
Maria
Rita Kehl
Psicanalista
A
dobradinha “você decide e Freud explica” sintetiza,
a meu ver, duas formas de alienação características
da subjetividade moderna:
de um lado, o delírio de autonomia que consiste
em acreditarmos que não devemos prestar contas a
ninguém a respeito de nossas escolhas, nem pagar
qualquer preço por elas. De outro, a esperança de que
uma certa psicanálise venha nos socorrer para
fundamentar e desculpar nossos atos através da
explicação das motivações inconscientes, que
serviriam assim como justificativa para o exercício da
soberania narsísica do cidadão reduzido ao estatuto de
consumidor.
A
psicanálise e a publicidade funcionam, assim, como duas
técnicas privilegiadas de produção de subjetividade.
Em entrevista ao psicanalista Contardo Calligaris para o
caderno Mais! do jornal Folha de São Paulo (5/11/94),
o fotógrafo Toscani, responsável pelas campanhas
publicitárias da Benetton, chamou a atenção para o
fato de que os gastos com publicidade nos países ricos,
hoje, são cerca de duas vezes superiores aos gastos com
educação pública. Guardadas as devidas diferenças
orçamentárias, o número revela que a publicidade é
mais presente e mais eficiente como produtora de
subjetividade do que a formação escolar tradicional,
no Ocidente.
A
publicidade convoca os sujeitos a apostar em sua
onipotência. O sujeito das “culturas do narcisismo”
no dizer de Christopher Lasch, adaptado às condições
desejantes das grandes sociedades de mercado
(independente de suas condições materiais), acredita
que tem uma espécie de direito natural ao desfrute de
todos os bens que a publicidade lhe oferece ou, pior
ainda, acredita que tem uma espécie de dever de
desfrutar deles. No discurso publicitário,
evidentemente, o dever de gozar suplanta toda
interdição ao gozo que funda as sociedades humanas -
suplanta até mesmo a dimensão fundamental do
Princípio de Realidade, que nos ensina que nenhum
desfrute é possível sem um adiamento inicial, seguido
de um certo investimento de, digamos, trabalho físico
ou mental. O sujeito onipotente da Cultura do Narcisismo
vive um delírio semelhante ao que Freud descreveu como
o estado psíquico regido pelo Princípio do Prazer: sem
história, sem mediação de tempo e esforço entre
desejar e obter, sem dívida para com nenhum passado,
nenhuma instância paterna. É o self-made-man
imaginário (como todo self-made-man), que se acredita
sem outro compromisso a não ser com o próprio gozo, ao
qual a mídia publicitária - ou a mídia em geral, já
que toda mídia é pautada pelos imperativos da
publicidade - apela
incessantemente.
Ora,
gozar plenamente é tão impossível ao ser humano
quanto renunciar completamente ao gozo, mas o sujeito
contemporâneo não sabe disto - esta é a dimensão de
sua alienação que chamei de “você decide”, quando
a “decisão" se inscreve não no registro
político da cidadania (dimensão construída
coletivamente) mas no registro privado do consumo. Esta
forma de alienação exige o recalque da dimensão
simbólica que sustenta as formações sociais. O
sujeito das culturas do narcisismo se esquece de que
até mesmo a liberdade de escolhas de que desfruta hoje
é fruto de uma história de trabalho e sacrifícios
humanos -
encarnados e atualizados nas mercadorias.
O
esquecimento é necessário para produzir a dimensão
imaginária de um gozo sem dívidas e sem limites. O consumidor contemporâneo
representa a si mesmo como um eterno filho do presente,
sem história e sem lei,
regido por um pastiche do Princípio do Prazer e
voltado para um futuro imediato que só lhe promete mais
mercadorias. Na velocidade própria das sociedades
industriais sustentadas por uma produção de tecnologia
que ultrapassa os indivíduos, tudo parece “caído do
céu”: os objetos não têm história nem parecem
encarnar um capítulo da grande construção das
sociedades humanas.
