
Alberto
Dines
Jornalista,
escritor e professor
No
princípio está o verbo, no princípio é o verbo. A
palavra é crucial. Se a proposição das Escrituras é
correta, antes de cuidarmos das idéias, tratemos dos
vocábulos que as formarão e conformarão. Não somos
etimologistas, muito menos filólogos, mas voces na
profissão que escolheram e eu na minha, temos na
palavra a matéria-prima essencial.
Comecemos
pela própria orígem do termo palavra. Vem do grego parabolé
que, no latim deu parabola. Parábola é uma história
simbólica, alegoria. Então, neste preâmbulo, façamos
uma incursão parabólica sobre as palavras-chave que
aqui nos reunem esta noite.
O carro-chefe deste simpósio
é o Preconceito.
Certamente alguns dos que me precederam já examinaram a
etimologia e o sentido do termo. Se o fizeram, tanto
melhor, o symposión grego era um banquete onde todos
entravam com o seu quinhão e saíam com a soma dos
aportes dos outros.
Preconceito,
pré+conceito, o praeconceptu latino, é um
julgamento prévio, sem ouvir as partes,
posição irrefletida, pre+concebida, irracional.
Também pode ser entendido como um pré+juízo.
Tanto que em espanhol diz-se prejuício, em francês
é prejugé, em inglês prejudice e em
alemão vorurteil. Em todos os casos, a mecânica
etimológica é idêntica: o prefixo indicando antecipação
e, o resto, significando julgamento.
Fiquemos
com o nosso idioma, o português, a última flor do Lácio,
no qual o preconceito também significa dano, estrago,
perda. Em outras palavras, a adoção sumária de uma
opinião ou critério, antes de passar pelo filtro de um
julgamento equânime, constitue um mal, ofensa moral.
Examinado
o aspecto filológico do preconceito vamos ao título
?? desta intervenção. É composta de três substantivos
que também serão devidamente peneirados.
Mídia, vem do latim e deveria escrever-se media,
plural de medium, mas como sempre macaqueamos os
americanos, acabamos por roubar-lhes a pronúncia mas não
a grafia. Escrevem media como os romanos o faziam
e nós, descendentes diretos dos romanos, escrevemos mídia.
Mas media ou mídia é plural. Em Portugal, onde se fala
e escreve com mais propriedade o
nosso idioma comum, eles dizem os média
enquanto nós dizemos a mídia, no singular.
Não
é a única e nem será a última impropriedade de usos
e costumes legalizada por nós. (Aliás, permitam-me
esta observação: se fossemos menos lenientes nas
pequenas coisas, não seriamos transgressores nas coisas
importantes).
Medium
é meio,
modo, maneira, forma, via, caminho, condição em que se
executa uma tarefa. Na linguagem técnica da comunicação medium designa o canal
através do qual o emissor
passa
a sua mensagem ao receptor, a audiência.
E
aqui partimos para uma conceituação importante para a
função do jornalista. Se ele trabalha com diferentes
meios, ou canais para chegar à sua audiência, ele é um
mediador. A sua atividade é de mediação ou
inter+mediação. Explico: o jornalista e a
imprensa devem fazer o intercâmbio entre o fato, a
realidade, e aqueles que a desconhecem. Mas, atenção,
a imprensa não é apenas uma divulgadora ou irradiadora
de notícias, informações e serviços. A Lista Telefônica
faz isso maravilhosamente bem.
O
jornalista ao fazer a mediação entre as mudanças que
acabam de ocorrer e aqueles para as quais estas mudanças
importam, es??tá interpretando, refletindo, repercutindo,
dimensionando, hierarquizando e, sobretudo, oferecendo subsídios
para a formação dos juízos individuais.
