Rosiska
Darcy de Oliveira
Presidente
do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher
Eu
imagino que a minha escolha para participar dessa mesa
essa noite se deva exatamente ao fato de que
há muitos anos eu venho tentando, dentro e fora do
Brasil, democratizar, eu já não diria somente, as
sociedades as quais me dirijo, mas democratizar o
pensamento, o pensamento que pensa essas sociedades.
Porque eu creio que o fim do século XX, nos confrontou
com uma obviedade, que, paradoxalmente, é umas das
grandes revoluções desse século: a descoberta de que
existem dois sexos, e não apenas um. Essa obviedade, eu
creio, vai marcar a história do século XX. E nós aqui
nessa mesa, nós, mulheres que estão aqui nessa mesa,
creio podermos nos orgulhar, de termos sido, numa medida
humilde, na medida de nossas forças, protagonistas dessa
descoberta.
Eu
talvez nunca tenha tido tão nitidamente a sensação do
quanto essa obviedade era importante, para restabelecer um
princípio civilizatório, quanto na Conferência de
Direitos Humanos que teve lugar em Viena, da qual nós
mulheres saímos entusiasmadas, festejando, comemorando o
fato que tivesse sido incluído nas declarações de Viena
a frase de que os direitos das mulheres eram direitos
humanos. Nós festejamos isso, e isso aconteceu no último
decênio desse milênio. É inacreditável que nós
tenhamos chegado a esse ponto. Mas foi necessário talvez
afirmar essa obviedade, porque essa conferência marcou,
creio eu, a entrada das mulheres na humanidade visível.
Até então uma imensa invisibilidade pesava e, creio pesa
ainda, sobre a a metade da humanidade. Portanto não é de
pouca envergadura o que nós estamos abordando aqui hoje.
É uma das dimensões de um fenômeno mais amplo, o
preconceito contra as mulheres, na medida que preconceito
nós encontramos sempre lá onde alguém, indivíduo ou
coletivo, se enfrenta com alguém que ele designa como
outro e este outro, para que seja outro, é um outro
porque cumpre uma função muito específica, que é
justamente a de
constituir a identidade daquele que o designa como outro,
ou seja, ele passa ser o outro, o depositário de tudo
aquilo que o torno inferior, que o torna pior, que o torna
diferente e que portanto engrandece aquele que o designa,
que passa a ser melhor, que passa a ser mais qualificado,
que passa a ser a referência. Eu creio que na história
das mulheres essa maneira de ser a outra sempre, a outra
dos homens, esteve presente exatamente sobre esta forma.
As mulheres foram sempre o inverso ou avesso. O feminino
foi o avesso do masculino, sem definição própria,
apenas definido pela negativa.
Creio
que é muito recente que nós tenhamos concluído que o
feminino não era o avesso do masculino, que o feminino
era o feminino, e que as mulheres eram as mulheres e que
se definiu por si mesmas, em referência a si mesmas, a
sua própria existência, a sua própria história, o seu
próprio corpo, a sua própria cultura. Isso é novo. Isso
é muito novo. Porque mesmo nas lutas pelas igualdades,
que marcaram o fim do século XIX sobretudo, e eu diria o
século XX, até os anos 70, essa definição de igualdade
se dava face a um padrão de referência e esse padrão de
referência era o masculino. As
mulheres se estariam tornando iguais aos homens, na
medida em que com eles se mimetizassem, na medida em que
assumissem o
feminino como defeito, como falta, como ausência, com
algo a ser escondido e tentassem, o tanto quanto
possível, falar o masculino sem sotaque. Eu creio que
nós todas tentamos isso. Algumas até conseguiram, falar
sem sotaque. Mas isso não deixou, de certa maneira, de
ser uma língua estrangeira.