A
filósofa Hannah Arendt
chama a atenção para o fato de que, ao
contrário do que as aparências poderiam indicar, o
preço pago por este esquecimento ativo das nossas
origens é de conformismo e resignação em relação
às condições do presente, já que todo desejo de
mudança, apartado da consciência do que nos determina,
se esgota numa rebeldia inútil. Ou na crença de que
nada se pode fazer para transformar o que está posto,
pois ignoramos que o que está posto foi, algum dia,
construído por nossos antepassados. Arendt escreve que
somos prisioneiros das tradições que recalcamos: “o
fim de uma certa tradição não significa
necessariamente que os conceitos tradicionais percam
poder sobre as mentes dos homens. Pelo contrário, às
vezes parece que este poder das noções e categorias
cediças e puídas torna-se mais tirânico à medida que
a tradição perde sua força viva e se distancia da
memória de sua origem. Ela revela toda sua força
coercitiva somente depois de seu fim, quando os homens
nem ao menos se rebelam contra ela”. Ao que está se
referindo esta passagem, senão ao poder de “eterno
retorno” próprio do recalcado? O texto de Hannah Arendt não faz um apelo conservador pela manutenção das
tradições; faz um apelo ao desesquecimento das origens
do presente, do caráter histórico (portanto mutável)
de situações que tendemos a considerar como naturais e
imutáveis.
Uma
das respostas a esta forma de alienação contemporânea
é a neurose. Por que as sociedades modernas produzem
culpa e neurose, se elas apelam incessantemente para que
o sujeito goze sem culpa e seja feliz? Por que as
formações sociais não sustentam mais os sujeitos,
escreveu Freud em Totem e Tabu. Em sociedades
arcaicas, as estruturas simbólicas determinavam os
destinos dos sujeitos. Laços de parentesco, a posição
dentro da família, origem de classe, etc, decidiam pelo
sujeito, em grande parte, a vida que ele deveria ter. A
neurose se produz quando o sujeito se acredita senhor de
seu destino, e inteiramente responsável (portanto
culpável) pelo que fizer dele. Penso que esta
esperança moderna contém um germe de libertação
individual - vivemos aliás em sociedades do
individualismo - mas contém também as condições para
que o oposto se realize, o aprisionamento dos sujeitos
na culpa neurótica pelo que não consegue realizar.
Não quero me aprofundar aqui sobre todas as condições
de produção da neurose, mas apontar para uma delas, a
meu ver fundamental: o recalque da dimensão simbólica
que transcende os indivíduos e, em larga medida, ainda
determina seus destinos. O sujeito moderno é neurótico
porque se acredita soberano e o que é pior, acredita
que a soberania é condição de sua liberdade. Assim,
ele está sempre angustiado diante de um excesso de
responsabilidade não para com os outros mas para
consigo mesmo - só o reconhecimento do Outro, da
dimensão coletiva que também determina sua vida e
delimita seu destino poderia aliviá-lo deste
sofrimento, desta eterna culpa por não conseguir ser
tudo, possuir tudo, gozar de tudo.
A
psicanálise, outra técnica moderna de produção de
subjetividade, vem sendo convocada pela mídia para
resolver este impasse, da pior maneira possível, como
se lhe coubesse inventar uma solução de compromisso
entre o imperativo do gozo e a angústia neurótica dos
sujeitos, que nem ao menos entendem por que não
conseguem gozar da herança que lhes foi legada pela
história. Nas últimas décadas, a mídia vem tentando
transformar a psicanálise numa espécie de panacéia
consoladora
das frustrações e/ou legitimadora das transgressões
que se cometem em obediência ao imperativo do gozo.
A
psicanálise substitui as ciências sociais como
fantasia de panacéia universal na medida em que o homem
social, político, vai sendo substituído pelo homem
psicológico. É claro que os sujeitos das culturas do
narcisismo são tão sociais quanto quaisquer outros,
mas têm que se acreditar livres e soberanos para tudo
desejar e tudo consumir.
A
mídia recorre à psicanálise em busca não de
intervenções que destruam esta forma de alienação,
mas de explicações apaziguadoras da angústia que a
onipotência produz. “Você decide e Freud
explica" seria a dobradinha ideal para apaziguar a
má consciência do homem moderno sem estragar sua
condição de criança mimada do discurso publicitário.
Em nome de uma explicação “freudiana”, tudo é
permitido. A idéia de que a verdade freudiana do desejo
é passível de realização e reconhecimento no mundo
das mercadorias é um subproduto da banalização da
psicanálise pela mídia, que busca num certo discurso
psicologizante legitimar a infantilidade de seu próprio
público. Do mesmo modo, as ideologias neoliberais
banalizam os direitos de cidadania dos indivíduos,
confundindo-os com direitos do consumidor - o que
significa que os que estão abaixo de um padrão
significativo de consumo, não possuem direito algum.