A
mediação jornalística é, portanto, uma função
social e política e visa, antes de tudo, evitar que a
sociedade seja dominada pelos preconceitos ou pela ignorância
(o que vem dar no mesmo). Explico a semelhança:
se preconceito é fruto de uma atitude de quem
pensa que sabe, a ignorância resulta de quem não
quer ou não pode saber. De onde se conclui -- e
isto é vital para quem estuda as ciências jurídicas
-- que a busca do saber é o caminho para atingir as
condições de julgar.
Não
é por acaso que a função mediadora da imprensa está
presente em várias passagens da Carta Magna seja para
preservar a sua integridade, defendendo-a de quaisquer
constrangimentos, seja para oferecer-lhe facilidades e
privilégios para o seu exercício. A intenção dos
legisladores ao proteger e estimular a imprensa -- e
isto remonta ao século XVII na I??nglaterra -- é criar a
indispensável pluralidade de versões, sem a qual a
democracia não existe.
Juntemos
agora as duas palavras que antes analisamos
separadamente, Preconceito e Mídia. Quando a imprensa
se deixa impregnar pelo preconceito, trai a sua função mediadora e assume-se autoritariamente
como irradiadora de sentenças, arvorando-se em instância
legal.
Quando
adota um preconceito, seja de forma consciente ou
inconsciente, a imprensa, ao invés de ordenar e
ponderar as circunstâncias para que o leitor forme o
seu próprio juízo, antecipa-se e oferece-lhe um
conceito fechado, impermeável, imponderável -- um pré+juízo.
O leitor acostuma-se, resigna-se e, acaba por perder a
sua faculdade de formar os próprios juízos.
Ora,
não é para isto que a sociedade outorga
aos me??ios de comunicação uma série de
vantagens e privilégios constitucionais. A sociedade
para agir nesta ou naquela direção quer, ela própria,
montar os seus conceitos e critérios. Se a imprensa
limita-se a abastecê-la de informações isentas e
equidistantes, cumpre
o seu papel de mediadora. Caso contrário, está
prejulgando e substituindo-se aos poderes competentes.
Mais
ainda: ao deixar-se levar pelo preconceito, a mídia
valoriza e reforça os mecanismos de exclusão e intolerância.
Isto já se nota no próprio perfil do jornalista que
milita na grande imprensa brasileira conforme pesquisa
realizada no ano passado pelo CEBRAP.
Nossas
redações tornaram-se perigosamente homogêneas sob o
ponto de vista etário, cultural e político. Os
jornalistas que praticavam o jornalismo humanista foram
sendo afastados e hoje são raros, substituidos pelo
jornalistas yuppies e tecnocráticos. A exclusão
do Outro é uma das características do processo
descriminatório e uma das marcas do autoritarismo. Sem
?? diferenças de opinião
dentro das redações deixamos de ter diversidade, um
dos fundamentos do processo democrático.
É
evidente que um jornalista, ao deixar-se levar por
preconceitos, não o faz premeditadamente com esta intenção.
As justificativas para enganar o público oferecendo-lhe
conclusões preconcebidas ocorrem gradual e sutilmente.
A paixão por esta ou aquela posição acaba saindo
camuflada por algum obscuro princípio
moral de que, quando se trata do bem-público, os fins
justificam os meios.
Não
é aqui o lugar para uma exegese dos vícios da nossa
imprensa. Mas aqui é, sim, o lugar para fazer a
desagradável constatação de que nunca -- ao menos
nestes últimos 40 anos -- apareceram tantas queixas e
polêmicas sobre os abusos da mídia. Nunca se fizeram
tantos seminários sobre a Ética da Imprensa, nunca (fóra
do âmbito profissional dos jornalistas) ficou tão
evidente a falibilidade daqueles que se assumem como
infalíveis em s??eus juízos e conceitos.
O
preconceito jornalístico obstrui a fluência do
processo democrático porque é um rito sumaríssimo,
sem possibilidades de defesa e argumentação. É uma
interrupção do diálogo civil que as partes procuram
manter para preservar o todo do tecido sócio-político.
O preconceito jornalístico, porque sendo uma transgressão,
estimula o revide e a agressão.