Penso
que a travessia das mulheres nos territórios do
masculino, nos territórios do poder e do saber, essa
travessia foi certamente e
pelo menos numa certa medida, uma experiência do
exílio, e nada revela melhor a identidade do que o
exílio. É na situação de exílio que nós nos vimos
refletidos no outro, no espelho distorcido, onde aparecem
as diferenças, onde aparecem os encaixes que
não se ajustam. E talvez seja justamente esse
exílio onde viveram as mulheres no mundo dos homens, que
foi dando progressivamente a elas, na medida em que elas
experimentavam e habitavam os territórios dos masculino,
foi dando a elas o sentimento de que a igualdade que elas
buscavam ou que elas descreviam e aceitavam como tal, essa
igualdade mimética era na verdade uma resposta ambígua,
ao que eu costumo chamar um “double bind”, ou seja,
uma mensagem contraditória.
Dizia-se
ao longo desse século, eu diria até os anos 70, 80,
dizia-se às mulheres, “seja mulher e seja homem ao
mesmo tempo”. E essa mensagem, esse “double bind”, a
esse “double bind” as mulheres
responderam num primeiro momento pela ambiguidade.
E a resposta ambígua foi a tentativa de fazer coexistir
em si todos os papéis, todas as funções sociais, sempre
fazendo de conta que o feminino não existia, ou pelo
menos não iria atrapalhar. Eu penso que foi preciso que
uma geração inteira fizesse o percurso completo dessa
vida e dessa ambiguidade, para que tornasse claro para
essa geração que havia um equívoco de base. A
negociação da entrada das mulheres no mundo dos homens
tinha-se feito respeitando o preconceito e de certa
maneira reproduzindo o preconceito, ou seja, tentando
através do mimetismo, através do esconder desse defeito,
que era o feminino, sua história, seu corpo, sua vida,
sua cultura, tentar não abordar a verdadeira discussão
que iria marcar o fim desse século, que é a existência
de dois sexos, portadores de experiências, de história,
de corpos diferentes. E eu penso que se tanta resistência
houve por parte das mulheres a enfrentar esse preconceito
no seu âmago, foi certamente porque - com justa razão -
tentamos nós, mulheres, refutar todo um pensamento
conservador, reacionário, da biologia do fim do século
XIX, que fazia da diferença sexual o argumento da
hierarquia, de uma hierarquia que inferiorizava as
mulheres. Portanto a refutação disso foi um estágio
necessário, um momento necessário, na quebra
do preconceito. Ora, hoje nós vivemos outros
tempos. Hoje eu creio que uma mulher tenha possibilidade
de admitir a realidade do seu corpo, não como um defeito,
não como algo que lhe atrapalha, mas como
algo a que ela
tem direito e que se trata não de adaptar-se ela a
um mundo que não vê as mulheres, que desconhece as
mulheres, para quem esse sexo não existe, mas muito mais
de propor ao pensamento e à comunidade
internacional, e a organização social mundial, e local,
o grande desafio, que é, que será, construir uma
sociedade em que as mulheres existam como mulheres, com
suas características, com suas demandas, com suas
necessidades, com sua história.
A
integração das mulheres na humanidade visível, repito,
é sem dúvida nenhuma o grande desafio do nosso tempo.
Por isso mesmo, eu penso e costumo dizer, o século XXI
começou em Pequim. A Conferência de Pequim foi um
“turning point”, um momento em que a comunidade
internacional, como um todo, reconheceu a presença das
mulheres no mundo, reconheceu essa inversão epistêmica,
em que não se trata
mais de pensar um mundo, em que as mulheres vão se
adaptar, mas adaptar o mundo à existência das mulheres.
É uma mudança conceitual importante que cristalizou-se
fundamentalmente na Conferência de Pequim e que é a
grande resposta política ao preconceito. É a grande
resposta política que não fala mais da igualdade como
uma conversão (que é o ideal de todo o preconceito,
converter o inferior às sua convicções ou a sua maneira
de ser, à sua vida), não fala mais nessa conversão, mas
fala de uma necessidade de uma negociação democrática.
