
A
proteção aos direitos intelectuais coletivos das
comunidades indígenas brasileiras
Juliana
Santilli
1 INTRODUÇÃO
Antes de
entrar na abordagem jurídica do tema, quero destacar
alguns dados que dimensionam as possibilidades estratégicas
de exploração do patrimônio biogenético brasileiro.
O Brasil é
um dos países da chamada megadiversidade, abrigando formações
naturais como cerrado, pantanal, caatinga, campos e mais
de 3,5 milhões de km2 de florestas tropicais
(30% do mundo), na Amazônia e na Mata Atlântica, onde
estão concentradas mais de 50% das espécies.
Associada
à sua rica biodiversidade, está o seu extenso patrimônio
sociocultural: uma das populações mais diversificadas do
mundo: povos indígenas, descendentes de quilombos,
colonos, caiçaras, ribeirinhos, extrativistas, populações
rurais e urbanas de diferentes origens étnicas e
culturais. (Dados extraídos do folder
institucional do Instituto Socioambiental** ).
Existem no
território brasileiro 206 povos indígenas, e a sua maior
parte é formada por microssociedades. Desses povos, 71
(34%) têm uma população de até 200 indivíduos. Parte
da população indígena, 60%, vive no Centro Oeste e
Norte do país (Amazônia e cerrado) tem formalmente
direito a 98% da extensão das terras indígenas. (Dados
extraídos do texto A Sociodiversidade Nativa Contemporânea
no Brasil, do antropólogo Carlos Alberto Ricardo,
publicado em Povos Indígenas no Brasil - 1991/1995,
ISA.
2 Tanto a
bio quanto a sociodiversidade brasileiras estão
protegidas constitucionalmente. O art. 225, §1º, II,
determina a preservação da diversidade e da
integridade do patrimônio genético do país. Já o
art. 215, §1º, da Constituição brasileira protege as manifestações
das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e
das de outros grupos participantes do processo civilizatório
nacional. O "patrimônio cultural"
brasileiro, composto de bens portadores de referência
à identidade, à ação e à memória dos diferentes
grupos formadores da sociedade brasileira também é
protegido no art. 216.
Os direitos
à bio e à sociodiversidade brasileira, bem como ao
patrimônio cultural, são coletivos, e pertencem à
cidadania. Conforme salienta o jurista Carlos Frederico
Marés, em artigo intitulado "Propriedade Intelectual
e Direitos Coletivos" (ainda não-publicado), os
direitos coletivos não são uma mera soma de direitos
subjetivos individuais, mas somente aqueles pertencentes a
um grupo de pessoas, cuja titularidade é difusa porque não
pertence a ninguém em especial, mas cada um pode promover
sua defesa que beneficia sempre a todos.
Assim
sendo, os cidadãos brasileiros estão legitimados a agir
em juízo em defesa desses direitos coletivos, tendo o
Direito brasileiro criado, inclusive, instrumentos
processuais próprios para a defesa do meio ambiente,
patrimônio cultural, consumidores e outros direitos
coletivos (ação civil pública e ação popular,
principalmente).
Entre os
direitos coletivos de minorias étnicas, destacam-se os
das comunidades negras, remanescentes de quilombos, à
propriedade definitiva das terras que estejam ocupando
(art.68 das DCT) e ao tombamento de todos os documentos e
sítios detentores de reminiscências históricas dos
antigos quilombos (art.216, §5º).
Com
regulamentação mais extensa, estão os direitos dos
povos indígenas, sobre as terras que tradicionalmente
ocupam, seus recursos naturais, sua organização social,
costumes, línguas, crenças e tradições (arts. 231 e
232), entre outros. Sobre a natureza jurídica sui
generis dos direitos coletivos de povos indígenas,
falar-se-á mais adiante.
3. O Brasil
é signatário da Convenção sobre a Diversidade Biológica
(CDB), que entrou em vigência no país a partir de sua
ratificação pelo Congresso Nacional, em maio de 1994.
Portanto, é esse o principal instrumento legal para a
proteção da biodiversidade no país. (Embora, de forma
indireta, seja também resguardada pelas leis de proteção
à fauna, à flora, unidades de conservação de uso
direto e indireto, e pelas leis ambientais em geral, que
impõem condições e restrições ambientais a atividades
econômicas lesivas e criam espaços ambientais
especialmente protegidos).