Nossa
imprensa está hoje manietada por um feixe de
preconceitos vociferados que produzem uma clima de arrogância
e insolência. Como a imprensa, mesmo não querendo, faz
a mediação social, a linguagem desabrida passa a ser
um paradigma de coragem e independência, subvertendo-se
a civilidade e, logo depois, o civismo. Permeada por
esta intolerância dos mediadores, a própria sociedade
adota-a como padrão. Não é por casualidade que as últimas
convenções partidárias terminaram em socos e
ponta-pés.
Pratica-se
hoje em nossa mídia um cala-a-boca onde os inocentes são
colocados no banco dos réus como se já fossem
indiciados. Em certos momentos este preconceito avulta
e, por mimetismo, estende-se à toda mídia de que
resultam situações de autêntico linchamento.
Por
que isto? As razões são muitas e, também, não cabem
neste colóquio. Mas uma delas é visível para qualquer
leitor: nossos
jornais estão fragmentados e esta fragmentação começa
com a proliferação das colunas opinativas que hoje se
sobrepõem ao material reporterístico e informativo.
Ora, a sociedade não quer dos jornais suas cadentes
sentenças, quer do jornal um levantamento imparcial das
circunstâncias.
O
preconceito, por sua conotação agressiva, é o adversário
da civilidade. O que nos leva às duas outras palavras
do título: civilidade e civismo. Originam-se da mesma
árvore latina que deu civis, civilis, civitatas,
civilitas, civilitatis. Referem-se ao
??
habitante da cidade, em contraposição ao agricultor
menos polido. É o cidadão, obrigatoriamente
urbano, educado, instruido e respeitoso para com os
semelhantes. É a cidadania, sociedade de seres
com os mesmos direitos e deveres. Civitas é o
aquele centro de poder político, o cerne do Estado e da
Pátria. Civilis é o direito que concerne ao
indivíduo privado.
Conclui-se
assim que civilidade faz parte do processo de
civilização e que civilização não é
apenas um conjunto de conquistas tecnológicas ou econômicas
mas, antes de tudo, um estágio no relacionamento entre
os homens. Urbanidade, responsabilidade e o respeito ao
próximo, além do parentesco etimológico, tem conotações
semânticas com civismo que é devoção ao
Outro, materializada no interesse público e no
bem-estar coletivo.
O
?? cidadão integrado à sociedade é necessariamente um
agente que trabalha
em benefício desta mesma sociedade respeitando a
identidade dos demais, acatando os estatutos gerais e
esforçando-se para o aprimoramento coletivo.
Civismo
também pode ser visto como patriotismo, embora as duas
palavras, ao longo dos 21 anos de regime militar, tenham
assumido conotações negativas. Se formos fugir das
palavras que já foram abusadas e violentadas por
regimes de força, nosso vocabulário estaria hoje bem
reduzido. Reparem que nos campos de concentração
nazistas o lema que encimava os sinistros portões
dizia, Arbeit Macht Frei, o Trabalho Traz a
Liberdade. Então, pergunto: por isso, devemos abandonar
palavras preciosas como Trabalho e Liberdade ?
Não receiemos, portanto, a reutilização do conceito de pátria,
terra natal. Mas cuidado com o patriotismo sem
civilidade -- é o caso dos regimes autoritários, xenófobos
e totalitários. A civilidade é obrigatoriamente cívica,
?? legitimando o respeito ao próximo em termos
institucionais. Um movimento corporativo, onde os
interesses de um grupo sobrepõem-se aos da sociedade, não
é cívico nem promove a civilidade.
Entra
aqui uma palavra que não está no programa --
Democracia -- mas que deve estar presente em todas as
ocasiões em que se falar nos antídotos ao preconceito.