Por isso, no Conselho Nacional nós dizemos: não existe,
não poderá existir
democracia, nem no Brasil, nem em lugar nenhum do mundo,
sem a presença respeitada, ativa, reconhecida de dois
sexos.
É
por isso que eu intitulei essa conferência, essas
pequenas palavras que não são uma conferência:
na democracia, “a igualdade faz toda a
diferença”. Muito obrigado.
De
Conversa em Conversa...
P:
Você poderia falar sobre o sistema de cotas para as
mulheres, que parece ter sido uma das propostas da
Conferência de Pequim? Esse sistema não está sendo
muito criticado atualmente?
Rosiska:
Eu queria esclarecer que o sistema de cotas não foi
exatamente uma proposta da Conferência de Pequim. Ele
é uma coisa já muito antiga e sobretudo é uma
experiência americana, quer dizer a sociedade americana
lançou isso, a política americana já havia lançado a
política de cotas.
A
política de cotas, em duas palavras, é a garantia de um
espaço dentro de partidos políticos, para que as
mulheres possam ser candidatas.
Isso se impôs, porque a prática mostrava que as
mulheres nunca chegavam a ser escolhidas como candidatas,
quer dizer, havia um gargalo que impedia que elas fossem
escolhidas como candidatas. Dito isso, eu creio que a
política de cotas, se é uma necessidade hoje, eu não
creio que possa ser formulada a não ser em termos
provisórios. Reconhecendo a necessidade neste momento de
passar por esse gargalo que o preconceito cria, creio que
não há porque, por exemplo, falar em vinte por cento.
Não vejo porque colocar esse teto de vidro. Por que não
cinquenta? Por que não sessenta? Por que não setenta?
Não vejo a necessidade de nos colocarmos dentro de
determinados limites, devemos sim exigir um mínimo, mas
esse mínimo provisoriamente.
Creio
que eu teria formulado a proposta das cotas de uma maneira
diferente. Creio que eu teria formulado como uma
obrigatoriedade de que nas chapas partidárias houvesse um
mínimo de vinte por cento de mulheres ou de homens. Não
sei se me entendem. Eu acho que isso muda tudo e acho
sobretudo que isso quebra uma acusação, que vem sendo
feita, muito injusta aliás, de que essa política teria
um conteúdo anticonstitucional, porque estaria
favorecendo as mulheres. Não vou nem entrar muito em
detalhes sobre isso, porque isso é um absurdo,
quer dizer, é uma leitura equivocada, no limite
desonesta de que foi o espírito do legislador que colocou
na constituição a igualdade entre homens e mulheres.
Quer dizer, quando se fala em igualdade, fala-se
exatamente em promover uma igualdade não inexistente.
Nada exclui - e não se deve pensar que isso venha a
excluir - que um dia haja uma apresentação de
candidaturas, tão importantes numericamente de mulheres
quanto de homens ou até majoritárias.
P:
Como avançar com os direitos da mulher, em regiões
onde as culturas e crenças locais são extremamente
desiguais, por exemplo, os países islâmicos, ortodoxos
em geral. Deverão essas mudanças serem conquistadas
internamente, ou através de pressões internacionais?
Rosiska:
Essa é uma pergunta bem complicada, até porque ela tem
estado no centro de um debate que ultrapassa até a
questão das mulheres.
Nosso
tempo, nossos últimos cinquenta anos, descobriram
justamente a diferença cultural e
foi talvez um reconhecimento muito importante, na
medida que muitos países tinham sofrido uma
opressão colonial, que tinha de certa maneira
quebrado a alma desses países, que tinha imposto valores
que lhes eram
estrangeiros, que tinham sido violentos, que tinham
tentado destruir culturas. Portanto, dos anos 50 para cá,
houve toda uma tendência com o processo de
descolonização, sobretudo da África, da África Negra,
e dos países do Norte da África, muçulmanos.