No
Brasil, particularmente, o enfraquecimento das
instituições que deveriam sustentar a lei e zelar por
seu cumprimento para todos sem exceção,
contribuiu para esta passagem tipicamente moderna, em
que os conflitos que deveriam se dar entre os
indivíduos e as instâncias públicas se transformam em
conflitos íntimos, entre instâncias psíquicas
subjetivas. Aquilo que deveria ser decidido fora da
subjetividade, pelo temor à lei ou pelo enfrentamento
entre os que transgridem e os que defendem a lei,
transforma-se num drama subjetivo cuja solução deve
ser “explicada" pela psicanálise. Dostoiévski
antecipou este mal-entendido moderno criando o jovem
Raskólhnikov,
compelido a praticar um crime, qualquer crime, para
comprovar a liberdade que lhe conferia sua superioridade
intelectual, livre das amarras terríveis do catolicismo
russo.
Se
o pacto simbólico foi esquecido - ativamente esquecido,
esquecimento que a mídia produz diariamente - ou
desqualificado; se a dimensão
coletiva das interdições que sustentam a vida
em sociedade está obscurecida pela onipotência das
elites que se acreditam acima da lei; se todos os
indivíduos são igualmente convocados a gozar de
privilégios que por sua própria natureza excluem a
grande maioria, estão dadas as condições para a
expansão, no melhor dos casos, do conflito neurótico -
no pior, da perversão dos laços sociais. Se cada
indivíduo vive suas escolhas como se fosse soberano,
às custas de todos os seus iguais, paga por isto o
preço altíssimo de se ver destruindo os laços sociais
que o sustentam.
Por
fim, gostaria de sugerir alguns preconceitos produzidos
em conseqüência deste mal-entendido contemporâneo. Em
primeiro lugar, já que todos são convocados
para gozar de privilégios - o que seria
impossível - logo se estabelece uma distinção
entre quem goza e quem não goza nas sociedades de
consumo, implicando numa diferença de qualidade entre
os sujeitos: capazes e incapazes, competentes e
incompetentes até, no limite da perversidade,
merecedores e não merecedores (de privilégios, de
excessos, etc). A sociedade se divide entre os que
“conquistam” o direito de gozar e os outros,
otários, a serem usados e abusados pelos mais espertos.
Em
outras palavras: quem é e quem não é cidadão, no
sentido definido pela Declaração dos Direitos do Homem
(que fundou a modernidade!), passa a ser decidido em
termos de quem é e quem não é consumidor. No Brasil
isto fica ainda mais terrível , uma vez que cerca de um
terço da população
está abaixo dos padrões de consumo considerados
mínimos pelas pesquisas de mercado - abaixo do que as
empresas de publicidade chamam de “classes C e D”.
Excluídos tanto do “você decide" quanto do
“Freud explica”, estes milhões de brasileiros,
estes absolutamente outros, parecem não
pertencer à mesma ordem simbólica que nós - não
sendo consumidores, também não seriam cidadãos.
Assim,
o maior preconceito em vigor no Brasil, hoje, não é de
raça, gênero ou credo - é o preconceito contra os
pobres. A palavra
deve ser politicamente incorreta, mas já que convivemos
tranqüilamente com o fato, ela não deveria nos chocar:
estamos convencidos de que os que não consomem, valem
menos do que nós. Junto a isto, cria-se um preconceito
contra todos os projetos que ainda chamaria de
esquerdistas, isto é, que partem do ideal iluminista de
que uma sociedade deva ser capaz de criar soluções
coletivas, racionais, que sacrifiquem privilégios
individuais a favor de direitos democráticos. Diante do
imperativo do gozo, tais ideais parecem ingênuos,
fantasiosos. Já nos esquecemos que até mesmo os
privilégios “conquistados" por uma elite, hoje
consolidada, na sua origem dependeu de condições
coletivas favoráveis - ou, o que é pior, de uma certa
prática consentida de apropriação de bens públicos.
O
esquecimento nos condena a uma eterna indiferença,
perturbada somente pela angústia que nos avisa que
nenhuma situação de privilégios dura para sempre. Nos
condena a um estado de adolescência permanente,
impotente e ansiosa, em que cada um se acredita sempre
capaz de, sozinho, partir do zero e conquistar o mundo -
e quanta culpa sentimos ao ver que isto não acontece!
Esta adolescência envelhecida do homem contemporâneo,
acompanhada do medo pânico de nossos únicos limites naturais-
o envelhecimento, a morte - não oferece nenhum porto
onde possamos ancorar ou de onde zarpar o navio de
nossos sonhos, já que nos rouba a dimensão coletiva e
histórica a que pertencemos. Assim, até os mais belos
sonhos se transformam em delírios narcísicos,
impotentes na medida justa da nossa fantasiosa
onipotência. Termino com um verso da poeta Ana Cristina
Cezar sobre a adolescência: “É sempre mais difícil/
ancorar um navio no espaço”.