A Democracia não se resume apenas à existência de um
calendário eleitoral regular e à existência dos três
poderes. A democracia, como sistema perene e contínuo,
carece também do exercício cotidiano de um mínimo de
regras de convivência e de tolerância para com o
Outro. A democracia necessita, sobretudo, de uma
imprensa plural e diferenciada, consciente de sua
responsabilidade como mediadora.
E
aqui vamos buscar uma outra palavra que não está no
programa e que a imensa maioria dos jovens infelizmente
?? quase desconhece. Chama-se Fascismo. Eric Hobsbawm na
sua brilhante avaliação sobre o século XX que chama
de "Era dos Extremos", designa as diversas
irrupções fascistas como a ruptura da civilidade,
compreendida esta como um sistema de capilarização da
democracia.
O
fascismo -- qualquer fascismo e ele hoje multiplica-se
com todos os disfarces -- é a supremacia do
preconceito. O fascismo, como aqueles virus que se
transformam e até trocam de identidade, voltou a ser o
grande fantasma político. Justamente pela sua
capacidade camaleônica de camuflar-se e adotar por
mimetismo inocentes roupagens.
O
que se considerava como politicamente correto,
justamente por causa da precariedade desta chancela,
pode esconder tenebrosas aberrações. Veja-se o caso do
Unabomber. Aparentemente é um ecologista radical
disposto a levar às últimas consequências sua rejeição
à maquina, ao progresso e sua defesa da Natureza. No
entanto, seus atos terroristas contra inocentes nada o
distingu??em dos nazistas da Alemanha.
Brigite
Bardot, depois
de ser o símbolo sexual dos anos 60, tornou-se o símbolo
da defesa dos direitos dos animais. Sua recente
manifestação contra o abate ritual dos carneiros por
parte dos muçulmanos da França enquadra-a
perfeitamente dentro do Front National, o partido
ultra-direitista francês, ao qual pertence seu marido,
agremiação inequivocamente fascista.
Os
fundamentalistas islâmicos do Norte da Àfrica e do
Oriente Médio pretendem preservar-se da decadência do
Ocidente, preservando seus usos e costumes. Mas adotam a
brutal e sanguinária pratica política daqueles que
pretendem a eliminação em massa e a solução final.
Há
fascismos de viés direitista e fascismos de viés
esquerdista. Aliás, tanto Hitler como Mussolini sempre
tiveram inclinações sociais e se pretenderam
socialistas, cada um à sua maneira. Eram de direita
pensando serem de esquerda. Hoje há quem se considere
esquerdista sendo, na realidade, enfezado direitista.
Os
judeus que há 100 anos (quando surgiu o fascismo dito
moderno) sempre foram as suas vítimas prediletas tambem
estão sendo infectados pelo agressivo culto ao
preconceito. O assassinato do Primeiro Ministro Rabin
por um fanático religioso da extrema-direita israelense
tem todas as características de um ato fascista. A começar
pelo clima de histeria política insuflado por algumas
lideranças religiosas que tomou conta de Israel quando
foram assinados os acordos de paz. E termina com a
utilização pelo assassino das balas dumdum,
destinadas a estraçalhar as vítimas.
Trago
à baila a ressurgência mundial do fascismo não apenas
porque esta é a minha preocupação política dominante
?? mas porque, como jornalista,
percebo que a disseminação do preconceito na e
pela imprensa -- mesmo os insignificantes e
“justificados” --
leva ao totalitarismo e a uma perigosa situação
de ruptura social e política.
Nunca
é demais repetir que o ser preconceituoso é
basicamente um autoritário e que o fascismo nutre-se
primordialmente dos pequenos preconceitos dos pequenos
ditadores que, num crescendo, acabam convertendo-se em
grandes preconceitos dos grandes ditadores. E, uma vez
instalada a incapacidade para julgar com serenidade,
acende-se o pavio que incendiará todas as reservas de
civilidade.
Se
a imprensa não está advertida nem se mostra sensível
aos perigos desta perigosa bola-de-neve acaba por
produzir um clima propício à irracionalidade e à
selvageria.