Houve
toda uma tendência a respeitar a diferença cultural e a
abdicar do que se pensou ser, naquele momento se chamou
assim, uma espécie de imperialismo do Ocidente que
tentava generalizar os seus princípios. Foi muito
recentemente, e não por acaso, em torno da questão das
mulheres, que essa questão se tornou complexa, ela não
era tão simples como se pensava. E eu acho que é um
exemplo muito importante para se dar sobre esse debate,
ninguém ignora que no mundo muçulmano a ablação
clitoridiana é uma prática cultural desses países.
Então na Conferência de Viena, quando se discutia essa
questão, particularmente, nós tínhamos um bloco do
Ocidente que dizia: “isso é lesão corporal grave, isso
é castração, isso é uma violência inaceitável, uma
monstruosidade contra as mulheres”. E nós tínhamos os
países muçulmanos que diziam: “isto é a nossa
cultura, e assim deve ser respeitada”. Esse debate
confundia a cabeça de muita gente. Eu confesso que não a
minha, certamente não.
Eu
creio que o valor que nós damos ao conceito de direitos
humanos é - indiscutivelmente - a sua universalidade.
Quer dizer, os direito humanos ou são universais, ou não
são. E daí deduz-se que os direitos das mulheres são
direitos humanos. Não há no meu entender que
tomar como traço cultural respeitável um fato, ou um
conjunto de fatos, ou um conjunto de normas, que torna uma
parcela da população escrava, submissa, passível de ser
ferida, passível de ser mutilada. Não, isso não é
respeitável em nenhum tipo de cultura, Nem no Ocidente,
nem nos países islâmicos, e para isso existe uma
comunidade internacional, que se define como uma
comunidade defensora de direitos humanos. Nesse sentido,
para mim, essa questão está clara. O tratamento dado às
mulheres nos países islâmicos, ou para não falar apenas
dos países islâmicos, o tratamento dado às mulheres na
Iugoslávia, na Bósnia, onde pela primeira vez se usou o
estupro como arma de guerra... Havia estupro em outros
países, em outros momentos de guerra,
mas não como arma de guerra, arma no sentido
literal do termo, onde nunca as mulheres foram tão
invisíveis, porque o conceito que presidiu ao estupro em
massa na Bósnia, foi a idéia, de que a criança que
nascia daquela mulher era apenas da religião do pai, a
mulher era uma passagem, nela não existia nada, ela não
existia, ela era um receptáculo. Esse tipo de
aberração, esse tipo de monstruosidade, não tem senão
que ser denunciada com o mesmo ímpeto, a mesma
não-negociação com que nós temos, ao longo do tempo,
denunciado a tortura, onde quer que ela se encontre, o
assassinato, o crime, onde quer que eles se encontrem.
Hoje
eu tenho a idéia muito clara de que essas mulheres que
estão debaixo de leis que as negam, que as sacrificam,
que as ferem, essas mulheres precisam de socorro e
precisam de socorro internacional, assim como todos
aqueles que estão nas masmorras, torturados e presos.
Nesse sentido, eu não respeito cultura nenhuma, que em
nome dos seus direitos culturais esteja condenando um ser
humano, no caso um ser humano mulher,
a um tipo de violência que elas não merecem e que
não devem aceitar.
P:
Num país machista como o nosso, qual é a sua análise
sobre as mulheres negras, pobres e marginalizadas?
Rosiska:
É muito difícil medir-se
o sofrimento humano. E eu acho que é sempre muito
difícil colocar-se na
pele do outro, quer dizer, colocar-se na vida e na
experiência do outro. Eu não sou uma mulher negra. Eu
tenho pudor de me exprimir sobre isso, fazendo um
julgamento do que isso possa representar. Eu posso falar
de fora. Estou falando de fora, da observação, da vida,
e eu creio que certamente dentro do quadro do racismo, que
é presente e perfeitamente tocável na
nossa sociedade. A mim me parece claro que o
racismo que se abate sobre as mulheres negras é o mais
perverso e sempre foi.