Consumo:
o que é, o que não é...
P:
Quando a psicanálise vai chegar às favelas e aos
cortiços de São Paulo?
Bom,
na verdade a psicanálise não chega às favelas e aos
cortiços. De vez em quando alguém de cortiços e
favelas procura um psicanalista. Às vezes chega, não
sei como. O cara conhece alguém, que
conhece alguém, que conhece alguém, cai no
consultório do psicanalista, e funciona, todo mundo no
inconsciente é igual, ou seja, essa história de que
não adianta fazer psicanálise, porque eles não vão
entender, porque a cultura é outra, não tem, o
inconsciente é uma coisa muito democrática. Eu já
tive poucos pacientes quase analfabetos, que me vieram
por caminhos muito obscuros, e você fala "talvez o
seu desejo seja esse, e talvez eu esteja entendendo que
você quer dizer isto", e o cara entende como se
fosse um universitário. Quer dizer, a linguagem do
inconsciente talvez seja uma das mais universais, então
eu não teria nenhum problema da psicanálise chegar aos
cortiços e favelas.
P:
A sociedade de consumo privilegia a individualização.
A libertação dessa sociedade de consumo deve então
partir de uma iniciativa individual para que se possa
alcançar a dimensão coletiva? Por favor, comente.
Bom,
não é que eu não ache que, individualmente, a gente
não possa sair disso que eu estava chamando da
alienação produzida pela sociedade de consumo. Eu acho
que se pode. Em geral os tipos românticos de todas as
sociedades, não só da nossa, são os tipos que
individualmente rompem com os padrões e que bom quando
a gente consegue, é um prazer duplo! É o prazer de
romper e o prazer de se sentir um indivíduo muito
especial, porque não está no padrão de todo mundo.
Mas isso já é um critério bem sacana de
individualidade. "Eu sou melhor do que os outros,
porque eu rompi com os padrões individualistas".
Eu acho que de qualquer maneira, soluções e
rompimentos só são possíveis coletivamente.
Indivíduos podem até morar no deserto, como tentaram
os jovens nos anos 70, com toda a ruptura da cultura
hippie, etc., etc. Agora essas rupturas que isolam, em
geral elas tendem a ser de novo engolidas. A ruptura que
isola, o próprio mercado faz daquilo um paradigma, faz
daquilo um padrão desejável, e você se vê de novo
sendo engolida. Toda mudança consistente tem que ser
coletiva, mudanças individuais servem para a história
de vida de cada um, mas não é isso que vai mudar a
sociedade.
P:
De onde vem a influência que possibilitou a formação
das inúmeras ONG’s, as Organizações
Não-Governamentais, que defendem direitos humanos,
ambiente, interna e externamente ao sujeito narcisista?
É um novo tipo de ocupação "cult" permitido
pela sociedade de consumo?
Olha,
eu não posso historiar da onde vem a formação das
ONG’s. Eu entendo a ironia de quem fez essa pergunta,
e eu vou fazer a minha leitura dessa ironia, que numa
sociedade de mercado, de mídia, de imagem, de
narcisismo, qualquer iniciativa de ruptura pode ser
tomada como um fenômeno de mercado, cult ou não
cult. Mas eu não acho que isso esgota o assunto,
eu acho que as ONG’s vem substituir outras
organizações da sociedade civil que foram engolidas.
Eu acho que isso sempre vai acontecer, quer dizer, cada
vez que instituições que são feitas para civilizar a
sociedade forem engolidas pela corrupção, enfim por
toda essa incivilidade reinante, novas instituições
vão se formar, sejam ONG’s, sejam novos partidos
políticos, etc. Eu acho que isso é muito saudável.
Pior é se ficassem aquelas velhas instituições
tentando dar conta de tudo, se corrompendo e se
esvaziando de sentido. Eu acho que as ONG’s são mais
interessantes do que meramente um fenômeno cult.
Eu acho que são instrumentos de luta mesmo.
P:
Existe a possibilidade de gozo e cidadania a quem
não admite corromper-se, sem querer levar vantagem em
tudo e sempre? Existe a possibilidade de se tornar um
consumidor de educação, lazer, cultura, bem-estar em
geral, bens de consumo em uma sociedade de consumo? Como
consumir sem se corromper?
Primeiro
eu acho que tem aí uma espécie de um preconceito, não
no sentido negativo, do preconceito intencional, mas com
uma má formação de conceito da pessoa que faz a
pergunta, de que achar que educação, lazer, saúde,
etc. são bens de consumo. Não são bens de consumo.