Há
dez ou onze anos atrás acabou-se a ditadura militar.
Governo já não é mais sinônimo de vilania. Tudo o
que se fez antes em matéria de resistência ao
regime militar, hoje, numa democracia, precisa
ser repensado e reavaliado. O vale-tudo da década
passada já não se justifica. Mesmo a experiência do impeachment
do Presidente Collor de Mello deve ser colocada numa
redoma para ser estudada pelas próximas gerações. O
papel do jornal e do jornalismo não é derrubar
presidentes eleitos -- o que até pode acontecer
ocasionalmente -- mas é de ajudar a sociedade a tomar
as melhores decisões em seu benefício.
O
papel do jornalista como mediador é criar uma sociedade
mais criteriosa e madura. Inclusive para impedir que
viceje a irresponsabilidade da imprensa.
Interêsses
e preconceitos
P:
As empresas jornalísticas brasile??iras são de capital
privado. Onde reside exatamente a responsabilidade
social dessas empresas?
Belisário
dos Santos Jr.:
Ocorre-me neste momento, a propósito, a lição do
Professor Alberto Cañas Escalante, Embaixador da Costa
Rica perante as Nações Unidas, no momento da aprovação
da Declaração Universal de Direitos Humanos.
A
liberdade de expressão implica necessariamente uma
possibilidade de expressão. Esta possibilidade só é
"rousseaunianamente" assegurada aos oradores
de praça.
Em
relação à liberdade de imprensa, nos termos em que
constante da Declaração, é mais bem uma liberdade
empresarial que liberdade individual ou direito humano,
já que é concebida nos termos de declaraç??ões do século
XVIII, sem contar a enorme quantidade de água que
passou por baixo
dessa
ponte desde então... Hoje o exercício dessa liberdade
é um negócio, e há que cuidar do negócio... Este
necessita de capital e de entradas de capital.
De
empresas nem sempre éticas, depende o exercício da
liberdade de expressão dos cidadãos. De anunciantes
nem sempre éticos depende a liberdade de expressão das
empresas de comunicação.
Conclui
o Professor Embaixador, numa autocrítica nostálgica:
"Os
delegados de 1948 nos sentimos muito orgulhosos no
momento da votação. Mas o século XVIII havia ficado
para trás, e não nos demos conta disso!"
Dines:
Pois é. Eu acho que tem uma definição que pode
dirimir essa pendência entre atividade privada e a função
social. As empresas jornalísticas são privadas, em
todo mundo hoje, com exceção talvez da China e de
Cuba. Mas embora sejam empresas privadas, fazem um serviço
público e sobretudo estão protegidas por uma série de
preceitos constitucionais e privilégios
constitucionais. Sendo assim, elas tem que estar
compenetradas de que prestam esse serviço público e
tem contas a prestar à sociedade.
Isso
não é o que acontece. Todas as tentativas que se fazem
para o acompanhamento e a crítica da mídia pegam
mal, como se diria na linguagem coloquial. O
jornalista e o dono do jornal, e aí estão irmanados o
trabalhador e o dono do capital, ambos rejeitam qualquer
tipo de avaliação da sociedade.
P:
Gostaria que você falasse um pouco sobre a união entre
os grupos mais poderosos dos diversos setores da
imprensa e os interesses particulares de determinados
grupos políticos brasileiros.
??
Eu
faço muitas críticas à atuação da mídia
brasileira, sobretudo nesse período da construção
democrática, mas eu não diria que a mídia brasileira
está comprometida com partidos políticos. Ela tem suas
posições independendo das posições dos partidos. O
que a mídia brasileira tem por tradição, sempre teve
e ela cultiva isso com certo gosto, diga-se, é uma
aproximação com o poder político. É inevitável, mas
mesmo assim nós encontramos sempre, em todas ocasiões,
vozes discordantes que não concordam, ou fazem exceções
ao coro geral de aprovação.