Existe
um antropólogo brasileiro, o professor Darcy Ribeiro, que
usa uma expressão que sempre me impressionou muito, em
que ele diz que a sociedade brasileira queimou os negros
como carvão, queimou, usou como o carvão. E moveu-se com
essa força de trabalho negra, que destruiu,
que
queimou, justamente como o carvão. Eu diria que a isto se
acrescentaria o fato que no caso das mulheres negras, ao
longo da história brasileira, além de moer como carvão,
ainda a isso se acrescentou o dado da prostituição. Quer
dizer, a sociedade branca, a sociedade canavieira por
exemplo, a elite canavieira prostituiu as mulheres negras.
E isso eu acho imperdoável. Isso é imperdoável. E isso
deixou sequelas na fotografia da mulata nua que aparece
nos folhetos de turismo, chamando para o turismo sexual no
Brasil, hoje. Então hoje reproduz-se o mesmo princípio
de degradação, o mesmo princípio de humilhação, que
vem do tempo colonial e que se projeta para o século XXI,
através fundamentalmente desse drama moderno que a
sociedade brasileira está vivendo, e para a qual eu chamo
a atenção de todos aqui, porque eu considero uma coisa
gravíssima a prostituição juvenil, através
fundamentalmente do turismo sexual.
O grosso das meninas que são recrutadas para
satisfazer esse imaginário branco, europeu ou
norte-americano, são meninas de origem negra. Eu creio
que a esse dado veio se acrescentar a dramaticidade da
questão racial no Brasil, que toca a todos, homens e
mulheres. Mas acho muito particularmente, por esse lado,
sobretudo o que toca as mulheres negras.
Nós
temos no Conselho Nacional uma representação de mulheres
negras, e eu tenho insistido, e tenho tido uma resposta
muito presente sempre, desse grupos que estão
representados lá, no sentido de que nós possamos
desenvolver políticas, que sejam políticas que tenham a
ver, que mostrem claramente como a sociedade brasileira
vem tratando sobretudo essas meninas, essas jovens, porque
isso talvez seja ainda o mais dramático, porque são
meninas, são meninas que estão entrando na vida, que
estão entrando na vida de uma maneira indefesa e que
estão reproduzindo o fenômeno da escravidão de maneira
velada, mas estão reproduzindo esse fenômeno. Então eu
tenho, enquanto presidente do Conselho Nacional dos
Direitos da Mulher, uma preocupação fundamental, hoje,
com a questão da prostituição, da prostituição
juvenil, e dentro dela, como as meninas - e
fundamentalmente as meninas negras - estão sendo
arrastadas para isso. Eu não posso me conformar com a
idéia de que o destino da juventude pobre e da juventude
negra brasileira vá ser a prostituição. Eu não posso
me conformar com isso e nenhum de nós pode e nem deve se
conformar com isso.
Eu
estou falando aqui com um público próximo dos direitos
humanos. Eu chamo a atenção para este fato, porque ele
hoje é provavelmente, se não o mais grave, um dos mais
graves da história presente brasileira. É preciso ter os
olhos abertos para isso, é preciso combater. No Dia da
Criança o Presidente convocou todos os ministros das
áreas afetas a esta questão, convocou-me a mim também,
e foram discutidas políticas combativas de enfrentamento
dessa questão, que é gravíssima, ampla e difícil de
lidar. E nesse caso eu acho que não há muita dúvida,
que as mais atingidas são, sem dúvida nenhuma, as
jovens, as adolescentes negras, ou de origem negra. Então
políticas nesse sentido são políticas absolutamente
fundamentais de defesa dessa população.
Imortais
presentes
As
escritoras Nélida Piñon e Lygia Fagundes Telles,
componentes da Academia Brasileira de Letras, também
estiveram presentes à mesa dos trabalhos, na noite em que
o tema tratado foi "Preconceito e Mulher".
Júlio
Lerner: Lygia, você estudou aqui na Faculdade de
Direito do Largo São Francisco ... Eu gostaria que você
contasse ao público quais os preconceitos mais frequentes
que - como estudante - você teve de enfrentar nesta
escola.