Seriam direitos coletivos que a própria sociedade devia
garantir a todos cidadãos, isso é muito diferente de
bem de consumo. Justamente o que eu percebo é que tem
já uma perversão do nosso pensamento de achar que tudo
isso é consumir, isso não é consumir, isso é
usufruir de direitos, o consumo já são necessidades
secundárias. Quer dizer, eu ter que comer, o que
vestir, onde morar, isso não é consumismo, isso são
direitos para poder ser um cidadão civilizado numa
sociedade que concede a todos esse direito, dentro da
perspectiva de direitos humanos. Então isso não tem
nada a ver com consumismo.
Além disso, aquilo que eu vou consumir, eu acho
que a questão é você consumir dentro do que você
pode, o problema é você achar que você tem consumir
tudo, e cair nessa alienação de que se você
não consumir tudo você é um otário. Uma vez eu achei
muito graça de ouvir uma esposa de um prefeito de
cidade do nordeste, o estado queria que se tornasse
área de proteção ambiental e a prefeitura queria
lotear e vender. E a esposa do prefeito, que estava ali
na sua casa de esposa de coronel nordestino, que já
agora não era mais
coronel mas político, manipulando ali,
dizia assim: “bom a gente não pode ser ingênuo, né,
eu também tenho que comer.” Essa pessoa não estava
com nenhum problema de ter que comer, o problema dela
não era de sobrevivência, ela queria lotear a área,
vender e passar a mão no que pudesse daquele dinheiro,
já não tinha mais nada a ver com comer, e nem com consumir sapatos, bolsas e
cinemas, tinha a ver com o excesso do excesso do
excesso, porque ela achava que ela tinha que ter
direito, porque ela era a esposa do prefeito, e ela
nasceu numa elite, afinal de contas, econômica, e
evidentemente numa ralé mental. Mas de qualquer
maneira, é essa mentalidade que alia o consumo à
corrupção, quer dizer, as pessoas dizem: “é, eu
tenho meus filhos para criar, eu não posso passar
fome”, ou seja, eu tenho que ter piscina, jatinho,
isso não tem nada a ver com passar fome. Então eu acho
o seguinte, não tem para todos nesse nível, não tem e
não tem porque ter. O prazer pode passar por mil outras
coisas, e principalmente pela convivência, pelas formas
de sociabilidade, pelas formas criativas de produção
de lazer, de arte, etc. Então achar que tem que ter
jatinho, celular, carro importado, helicóptero para
todos, evidentemente não vai ter e esse “pega para
capar”, desculpem a expressão, é para ver quem chega
primeiro. Eu acho que nesse nível não há como
consumir sem se corromper.
P:
Se existem preconceitos em todas as épocas, em todas
as sociedades, em todas as culturas, será que o
preconceito não faz parte da natureza humana?
Eu
acho que sim, eu acho que faz parte da natureza humana,
e é por isso que a gente tem que combater. Como o crime
faz parte da natureza humana, como o estupro faz parte
da natureza humana, como o incesto faz parte da natureza
humana, e como eu coloquei, e não é uma idéia minha,
a gente cria civilizações para melhorar a natureza
humana, se a gente estiver entregue à natureza humana,
a gente está entregue à barbárie. Então dizer que o
preconceito faz parte da natureza humana de maneira
alguma justifica que a gente o aceite.
P:
Esta palestra, você a tem publicada em algum livro,
ou em caso negativo, duas ou três obras que você
recomenda para leitura?
Pelo
que o Júlio acabou de nos informar ela vai ser
publicada, então até aí não tem problema. Ela nem
está redigida, mas eu vou entregar em tempo e ela vai
ser publicada nesse livro, que os organizadores estão
fazendo. Eu citaria um obra. Minha fala não foi muito
baseada em obra, eu fui juntando essas coisas, mas tem
um trabalho que para mim foi fundamental, que foi, e
até é uma coisa muito conhecida e muito antiga já, de
uma pensadora que é Hannah Arendt. É um livro, já tem
vinte ou trinta anos, chama-se Entre o Passado e o
Futuro, era da Editora Perspectiva, não sei se
está reeditado, se ainda está em circulação. Ele tem
dois capítulos que são fundamentais sobre essa
questão da alienação contemporânea, um que se chama O
que é tradição?, e um outro que se chama O que
é Liberdade?. Nesses dois capítulos eu fundamentei
muito minhas reflexões, se alguém estiver interessado,
eu recomendo.
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