Eu
não acho que o problema da mídia brasileira seja a
conjugação patronal-partidária. É o preconceito que
está vigindo na feitura dos jornais, e na feitura dos
jornais os patrões não interferem. O tom desabrido,
desaforado, enfezado, agressivo, pouco cívico, não são
os donos de jornais que dão o diapasão, isto é de uma
geração que não está treinada na democracia, não
está treinada no respeito ao outro e que está numa
?? posição de mando e assume-se arrogantemente como infalível.
Portanto, eu acho que o problema maior não é a ligação
do poder da
mídia com o poder político, é justamente o que está
sendo feito debaixo do poder da mídia por aqueles que
deviam estar zelando pelos interesses da sociedade.
P:
Você deu ênfase maior à questão da imprensa escrita,
como vê o monopólio estatal da mídia televisiva? O
que seria uma mídia imparcial?
Bem,
eu dei preferência à mídia impressa, primeiro porque
é aquela que eu conheço, em segundo lugar porque é
aquela que deixa marcas. Um editorial seja do SBT, seja
da TV Globo, ele
não
tem a força de um editorial ou de uma coluna opinativa
de um jornal impresso. Essa é a força da palavra
escrita, essa é a força e a perenidade do papel. Essa
é a força que vai manter o jornalismo impresso, a
despeito da tecnologia e dos sistemas on-line,
permanentemente, eu espero pelo menos nos próximos
duzentos anos ainda vitalmente importante. Então eu dou
importância à mídia
impressa,
porque a palavra impressa vale muito mais do que a
palavra falada. Eu não vejo um monopólio estatal na mídia
eletrônica.
O
que me preocupa na mídia eletrônica não são os
jornais, porque os jornais são uma parte ínfima com
relação à programação como um todo. O que me
preocupa é um país onde a educação tem tantas
brechas e falhas e deixou de cumprir a tarefa de formar
cidadãos conscientes, como já fez anteriormente, um país
que carece dessas instituições formativas, a televisão,
não apenas no seu jornalismo, mas a televisão como um
todo, cria uma cidadania trivial, banalizada, sem
profundidade, sem apego à cultur??a, e isto é
extremamente lamentável. Mas isso é o regime da
iniciativa privada, da livre concorrência, esperemos
que com a pluralidade das opções com os canais
dirigidos, sejam por satélites, sejam por cabos, nós
possamos ter opções mais qualificadas para que a mídia
eletrônica possa cumprir seu papel de ajudar, de
auxiliar na formação cultural deste país.
P:
Por favor comente: mídia, religião e preconceito.
Isso
evidentemente exigiria um outro simpósio. Eu acho que
no Brasil o problema de religião é que não tem sido
muito considerado, e sobretudo nosso passado, por causa
do nosso passado português nós estamos esquecendo do
terror que foi a ligação da Igreja e do Estado. A
Constituição de 46, que teoricamente deveria ser pior
que a atual, a Constituição de 88, era muito mais
secular, separava Igreja
e Estado e as coisas não convergiam e não
?? tangenciavam-se. Já na de 88 há uma série de injunções
que me incomoda. O preâmbulo pedindo a graças de Deus,
embora seja inofensivo, é uma irregularidade
considerando que a sociedade brasileira tem que garantir
o direito também de não crer, e logo a inclusão do
preâmbulo da Constituição de uma cláusula religiosa,
embora ampla e genérica, confronta esse princípio
sagrado da separação das coisas do espírito das
coisas do estado. A mídia nesta onda é extremamente
majoritária, ela acompanha
o poder majoritário da Igreja Católica. Os quatro
grandes jornais brasileiros, Jornal do Brasil, o Globo,
o Estadão e a Folha, cada um deles tem em lugar de
honra, um lugar reservado para uma autoridade eclesiástica
e não tem o mesmo lugar reservado para autoridades de
outros credos ou de não-credos. Então o Estado de São
Paulo tem o Dom Lucas Moreira das Neves, cardeal primaz;
a Folha de São Paulo tem Dom Luciano Mendes, que é o
Bispo de Mariana; no Rio de Janeiro, é extremamente
curioso que apesar da competição canibalesca entre
dois jornais, Globo e Jornal do Brasil, os jornais
publicam no sábado o Dom Eugênio Salles, Cardeal do
Rio de Janeiro, já veterano. Isso demonstra como a
imprensa não é imparcial, digamos, nessa questão da
religião. E aí, a partir destes fatos básicos, nós
podemos tirar uma série de ilações e verificar que
?? toda essa "guerra santa" sobre os evangélicos
foi carregada de preconceito. Isto não quer dizer que o
Edir Macedo não tenha lá suas culpas no cartório, mas
o processo, como um todo, foi tratado com preconceito e
com intolerância. Sou um estudioso amador da Inquisição
portuguesa e da Inquisição brasileira que existiu
praticamente no mesmo período de tempo, quase três séculos...