A execução
e implementação práticas da CDB, entretanto, ainda
dependem de regulamentação, e a principal iniciativa
nessa direção é o Projeto de Lei nº 306/95, de autoria
da Senadora Marina Silva (eleita pelo Partido dos
Trabalhadores, do Estado do Acre, na Amazônia).
Esse
projeto foi amplamente debatido com cientistas e
representantes de ONGs, e contou com considerável
participação democrática.
Com a
aprovação da Lei nº 9.279, em maio de 1996, que
regulamentou a propriedade industrial no país,
sentiram-se derrotados os setores mobilizados
principalmente no "Fórum pela Liberdade do Uso do
Conhecimento", que congregou ONGs, cientistas e
associações profissionais de farmacêuticos, químicos e
outras categorias.
A Lei n.
9.279/96 dispõe em seu art.10, IX, que, para efeito de
patenteamento, não se considera invenção nem modelo
de utilidade, o todo ou parte de seres vivos naturais e
materiais biológicos encontrados na natureza, ou ainda
que dela isolados, inclusive o genoma ou germoplasma de
qualquer ser vivo natural e os processos biológicos
naturais. Já em seu art. 18, III, dispõe que não são
patenteáveis: o todo ou parte dos seres vivos, exceto
os microorganismos transgênicos que atendam aos três
requisitos de patenteabilidade - novidade, atividade
inventiva e aplicação industrial - previstos no art.8º,
e que não sejam mera descoberta. O parágrafo único
desse artigo define "microorganismos transgênicos"
como organismos, exceto o todo ou parte de plantas ou
de animais, que expressem, mediante intervenção humana
direta em sua composição genética, uma característica
normalmente não alcançável pela espécie em condições
naturais.
Sentindo-se
derrotados, porém, esses vários setores da sociedade
civil decidiram empenhar seus esforços na aprovação de
uma lei de acesso à biodiversidade satisfatória.
O projeto
de lei da Senadora Marina Silva pretende regulamentar os
"instrumentos de controle do acesso a recursos genéticos
no país", e encontra-se atualmente com o Senador
Osmar Dias, a quem foi distribuída a relatoria do mesmo.
Várias audiências públicas foram realizadas visando
discutir o projeto e o Senador Osmar Dias pretende
apresentar, em data ainda não determinada, um
substitutivo ao mesmo.
4 Uma das
questões centrais na regulamentação do acesso aos
recursos genéticos existentes no território brasileiro
é o regime de propriedade sobre os mesmos.
É sabido
que a Convenção sobre Diversidade Biológica consagra a
soberania dos Estados sobre os recursos genéticos, o que
tem implicações sobre quaisquer mecanismos de
reconhecimento dos direitos intelectuais indígenas
associados à biodiversidade e de compensação por sua
utilização.
A
titularidade dos direitos incidentes sobre os recursos genéticos,
quando localizados em áreas indígenas ou associados a
conhecimentos tradicionais indígenas, parece questão
ainda não resolvida de forma satisfatória aos interesses
indígenas, nem mesmo no âmbito da Convenção sobre
Diversidade Biológica (CDB) ou da Decisão Andina sobre
Proteção e Acesso a Recursos Genéticos.
A CDB
estabelece serem os Estados nacionais titulares de
direitos soberanos sobre os seus recursos biológicos, sem
regular precisamente os direitos especiais das comunidades
indígenas que vivem nas áreas onde estão localizados.
Em relação a isso, reconhece (em seu preâmbulo) a estreita
e tradicional dependência de recursos biológicos de
muitas comunidades locais e populações indígenas com
estilos de vida tradicionais, bem como a necessidade
de "repartição equitativa" dos benefícios
derivados da utilização de conhecimentos tradicionais,
inovações e práticas relevantes à conservação da
diversidade biológica. (art.8º) Não vai além de regras
genéricas.
Considerando-se
o fato de que a CDB é um instrumento de direito
internacional, negociado e assinado por representantes de
Estados, parece lógica a ausência de uma regulamentação
mais precisa das relações internas entre os Estados e as
comunidades indígenas que vivem em seus territórios,
naquilo que diz respeito à titularidade de direitos
incidentes sobre os recursos da diversidade biológica. A
CDB recomenda a repartição de benefícios entre os
Estados solicitantes e provedores de acesso, mas não
estabelece regras mais específicas quanto às compensações
às comunidades indígenas. Portanto, a legislação
nacional deve regular estas relações.