Lygia:
Parece até que eu vou falar agora da Idade da Pedra
lascada, tão grande é a distância que me separa dos
meus tempos de juventude deste tempo. Havia, sim, tantos
preconceitos fora e
dentro
desta Faculdade, éramos na nossa turma apenas cinco ou
seis moças e quase trezentos rapazes… As mocinhas
inconscientemente andavam até meio curvadas (disfarçar o
busto?) e desconfiadas, verdadeiramente intimidadas porque
alguns rapazes já tinham nos feito, de forma franca ou
velada, a tal pergunta: "– Mas o que vocês vieram
fazer aqui?". Da minha parte, respondi que queria
estudar Direito. E o gracejo irônico: "– Vocês
querem é casar com a gente, hem?" E eu disse,
"casar também, porque não?…"
Queria lembrar agora que a clássica pergunta,
"o que vocês vieram fazer aqui?" me faz pensar no próprio Freud que perguntou um dia com
alguma ponta de irritação: "– Mas o que querem,
afinal, as mulheres?".
Desnecessário dizer que esse clima me fazia tão
insegura que agora parece até uma brincadeira trazê-lo
nesta noite, tantas décadas depois: afinal, falar nisso
numa escola completamente invadida pelo chamado segundo
sexo…
Minha
mãe ficou muito preocupada quando eu resolvi prestar os
vestibulares: "– Mas o que você vai fazer numa
Faculdade de Direito? Será que esses estudos não vão
prejudicar a sua vida? E os seus pretendentes,
filha?!" Na realidade, a minha mãe queria apenas me
ver casada, destinação única para uma jovem se realizar
no futuro. E havia outra saída a não ser o casamento?
Respondi que tivesse um pouco de paciência, eu estudaria
e me casaria em seguida, "eu caso depois, mãe".
Ela ficou pensativa. Duas vezes ela própria já
tinha sido contrariada na sua vocação, quis ser uma
cantora lírica, tinha uma bela voz. Quis em seguida ser
uma pianista, estudou piano com professores importantes da
época. Foi também contrariada, a solução foi se casar
e ficar mulher-goiabada e digo isso sem a menor
ironia, é claro, criei essa expressão mulher-goiabada
porque ela fazia a melhor goiabada do mundo… Mas então
ela pensou e disse, "– Se esse burraldo do seu
primo está na Faculdade e vai se formar, por quê não
você?!"
Eu tinha um primo que estudava aqui e que ela
costumava tomar como exemplo, era uma mulher inteligente e
bem-humorada. Voltou ao piano, tocava seus Noturnos de
Chopin: "– Quer saber de uma coisa? Amanhã mesmo
você vai se inscrever, amanhã nós vamos cuidar
disso".
"Nós" era ela própria, de um
certo modo, estava agora se realizando em mim. E é bom
lembrar que um preconceito tão agudo existiu sem máscara
até há pouco tempo! As mulheres recusadas, esnobadas,
omitidas. Tendo que dissimular, que disfarçar, eu mesma
não me fiz de sonsa tantas vezes, não disfarcei para me
defender?…
Queria
lembrar agora um ponto bastante importante, creio que a
mulher ficou mais perceptiva do que o homem porque
simplesmente tinha que se defender e nessa auto-defesa a
percepção se aguça, se desenvolve assim como no
arrombador de cofre que chega a limar as pontas dos dedos
para, de olhos fechados, achar os seus números, desvendar
o código… Durante séculos a mulher ficou reduzida a um
bicho-de-sombra, encolhida, calada. Penso hoje que se a
mulher é mais perceptiva, mais vidente do que o homem
não é por virtude mas por necessidade em face das
circunstâncias tão adversas. Assim ela foi ficando mais
maliciosa, mais desconfiada. E mais fantasiosa, na sombra
ela estimulou essa fantasia, a mulher é mais fantasiosa
do que o homem.