Percebo que nós não nos livramos ainda da crença
majoritária, isto é uma coisa que precisamos um dia
corrigir.
P:
Quais são os fatores que o senhor acredita terem sido
determinantes para a extinção dos jornalistas
humanistas?
Dines:
Essa é uma outra história. Uma história que precisa
ser um dia contada. É a história de uma gre??ve
malfadada de jornalistas aqui em São Paulo em 1979, que
provocou do patronato uma reação violentíssima, nunca
feita antes, não imediata, levou um ano e meio para se
articular. E os jornais passaram a agir, passaram pela
primeira vez a sentar-se, porque eles não se sentavam,
os
donos
não queriam tratar, não queriam se sentar na mesma
mesa, então só os filhos dos donos passaram a sentar
na mesma mesa e assumiram uma série de posturas e de
estratégias de forma maciça. É por isso que eu
insisti tanto quando falei que a imprensa tem de ser
diferenciada, porque
de
uma forma geral, embora os logotipos sejam diferentes, e
um puxa mais para o governo, outro puxa menos para o
governo, certos pressupostos são idênticos.
A
troca do humanismo pelo tecnocracia yuppie tem a
ver com um problema etário. Foi atribuído injustamente
à greve dos jornalistas de 79, aos jornalistas dito
humanitários, mais velhos, que justamente foram contra
esta greve que seria absurda, que facilmente estava
fadada a fracassar, como fracassou. Mas evidentemente,
eram as figuras exponenciais, eram as figuras com uma
participação política anterior à ditadura e fo??ram os
bodes expiatórios que tinham de ser eliminados, porque
eram os politizados que tinham criado esse clima. E a
partir daí o processo ganhou uma grande velocidade, com
uma distorção do processo jornalístico. A presença
do marketing dentro da operação jornalística era uma
coisa que qualquer jornalista da minha geração
rejeitaria, porque o marketing é secundário.
São
as responsabilidades do jornalista perante à sociedade
que devem comandar a postura do jornal a favor da
sociedade, não um setor comercial. Mas esse fascínio
pelo marketing permeia o Brasil inteiro, porque são
essas as formas milagrosas... Isto é um modismo que
começou na imprensa e permeou a sociedade brasileira,
que vive em função da cosmética e abandona as questões
fulcrais e primordiais da ação política ou jornalística.
Então de uma forma geral a troca foi geracional e
doutrinária, precisava-se de jornalistas capazes de
atender a esses reclamos da competição, dos brindes,
dos brindes que tornam o jornal descartável e secundário,
as pessoas compram o jornal e jogam o jornal fora e
ficam com o brinde, o que é uma subversão, tinham que
ficar com o jornal, jogar o brinde fora. Mas isso tudo são
coisas que vieram ocorrendo numa ??progressão imparável,
eu não sei aonde vai acabar isso, e o jornal deixa de
ser aquilo que é, o mediador da sociedade, o cimentador
da ação reflexiva da sociedade.