Muito
embora o princípio da soberania dos Estados sobre seus
recursos genéticos tenha sido festejada pelos países
ricos em biodiversidade (em geral do Terceiro Mundo), por
representar um avanço em relação ao conceito anterior
de "patrimônio da humanidade", ele pode
representar perdas para as comunidades indígenas, se for
interpretado de forma contrária aos seus direitos e
interesses.
Vejamos o
caso brasileiro. A nossa Constituição Federal estabelece
um regime jurídico muito peculiar para as terras indígenas:
são de propriedade da União (art.20, XI), mas de posse
permanente das comunidades indígenas que nelas vivem,
cabendo-lhes ainda o usufruto exclusivo das riquezas do
solo, dos rios e dos lagos nelas existentes (art. 231,
§3º). A CF reconhece ainda a natureza "originária"
(art. 231, caput) dos direitos indígenas sobre as
suas terras: isto é, o próprio Estado reconhece que os
direitos indígenas são anteriores à sua própria criação.
O
"usufruto exclusivo" sobre os recursos naturais
de suas terras, assegurado constitucionalmente às
comunidades indígenas, significa que essas são também
"usufrutuárias exclusivas" dos recursos
genéticos existentes em seus territórios — estando ou
não associados a conhecimentos tradicionais. Ou seja: a
simples ocorrência de um determinado recurso genético em
uma área indígena dá à comunidade a condição de
"usufrutuária exclusiva" do mesmo, e o acesso a
esse dependerá do seu prévio e informado consentimento,
em termos mutuamente acordados.
As únicas
exceções ao usufruto exclusivo que as comunidades indígenas
têm sobre os recursos naturais existentes em suas terras
são estabelecidas na própria Constituição: 1) o
aproveitamento de recursos hídricos (incluídos os
potenciais energéticos) e 2) a mineração, que só podem
ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas
as comunidades indígenas afetadas e ficando-lhes
assegurada participação nos resultados da lavra (art.
231, §3º).
Vê-se que
a hipótese de acesso de terceiros a recursos genéticos não
está entre as exceções ao usufruto exclusivo dos índios
sobre os recursos naturais de suas terras. Forçoso
concluir, portanto, que as comunidades indígenas são as
"usufrutuárias exclusivas" dos recursos genéticos
existentes em suas terras tradicionais. Saliente-se,
entretanto, que o direito de usufruto exclusivo não
significa que as comunidades indígenas não possam
autorizar o acesso de terceiros aos recursos genéticos de
que são usufrutuárias. Não significa que só as
comunidades indígenas possam empregá-los, com as suas próprias
mãos. Elas podem autorizar o seu acesso a terceiros,
desde que isso atenda aos seus interesses, e se faça de
forma que não viole a sua integridade cultural.
O
reconhecimento de que as comunidades indígenas são
usufrutuárias dos recursos genéticos existentes em suas
terras tem implicações diretas em relação aos
mecanismos de compensação às comunidades indígenas.
Vejamos a seguir.
As
comunidades indígenas deverão ser parte de qualquer
contrato de acesso a recurso genético situado em seu
território — deverão participar das negociações,
estabelecer condições e restrições, exigir garantias
próprias e a devida compensação — mediante a cobrança
de uma determinada taxa de prospecção (para a simples
coleta), e de um percentual fixo sobre quaisquer lucros
gerados com processos ou produtos desenvolvidos com base
em recursos genéticos coletados em seus territórios,
mediante a utilização de seus conhecimentos
tradicionais.
Ser parte
no contrato de acesso é substancialmente diferente de ser
apenas "consultada" ou "informada",
como consta de projetos de lei já apresentados
anteriormente. Saliente-se que a comunidade indígena
titular dos direitos de posse permanente e usufruto sobre
determinado território deve ser parte no contrato de
acesso a recurso genético não apenas quando esse envolva
o chamado "componente intangível" (ou seja,
conhecimentos tradicionais associados aos recursos genéticos).
O simples acesso a um recurso genético localizado dentro
de uma área indígena dá à comunidade a condição de
usufrutuária, e, portanto, de parte no contrato de
acesso, que deverá ser tripartite: Estado (proprietário),
comunidade indígena (usufrutuária) e pessoa física ou
jurídica interessada.
As conseqüências
da soberania estatal sobre os recursos genéticos em relação
às comunidades indígenas já vem sendo objeto de
preocupação em outros países. No Equador, por exemplo,
foi aprovada (em setembro de 96) uma "mini-lei",
com a seguinte redação:
art.1º
- O Estado equatoriano é o titular dos direitos de
propriedade sobre as espécies que integram a
biodiversidade no país, que se consideram como bens
nacionais e de uso público.
