares possíveis para a manutenção e a consolidação da paz, pois os países com governos democráticos não entram em guerras nem recorrem a purificações étnicas de suas próprias populações, bem como é pouco provável que se produzam neles insurreições de grupos étnicos que levem seus habitantes a terem de fugir para proteger suas vidas. Para alcançar este objetivo, a comunidade internacional não deve deixar de valer-se da imposição de sanções diplomáticas, econômicas e militares nos casos em que os governos sejam responsáveis por flagrantes violações dos direitos humanos e das minorias.

Garantir que os Estados respondam por seus atos, ressaltando o conceito de “responsabilidade”, por meio da qual os Estados devem garantir a seus cidadãos condições que não os obriguem a fugir em conseqüência do medo ou da miséria. Tal responsabilidade deve ser entendia em seu sentido amplo, tornando-se extensiva a todas as demais pessoas que participam nos assuntos nacionais e internacionais, tais como grupos rebeldes, dirigentes e partidos políticos, senhores da guerra e facções militares, entre outros. Porém este conceito de responsabilidade coletiva deve estar harmonizado com o de responsabilidade individual, toda vez que os movimentos de refugiados e de deslocados internos não forem produtos do acaso nem fruto de forças históricas abstratas ou anônimas; ocorrem porque determinados indivíduos decidem violar os direitos de outros, colocar em perigo suas vidas e tonar impossível viver em segurança em seus próprios lares. Em decorrência do acontecido na ex-Iugoslávia e em Ruanda, os tribunais internacionais, criados para julgar os crimes de guerra perpetrados nestes países, encontraram-se com numerosos problemas e terminaram por não poder processar os suspeitos mais importantes. Sem prejuízo disto, a recente criação do Tribunal Penal Internacional, materializada pelo “Tratado de Roma”, de julho do presente ano, que permite julgar os crimes de guerra, de agressão, de genocídio e contra a humanidade, com a finalidade de acabar com a impunidade dos grandes crimes, é um avanço histórico fundamental para as gerações futuras e um limite ao autoritarismo.

Nesse marco sucintamente explicado, o ACNUR espera que, no processo de consolidação de um espaço humanitário, isto é, um espaço de distensão, construído segundo princípios e práticas humanitárias, os Estados assumam cabalmente suas responsabilidades em matéria de migrantes e de refugiados, tanto no que se refere à proteção efetiva de seus direitos como à integração social e econômica nos países de acolhida.



+ Traduzido por Catarina Eleonora F. da Silva e Jeanne Sawaya.

* Representante Regional para o Sul da América Latina do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados. As idéias expressadas neste artigo não representam necessariamente a política oficial do ACNUR, mas apenas as de seu autor. Desejo agradecer à advogada Marcela Celia Alejandra Rodríguez, por sua colaboração na revisão do texto.

[1] Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Rio de Janeiro, 1992); Direitos Humanos (Viena, 1993); População e Desenvolvimento (Cairo, 1994); Desenvolvimento Social (Copenhagen, 1995) Situação da Mulher (Beijin, 1995); Habitat/Desenvolvimento Urbano (Estambul, 1996).

 

[2] Segundo estatísticas governamentais recompiladas pelo ACNUR.

3 Segundo as Nações Unidas, são mais de 70 Estados-Membros considerados como vulneráveis ou periféricos. De acordo com o Informe do PNUD sobre Desenvolvimento Humano, do ano de 1994, que ainda continua em vigor atualmente afirma-se, com precisão que: “Nosso mundo não pode sobreviver com uma quarta parte rica e três quartas partes na pobreza, uma metade democrática e a outra submetida ao autoritarismo, como oásis de desenvolvimento humano rodeados por desertos de miséria”.

 

4 Artigo “Asilo e Refúgio – Diferencias y Similitudes”, de BERTOCCHI, G. ACNUR, Ed. IEI, Universidad de Chile, 1996.

5 Recopilación de Instrumentos Jurídicos Interamericanos Relativos al Asilo Diplomático, Asilo Territorial, Extradición y Temas Conexos, Ed. ACNUR, 1992.

6 CANÇADO TRINDADE, A. A. Tratado de Derecho Internacional de los Derechos Humanos, vol. I, cap. VIII, Ed. Sérgio Antonio Fabris.

7 BOBBIO, N. N. La era de los Derechos, Ed. Campus, 1992.

8 Res. da Assembléia Geral das Nações Unidas nº 428 (V), de 14 de dezembro de 1950.

9 GROS ESPIELL, Hector, Artigo “Repatriación de Refugiados, Memorias del Coloquio en Cartagena de Indias 1983 - ACNUR - Centro Regional de Estudos do Terceiro Mundo, Universidade Nacional de Colômbia, 1986.

10 Convenção de Genebra da ONU, Recopilación de Instrumentos Jurídicos Internacionais: Principios y Criterios relativos a Refugiados y Derechos Humanos, ACNUR, 1992.

11 Convenção de Genebra da ONU, Recopilación de Instrumentos Jurídicos Internacionais: Principios y Criterios relativos a Refugiados y Derechos Humanos, ACNUR, 1992.

12 Convenção de Genebra da ONU, Recopilación de Instrumentos Jurídicos Internacionais: Principios y Criterios relativos a Refugiados y Derechos Humanos, ACNUR, 1992.

13 Ver A. A. Cançado Trindade, op., cit., Cap. IX, para 92.

14 Ver Declaração de São José e A. A. Cançado Trindade, op. cit., cap. IX.

15 Ver Celso Lafer, La reconstrucción de los derechos humanos. Un diálogo con el pensamiento de Hannah Arendt, Ed. Schwarcz Ltda, São Paulo, 1991.

16 SAVATER, Fernando texto apresentado à Delegação do ACNUR em Madrid, Espanha, por ocasião da criação, naquele país, em 1994, da Organização não-governamental “Espanha com ACNUR”, da qual é membro. Sobre o mesmo tema, ver LAFER, Celso, A reconstrução dos direitos humanos, Um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt, d. Schwarcz Ltda, São Paulo, 1991, op. cit.

17 Ver Colección de Discursos de la Alta Comisionada de las Naciones Unidas para los Refugiados, Sra. Sadako Ogata, Ed. ACNUR, 1996. A situação dos refugiados no Brasil está regulamentada pela Lei nº 9.474, em cuja redação o ACNUR colaborou, a qual define os mecanismos para a implementação do estatuto dos refugiados nesse país, em conformidade com os instrumentos internacionais correspondentes.

18 A situação dos Refugiados no mundo 1997-1998 – Um Programa Humanitário. ACNUR, 1997 da edição em espanhol, Icaria Editorial, 1997.

 

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