P:
Como criar rupturas na estrutura yuppie viciada e inócua
das redações?
Eu
não sou a favor de
rupturas, sou a favor de evoluções. Acho que é muito
simples. Uma redação deve representar, não digo
estatisticamente, ela deve representar a sociedade para
a qual é dirigido este veículo. Na maior parte dos
jornais não há a experiência para filtrar possíveis
erros, possíveis arrogâncias e possíveis preconceitos
mesmo. Então o jornal é feito de uma forma, por uma
equipe homogênea, sem diferenciação. A ruptura eu não
aconselho, mas uma evolução, para fazer como acontece
em todos os países do mundo, em que a imprensa reflete
a composição e a estruturação da so??ciedade e não
apenas um segmento dela.
Julio:
Uma outra pergunta, e esta é dirigida a mim, é uma crítica.
Com o perdão da ousadia, não é um preconceito o
processo de seleção das perguntas formuladas por
escrito pelo público aqui presente?...
Bem,
eu tenho que receber isso com um sorriso. Em primeiro
lugar não há censura. Na medida do possível eu tento
agrupar perguntas de um mesmo assunto, de um mesmo gênero
e realizá-las em seguida. Em segundo lugar, o único
critério que elimina as questões é aquele que
determina não formular perguntas que não dizem
respeito ao tema tratado. Por exemplo: algumas solicitam
o endereço da Internet e coisas do gênero...
Finalmente, um outro critério que faz com que eu não
formule certas perguntas é que infelizmente, dentro das
minhas inúmeras limitações, ainda não domino a arte
champoliônica de decifrar caracteres hieroglíficos.
Infelizmente eu não entendo várias letras, se vocês
puderem "traduzir" ??eu vou me sentir
agradecido...
Pergunta
legível... A mídia plural apenas nascerá do
crescimento do jornalismo reportagem. O jornalismo
opinativo não pode colaborar com a democracia, afinal a
imparcialidade absoluta é impossível e a reportagem
pura é quase empirismo positivista?
O
jornalismo compõem-se de vários gêneros. Nós temos o
gênero opinativo, o gênero informativo, nós temos a
prestação de serviços, e assim por diante. Não vou
dar uma aula de jornalismo comparado. Mas o que está
acontecendo hoje é estatístico, por isso eu citei para
vocês que vale a pena vocês comprovarem, peguem aí os
grandes jornais de São Paulo verifiquem, se quiserem
contem os centímetros nos primeiros cadernos, o espaço
dedicado à opinião e o espaço designado para informação
colhida por repórteres. A opinião está começando a
ganhar. É claro que há razões econômicas, o espaço
de um colunista é sempre mais barato do que o espaço
de um repórter, porque o repórter não pode produzir
todo dia?? uma matéria, ele às vezes passa
cinco dias ganhando para produzir uma matéria de
cinco linhas. O opinionista facilmente preenche aquelas
quarenta, cinquenta, sessenta, setenta linhas que lhe são
designadas. E não tem fotógrafo, não precisa do carro
de reportagem , não precisa viajar. Ele está ali,
escreve, pode até escrever uma série de artigos,
depois viajar. Economicamente, empresarialmente, mas
anti-jornalisticamente, isto é mais fascinante, a opinião
do que o trabalho de reportagem. Mas o jornalismo nasceu
repórter. Mesmo com a falência da natureza humana,
mesmo que no seu íntimo o jornalista mais isento sempre
descambe para uma certa predileção, mas só esse esforço
de ser isento, de ser
equidistante, já é muito bom , já é cívico,
já é exemplar, porque faz com que ele se coloque
de uma forma mais discreta. Eu fico extremamente
chocado quando leio essas violências que se cometem
hoje no jornalismo opinativo brasileiro. No período
imediatamente após a ditadura, onde se podia dizer uma
série de coisas, eu não vi essa virulência empregada
contra aqueles que foram sócios do regime militar,
aqueles que foram responsáveis pelo regime militar.
|
??