Sua
exploração comercial se sujeitará à regulamentação
especial que determinará o Presidente da República,
garantindo os direitos ancestrais das comunidades indígenas
sobre os conhecimentos e os componentes intangíveis da
biodiversidade e dos recursos genéticos e o controle
sobre eles.
Segundo
Elizabeth Bravo, da Accion Ecológica do Equador, a
soberania do Estado é equivalente à propriedade do
Estado (o que, aliás, está muito claro na lei transcrita
acima: o Estado é simplesmente o proprietário da
biodiversidade nacional). O subsolo equatoriano, por
exemplo, está sob a soberania do Estado e é de sua
propriedade, segundo Bravo. Se a biodiversidade recebe
esse tratamento, as comunidades indígenas e locais
perderiam o direito sobre o solo também. (Tal como ocorre
com os direitos minerários, conclui Bravo, em artigo
intitulado Derechos Intelectuales Comunitários sobre
la Biodiversidade: el caso del Ecuador).
O mesmo
acontece no Brasil: segundo o art. 231, §3º da CF, a
exploração mineral em terras indígenas depende de
autorização do Congresso Nacional, ouvidas as
comunidades afetadas e ficando-lhes assegurada participação
nos resultados da lavra. Os direitos em relação ao solo
se distinguem em relação aos direitos minerários, do
subsolo. Subtrair os recursos genéticos do usufruto
exclusivo das comunidades indígenas representaria mais
uma perda.
Não
obstante o avanço que representa a lei do Equador, na
tentativa de proteger o patrimônio genético do país
contra a biopirataria internacional, a caracterização
dos recursos genéticos como "bens de uso público"
seria, no regime constitucional brasileiro, uma afronta
aos direitos indígenas de usufruto exclusivo sobre os
recursos naturais existentes em suas terras. Logicamente,
os recursos genéticos não podem ser "bens de uso
privado", mesmo quando localizados em áreas de
propriedade particular, mas, nos territórios indígenas,
devem ter o seu uso regulamentado de maneira especial.
A preocupação
em resguardar os direitos especiais das comunidades indígenas,
no tocante à concessão de acesso a recursos genéticos
em terras indígenas, associados ou não a conhecimentos
tradicionais, já foi expressa pelo Instituto
Socioambiental em audiências públicas realizadas em SP e
em BSB com o objetivo de discutir o projeto de lei
apresentado pela senadora Marina Silva.
A versão
original do projeto deixa ambigüidades com relação à
participação das comunidades indígenas nas decisões
relativas ao acesso de terceiros aos recursos genéticos
existentes em suas terras. O art.1º estabelece o princípio
da sua "participação" em tais decisões. Já o
art. 6º, parágrafo único, estabelece que as solicitações
de acesso a recursos genéticos em terras indígenas
seguirão regulamento a ser expedido no prazo de 180 dias,
assegurada, em qualquer caso, a audiência das populações
interessadas e a participação de pelo menos um membro da
comunidade nos trabalhos desenvolvidos.
Já o art.
20 estabelece que fica assegurado às comunidades
locais o direito de não permitir a coleta de recursos
biológicos e genéticos e o acesso ao conhecimento
tradicional em seus territórios, assim como o de exigir
restrições a essas atividades fora de seus territórios,
quando se demonstre que essas atividades ameacem a
integridade de seu patrimônio natural ou cultural.
Já a última
versão do projeto a que tivemos acesso (de19/08/96) prevê
a participação da comunidade no contrato de acesso
apenas quando há o componente intangível. A regulamentação
do acesso a recursos genéticos em terras indígenas, no
prazo de 180 dias, é suprimida da última versão do
projeto, sem que fique claro qual o mecanismo substituto.
Conforme já
dito anteriormente, é fundamental que a comunidade indígena
seja parte no contrato de acesso a recursos genéticos
situados em suas terras, independentemente de envolver ou
não o componente intangível. O consentimento informado
prévio das comunidades indígenas deve se manifestar no
contrato de acesso, em que é parte, onde serão fixadas
as condições e restrições.
A lei, por
sua vez, deve estabelecer os patamares mínimos a serem
observados nos contratos de acesso, a fim de proteger os
interesses indígenas de eventuais tentativas de manipulação.