Então
esse meu ofício que é o ofício de escrever, considerado
também um ofício essencialmente masculino… Lembro
agora que na minha família, por exemplo, algumas mulheres
tiveram as tais inclinações literárias, escreviam
poesias e poderiam mesmo ter sido - por que não? -
verdadeiras poetisas, me lembro que certa vez meu avô
gracejou referindo-se à minha tia-avó que estava sempre
arredia, devaneando, "deve estar escrevendo suas
caraminholas!" Caraminholas… A solução era passar
para aqueles cadernões de capa preta onde estava
registrado o preço da cebola e da batata, os pensamentos
poéticos, os sonhos em prosa e verso. Então o começo,
hem Nélida, teria sido simplesmente esse, as mulheres
começaram a enveredar para a carreira literária nesse
estilo confessional, subjetivo. Intimista. Daí a moda dos
diários, anotações do dia-a-dia que se
encompridavam com as inspirações feitas com tinta roxa,
a cor da paixão. Mas isso só cabível em moça solteira,
diário era próprio de virgens, porque diário em gaveta
de mulher casada, segundo um antepassado, só ia dar em
bandalheira… Sim, o longo e difícil caminho percorrido
pela mulher até chegar a este momento que Rosiska há
pouco lembrou tão lindamente. O difícil, o áspero
caminho
de
libertação. E ainda relativo reconhecimento. E confesso
agora que gostaria de ser jovem aqui neste tempo de
libertação através do trabalho, atenuando as
desigualdades maiores através do estudo, da cultura.
A
mulher agarrando as suas rédeas e dizendo, "eu estou
aqui". Assim, se Freud voltasse a fazer aquela
pergunta perplexa, "– mas o que querem essas
mulheres?", da minha parte eu poderia então
responder, "– quero apenas entrar para a escola que
escolhi e escrever meus contos, só isso". Então
aqui estamos nesta noite saudando as jovens estudantes -
as novas gerações e dizendo como disse a Rosiska, somos
agora visíveis. Visíveis não para narcisismos ou
dissimulações, visíveis não para as agressões
competitivas ou digressões demagógicas. Estamos, sim,
Rosiska e Nélida - estamos visíveis para nos dizer.
Antes eram os homens que nos definiam, só eles diziam
quem nós éramos. Agora temos voz própria.
Júlio
Lerner: O que você pensa sobre o politicamente correto
nas relações entre os sexos?
Nélida:
Eu acho que a emergência de certas questões ocorre por
força de uma carência, de uma necessidade. Se de
repente, quando apareceu, eu me lembro em 1960, o chamado
Movimento de Liberação da mulher, é porque
evidentemente a sociedade reclamava que o movimento
deveria acontecer, assim como os movimentos “Black Power”,
da década de 60, o movimento dos "gays", todos
movimentos libertatórios. Se há excessos, se há
interpretações dúbias nem sempre bem formuladas, mas
há urgência, as necessidades ali estão. Portanto se
algum grupo reivindica porque necessita é porque ele foi
posto à margem. Então o politicamente correto surgiu dos
abusos, da necessidade de corrigir
frases, de tentar exatamente combater ou reduzir as
margens dos preconceitos. A idéia era essa. O
politicamente dizer, adestrar a sua linguagem, o seu
comportamento, no sentido de que você se comportasse de
uma forma plausível, agradável, em meio aos seres
humanos, para não ferir, não magoar e não criar
questões dramáticas.