Conforme salienta Gurdial Singh Nijar, da organização Third
World Network, da Malásia, a vantagem dos contratos
é que é mais fácil executá-los fora dos países de
origem, cumpridas certas formalidades, porque muitos países
têm acordos de reciprocidade, enquanto a legislação de
um determinado país não tem nenhum efeito
extraterritorial (in Towards a Legal Framework
for Protecting Biological Diversity and Community
Intellectual Rights - a Third World Perspective).
Assim, uma vez obtida uma decisão judicial acerca do
descumprimento de um contrato, será mais fácil executá-la
em outro país.
Quando se
fala em contratos, é sempre bom pensar naquilo que se
pode fazer em caso de descumprimento por uma das partes e,
nesse particular, Nijar salienta que, nos países em que não
há acordo de reciprocidade para cumprimento das decisões
judiciais, seria bom que a lei exigisse que a pessoa ou
empresa interessada no acesso ao recurso genético fizesse
um depósito de uma quantia destinada a assegurar
eventuais danos causados pelo não-cumprimento do acordo.
Outra hipótese é a lei estabelecer a necessidade de o
coletor obter do seu país o compromisso de indenizar o país
de origem (dos recursos) por quaisquer perdas derivadas da
violação do acordo, e de apresentar os resultados de
qualquer relatório de estudos ou experiências feitos com
a espécie coletada.
Entre as
formas de compensação às comunidades indígenas, devem
ser assegurados não só o direito de serem informadas
sobre todos os resultados da pesquisa, como também de
participarem, se quiserem, das atividades de pesquisa e
desenvolvimento. O tão falado "acesso à
tecnologia" para melhor aproveitamento dos recursos
genéticos deve-se estender também às comunidades indígenas.
Logicamente, a transferência de tecnologia deve-se dar na
forma de intercâmbio e respeitar a integridade cultural
das comunidades indígenas.
Para o
acesso ao recurso genético localizado em um território
indígena, deve ser exigida, além de uma contrapartida
imediata, uma percentagem fixa de qualquer renda derivada
do fornecimento do germoplasma para organizações
comerciais. Outra percentagem deve ser paga pelos
resultados econômicos a serem auferidos com a criação
de um produto ou processo. A própria lei deve estabelecer
um percentual mínimo, bem como determinar que esse seja
obedecido nos contratos, sob pena de nulidade. A
contrapartida imediata, a denominada taxa de prospecção,
pode ser tanto uma quantia em dinheiro como em bens ou
vantagens de outra natureza.
Deve ser
sempre ressaltada a natureza coletiva de qualquer
mecanismo de compensação por conhecimentos tradicionais
indígenas, e ser expressamente proibida qualquer apropriação
individual dos benefícios oriundos de sua utilização
para fins comerciais.
Em relação
ao acesso a conhecimentos tradicionais associados aos
recursos genéticos, deve ser feita uma distinção entre
os conhecimentos de que são detentoras exclusivas certas
comunidades indígenas (já foi citado anteriormente, pelo
Grupo de Trabalho de Socio-Biodiversidade do Fórum de
ONGs, o exemplo do Tiki Uba, um veneno anti-coagulante
usado e manipulado somente pelos Uru-Eu-Uau-Uau, de Rondônia)
e aqueles que são divididos por várias comunidades indígenas,
geralmente de uma mesma região geográfica, e que
dificilmente têm sua origem precisada no tempo.
Em relação
ao 1º caso (conhecimento exclusivo) parece não haver
maiores dificuldades para a concretização da compensação
a ser estabelecida por meio de contrato de acesso
negociado e assinado diretamente com a comunidade. O
contrato deverá estipular que a comunidade fará jus não
apenas à taxa de prospecção e à participação sobre
rendimentos auferidos com a comercialização de
germoplasma, como também a uma percentagem sobre
quaisquer lucros auferidos com a comercialização de
produtos desenvolvidos com base, direta ou indiretamente,
em conhecimentos tradicionais indígenas.
Mais
complexos, entretanto, parecem ser os mecanismos de
compensação quando se trata de conhecimentos divididos
por várias comunidades indígenas. Uma solução seria o
estabelecimento da co-titularidade de direitos e obrigações
entre as várias comunidades, que deveriam ser, então, todas,
partes no contrato de acesso. Essa é a solução adotada
pela proposta equatoriana.
Quando for
possível precisar certas e determinadas comunidades indígenas
como detentoras do conhecimento tradicional, a
co-titularidade parece o sistema mais lógico. Entretanto,
ele não soluciona as situações em que a titularidade do
conhecimento é mais difusa, e não se pode precisar quais
seriam as suas detentoras originárias. Nesse caso, parece
necessária a criação de um fundo específico, a que
seriam destinados os recursos levantados com o pagamento
de taxas de prospecção/royalties sobre recursos
genéticos/conhecimentos tradicionais coletivos associados
à biodiversidade.
Esse fundo
deve ser específico para as comunidades indígenas, e não
pode, sob pena de desvirtuamento total de sua finalidade,
se confundir com outros fundos já existentes (como o
Fundo Nacional do Meio Ambiente, que consta do projeto de
lei apresentado pela Senadora Marina Silva). Deve haver um
fundo específico para gestão dos recursos indígenas,
que também não podem se confundir com os recursos
destinados a outras comunidades locais, dada a sua
especificidade. As comunidades indígenas, além de já
terem alcançado um estágio mais avançado de
reconhecimento formal dos seus direitos por parte do
Estado brasileiro, possuem identidade cultural/étnica que
as distingue com mais obviedade da sociedade envolvente.
Esse fundo
deve ser gerido por um conselho composto de representantes
dos órgãos estatais com atribuições relacionadas à
temática indígena e ambiental, do Ministério Público
Federal (dada a sua incumbência constitucional de
promover a defesa dos direitos indígenas), de organizações
de apoio aos índios, organizações indígenas e
representantes de comunidades indígenas das diferentes
regiões geográficas do país. O conselho deve gerir os
recursos de acordo com os objetivos já indicados na própria
lei, e sempre em projetos em áreas indígenas (visando a
conservação do meio ambiente, da biodiversidade e dos
recursos biológicos in situ, o desenvolvimento
sustentável das comunidades indígenas, bem como sua saúde
e educação, conforme proposta já feita pelo Grupo de
Trabalho de Sócio-Biodiversidade do Fórum de ONGs). Deve
ser criado um mecanismo pelo qual as próprias comunidades
indígenas possam apresentar projetos de desenvolvimento
sustentável em suas terras a serem financiados com
recursos do fundo.
É também
fundamental a criação de uma instância técnica que
assessore as comunidades indígenas na assinatura de
contratos de acesso, informando-as sobre seus direitos,
bem como a criação de um registro especial das inovações
indígenas.
Algumas
propostas concretas têm sido elaboradas em outros países
visando a criação de mecanismos de compensação às
comunidades indígenas pelo acesso a recursos genéticos e
pela utilização de conhecimentos tradicionais.
Na proposta
equatoriana, quando. uma empresa deseja ter acesso a um
recurso genético, deve pagar à comunidade pelo acesso,
devendo o regulamento estabelecer os montantes. Além
disso, qualquer pessoa ou organização que use uma inovação
com propósitos comerciais deve pagar à comunidade local,
dona da inovação, uma importância que represente a
porcentagem de, pelo menos, 15% sobre os lucros obtidos
com quaisquer produtos ou processos que tenham incorporado
tal inovação.
A proposta
equatoriana prevê ainda a criação de um "fundo de
fideicomisso", visando beneficiar esses recursos as
gerações futuras da comunidade local, dona da inovação.
A administração do "fundo de fideicomisso"
deverá ainda ser regulamentado, e esse poderá ser
utilizado tanto na conservação, desenvolvimento e
manutenção da biodiversidade como em programas propostos
pelas comunidades. Prevê ainda que nenhuma inovação indígena
poderá ser objeto de patentes, e que o consentimento
informado prévio das comunidades para o acesso inclui a
possibilidade de que levantem objeção cultural, quando não
desejem que sua inovação seja utilizada com propósitos
comerciais.
Em relação
à distribuição de benefícios, a proposta equatoriana
prevê que, se o recurso for de propriedade de uma
comunidade local, o pagamento se fará a tal comunidade ou
à organização que a representa; em qualquer outro caso,
ao governo e, neste caso, o dinheiro deverá ser aplicado
na conservação e manutenção dos recursos biológicos.
A proposta
equatoriana prevê ainda a criação, pelo Estado, de uma
instituição técnica, que registre as permissões de
acesso, o desenvolvimento e a comercialização promovidos
a partir de inovações comunitárias feitas por qualquer
pessoa ou organização, e prevê que essa instituição
deva ter um percentual mínimo de membros de comunidades
indígenas nomeados por suas organizações.