Eu
acho que os movimentos, ou pelo menos uma etapa do
movimento se exaure quando comete excessos. Há
exageros... Por exemplo, para lhes dar um modesto exemplo,
eu me lembro que no ano passado eu... eu sempre passo de
janeiro à maio na Universidade de Miami, o semestre
americano, graças a Deus, é muito rápido, é muito
curto, três meses e meio... eu percebi quando passava
pelos corredores, para ir para meu escritório, eu vi as
portas todas abertas. Eu pensei, engraçado, os
professores americanos deixam as portas abertas, para que
todo mundo saiba que estão trabalhando, eu interpretei
desse modo, ingenuamente. No ano passado, eu soube por um
querido amigo meu, um grande escritor peruano que é o
Mário Vargas Llosa, a propósito de que ele estava dando
aula na Georgetown, em Washington, e ele perguntou:
“voce deixa a porta aberta?”. “Como porta aberta, eu
recebo os alunos, eu fecho a porta, é uma questão de boa
educação, a meu juízo.” Ele disse assim: “Não
faça isso. Não faça porque é perigoso. Voce nunca sabe
com quem voce está lidando”. Aqui o bom tom seria, a
pessoa passar, voce fechar a porta, porque talvez o aluno
queira lhe falar e não quer ser ouvido... Uma porta
aberta intimida o aluno, né?. “Mas não faça
isso, porque nos Estados Unidos, de repente um aluno pode
inventar alguma coisa, que resulte num desastre para sua
vida profissional, uma ação, ou podem dizer que voce
usou de intenções não muito adequadas. Então, chega
num ponto tão terrível, que ninguém toca no aluno,
ninguém pode tocar no aluno, porque isso pode implicar,
tocar fisicamente, um gesto delicado, carinhoso, porque
isso pode ser mal interpretado. Eu sinceramente, eu com
meus alunos, eu sou muito carinhosa. Então o
politicamente correto se impedir injustiças pode ser
útil, mas evidentemente eu me dou conta de que hoje o
politicamente correto é excedente, é exagerado, e que
muitas vezes não está mais defendendo os direito
humanos, está inibindo o fluxo afetivo das pessoas, as
gentilezas. Um homem não toma elevador, de modo geral,
nos Estados Unidos, quando houver uma mulher sozinha,
porque ele tem medo que essa mulher - de repente - pule do
elevador aos gritos: “esse homem me atacou”.
Isso
pode custar cem mil dólares numa ação, e voce vai
trabalhar o resto da vida para pagar aquela cidadã.
São
fatos até histriônicos, ridículos, mas que não
invalidam enfim o que pode haver de bom no politicamente
correto... Ao mesmo tempo, chama a atenção para o
ridículo humano... É que nós realmente, estamos
inscritos nessa categoria de seres precários, venais
muitas vezes, e que precisam cuidar da sua ética, para
aprimorá-la. Não é isso, nesse sentido?...
Rosiska
(aparteando): E eu acho que a principal manifestação
ainda hoje do preconceito contra as mulheres seja a
condescendência, uma certa condescendência, ou a idéia
de que
uma mulher para ser alguma coisa tem de ser
absolutamente genial. Sem nenhuma crítica à Academia
Brasileira de Letras, mas os homens dizem "estão
aqui as três melhores mulheres do Brasil", e eu
creio que são mesmo, mas os outros tantos que estão lá,
são os melhores homens do Brasil? Não sei... Não tenho
certeza disso... Não sei...
Sem
desmerecer ninguém que está lá dentro, não é .... Eu
costumo dizer que eu só vou acreditar na igualdade, na
verdadeira igualdade entre homens e mulheres, quando eu
vir mulheres muito incompetentes em postos muitos
importantes. Antes disso, eu não acredito. Fazendo aqui
um grande elogio à Nélida Piñon, a Ligia e a Raquel de
Queiroz... Como era possível que elas não estivessem
lá? Inconcebível. São os três grandes nomes da
literatura brasileira, os três maiores da literatura
brasileira escrita por mulheres. É claro que elas tem que
estar lá. Agora em outros lugares do poder, do saber, eu
não vejo essas maravilhas espalhadas por aí.
Mas as mulheres tem que ser maravilhosas para
chegarem lá. Há uma condescendência em relação às
mulheres de talento que eu acho que é a forma mais
perversa do preconceito. Porque tentam fazer delas um
álibi, dizendo: “Vocês estão aí porque vocês são
formidáveis, todas. Vocês são formidáveis”. Agora os
outros que estão em outros lugares, são formidáveis? Eu
não vejo isso. Esse era o ponto que eu queria dizer...
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