Já a
proposta colombiana, elaborada pelo Grupo ad-hoc de
Biodiversidade da Colômbia, estabelece dois regimes
diferentes para a tramitação das solicitações de
acesso aos recursos genéticos: 1) regime especial de
acesso, pelo qual tramitam as solicitações e se definem
as condições de acesso a recursos associados ao
conhecimento tradicional. Esse regime está associado ao
sistema sui generis de propriedade intelectual,
cuja característica é evitar a apropriação individual
dos direitos sobre o conhecimento coletivo. 2) regime
geral de acesso, pelo qual tramitam as solicitações de
acesso a recursos que não envolvam conhecimento
tradicional. Esse regime está associado a sistemas
individuais de propriedade intelectual (patentes e
direitos do obtentor vegetal).
Entre as
solicitações sujeitas ao regime especial de acesso, estão
aquelas apresentadas por comunidades locais para
investigar ou fazer inventários sobre recursos de seus
territórios, solicitações de acesso a recursos
situados em territórios indígenas ou de comunidades
negras ou as destinadas a investigar aqueles que
tenham um conhecimento coletivo associado.
Prevê a
regulamentação do regime especial de acesso no prazo de
um ano, bem como, dentro do mesmo prazo, do "sistema sui-generis
de direitos coletivos de propriedade intelectual",
mediante um processo de consulta que deverá contar com a
ampla participação das comunidades locais, devendo o
governo nacional garantir os recursos financeiros e o
apoio logístico requerido para esse propósito.
De acordo
com o regime especial (além dos requisitos estabelecidos
pelo regime geral), deve haver, no mínimo, a identificação
das partes (O Estado e o solicitante do acesso, bem como a
identificação da pessoa ou comunidade que provê o
recurso, anexando o consentimento dessa para permitir a
disponibilidade do bem, assim como a identificação dos
mecanismos que garantam a proteção da integridade
cultural e do conhecimento da comunidade envolvida), as
obrigações gerais do receptor e dos provedores (país e
comunidades), inclusive o dever de informá-los sobre
futuros usos e a proibição de transferência a
terceiros, a aceitação de que o contrato se rege pelo
sistema de direitos coletivos de propriedade intelectual,
distribuição de benefícios entre o receptor e o
provedor pelo acesso ao recurso, como também pelos benefícios
que possam ser gerados posteriormente, bem como o direito
das comunidades de restringir o acesso quando surjam
motivos que fundamentem a objeção cultural.
No capítulo
IX, que trata da proteção do conhecimento, o governo
nacional reconhece e se compromete a promover e defender
os direitos das comunidades locais para que essas se
beneficiem coletivamente de suas tradições e a para que
sejam compensadas pela sua constante tarefa de conservar e
criar materiais biológicos úteis. Nesse contexto
reconhece e se compromete a defender os direitos dessas
comunidades de proteger seu conhecimento tradicional e
coletivo, seja mediante direitos de propriedade
intelectual ou mediante outros mecanismos.
A proposta
de lei da Malásia (o Community Intellectual Rights Act),
elaborada pela organização Third World Network,
parte dos seguintes conceitos básicos: 1) as comunidades
locais e indígenas são os custodians (ou stewards)
legais e de forma perpétua da inovação; 2) quaisquer
direitos de monopólio exclusivo em relação à inovação
serão nulos; 3) o intercâmbio entre as comunidades deve
ser livre, desde que não tenha finalidade comercial; 4)
qualquer pessoa, órgão, organização ou empresa que
pretenda fazer uso comercial da inovação ou parte dela
deve: ¾ obter o consentimento escrito da comunidade local
e pagar à comunidade local, que é a custodian ou steward
de tal inovação, uma quantia que represente uma
percentagem mínima sobre as vendas brutas de qualquer
produto ou processo que incorpore tal inovação. Qualquer
comunidade indígena pode optar pelo pagamento de uma
compensação não-monetária, de acordo com seus usos,
costumes e tradições; 5) fica proibida a concessão de
exclusividade da utilização comercial a uma pessoa ou
empresa; 6) o pagamento deve ser feito a uma organização
registrada como representante da comunidade local, ou para
o Estado, quando essa organização não exista e até que
seja registrada (ficando o Estado na condição de trustee).
Em relação a uma inovação em que não seja possível
identificar o inovador, para o Estado, que deverá aplicar
o dinheiro na proteção, desenvolvimento, manutenção
dos recursos genéticos (desde que, quando seja possível
identificar o inovador, o pagamento seja feito a ele); 7)
todo dinheiro ou o equivalente recebido pela comunidade
local, ou pelo Estado como seu trustee, deverá ser
usado de acordo com a decisão a ser tomada pela
comunidade, que pode incluir mas não está limitada à
proteção, desenvolvimento e manutenção de recurso genético.
(No Direito
brasileiro, está previsto no Estatuto das Sociedades Indígenas,
ainda em tramitação no Congresso Nacional, que as
comunidades indígenas têm personalidade jurídica, e,
portanto, não há necessidade de registro da comunidade
indígena para que adquira personalidade jurídica.)
Está
prevista na proposta da Malásia também o registro de
invenções. Segundo este, a comunidade poderá fazer o
registro de sua inovação, desde que a ausência de
registro não prejudique os seus direitos intelectuais
coletivos, e o ônus da prova cabe a quem contestar os
direitos intelectuais indígenas. Também devem ser
nomeadas, pelo Estado, e com o consentimento das
comunidades, instituições técnicas para identificar e
caracterizar as inovações indígenas.
Quando mais
de uma comunidade detém o conhecimento, todas elas terão
direitos e obrigações iguais, e qualquer pagamento será
repartido igualmente. Se uma comunidade recebe qualquer
remuneração por uma inovação comum, ela ficará como trustee
da quantia que cabe à outra. Para facilitar a prova do
conhecimento tradicional, bastará uma declaração de
membros da comunidade, ou qualquer outro meio de prova
produzido de acordo com usos, costumes e tradições indígenas,
e o ônus da prova em contrário deverá caber à pessoa
ou empresa que esteja fazendo uso ilegal do conhecimento.
Entre os requisitos para alguém obter uma autorização
para coletar recursos genéticos em áreas indígenas deve
estar, no contrato, a obrigação de respeitar os direitos
intelectuais coletivos.
Finalmente,
é importante reiterar crítica geral ao projeto já
formulada anteriormente pelo Instituto Socioambiental.
Refere-se ao fato de o mesmo atribuir apenas ao Poder Público
a incumbência de "preservar a diversidade biológica"
do país, e não a toda a sociedade. Todo o projeto parece
estar imbuído desse espírito, que não prevê mecanismos
concretos de participação da cidadania no controle sobre
o acesso e a utilização dos recursos genéticos
nacionais.
Nesse
particular, parece salutar a inclusão, na proposta de lei
elaborada pelo Grupo ad hoc de Biodiversidade da
Colômbia, entre os seus princípios gerais:
1º artigo:
A Nação exerce direitos soberanos e inalienáveis
sobre a diversidade biológica e os recursos genéticos
existentes no território nacional; em consonância com os
princípios constitucionais, o exercício dessa soberania
é compartilhado com a sociedade civil. Portanto, é dever
e direito de todos os cidadãos e do Estado proteger
conjuntamente a diversidade étnica e cultural, o patrimônio
natural da nação e a integridade do ambiente.
Prevê
ainda que Corresponde ao Estado prover os mecanismos
que garantam uma participação cidadã justa, equitativa
e efetiva para a proteção de seus direitos e interesses
coletivos e individuais naquelas decisões que afetem o
patrimônio genético e cultural.
A lei
brasileira deveria incorporar princípio semelhante, de
parceria entre o Estado e a sociedade civil na defesa do
patrimônio genético e cultural do país, prevendo
mecanismos concretos para tanto: por exemplo, deve
atribuir legitimidade não apenas às comunidades indígenas
para que possam defender judicialmente o seu patrimônio
genético e cultural, mas também ao Ministério Público
Federal e às organizações da sociedade civil, tal como
ocorre na lei que regula a ação civil pública (Lei n.
7.347/85), que atribui legitimidade não apenas ao Ministério
Público, mas também às associações para promover a
defesa do meio ambiente, do patrimônio histórico e
cultural e do patrimônio público e social em geral. O
importante é que, quando haja benefícios econômicos,
esses sejam atribuídos às comunidades indígenas
detentoras dos conhecimentos tradicionais, e que essas
tenham prioridade nas iniciativas que sejam de seu
interesse mais imediato.
O mesmo
deve-se dar em relação às organizações indígenas e
aos membros das comunidades indígenas enquanto tais.
Embora os direitos intelectuais das comunidades indígenas
sejam coletivos, e não possa ser reivindicada a sua
titularidade em nível individual, todos os membros da
comunidade, bem como suas organizações, devem tomar
iniciativas visando protegê-la. Afinal, essa é
justamente a principal característica do direito.
coletivo: o fato de qualquer titular poder tomar
iniciativa para defendê-lo, ainda que só beneficie o
todo.
Juliana Santilli é
assessora jurídica do Instituto Socioambiental
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