
Milton
Santos
Professor
universitário, geógrafo e escritor
¨
O
tema que me traz aqui não é um tema de minha
especialidade, mas é um tema da minha convivência. Por
isso, não me proponho a fazer uma conferência, mas a
manter uma conversa sem plano. Pretendo começar esta
conversa fazendo algumas perguntas: o que é ser um
cidadão? O que é ser um indivíduo completo, isto é,
um indivíduo forte? O que é ser classe média? Ser
classe média é ser cidadão? O que é ser cidadão
neste país? E finalmente, os negros neste país são
cidadãos?
Ser
cidadão, perdoem-me os que cultuam o direito, é ser
como o estado, é ser um indivíduo dotado de direitos
que lhe permitem não só se defrontar com o estado, mas
afrontar o estado. O cidadão seria tão forte quanto o
estado. o indivíduo completo é aquele que tem a
capacidade de entender o mundo, a sua situação no
mundo e que se ainda não é cidadão, sabe o que
poderiam ser os seus direitos.
 
É
neste sentido que me pergunto se a classe média é
formada de cidadãos. Eu digo que não. Em todo caso, no
Brasil não o é, porque não é preocupada com os
direitos, mas com privilégios. O processo de desnaturação
da democracia amplia a prerrogativa da classe média, ao
preço de impedir a difusão de direitos fundamentais
para a totalidade da população. E o fato de que a
classe média goze de privilégios, não de direitos,
que impede aos outros brasileiros ter direitos. E é por
isso que no Brasil quase não há cidadãos. Há os que
não querem ser cidadãos, que são as classes médias,
e há os que não podem ser cidadãos, que são todos os
demais, a começar pelos negros que são cidadãos.
Digo-o por ciência própria. Não importa a festa que
me façam aqui ou ali, o cotidiano me indica que não
sou cidadão neste país.
Poderíamos
traçar a lista das cidadanias mutiladas neste país.
Cidadania mutilada no trabalho, através das
oportunidades de ingresso negadas. Cidadania mutilada na
remuneração, melhor para uns do que para outros.
Cidadania mu¨tilada nas oportunidades de promoção.
Cidadania mutilada também na localização dos homens,
na sua moradia. Cidadania mutilada na circulação. Esse
famoso direito de ir e devir, que alguns nem imaginam
existir, mas que na realidade é tolhido para uma parte
significativa da população. Cidadania mutilada na
educação. Quem por acaso passeou ou permaneceu na
maior universidade deste estado e deste país, a USP, não
tem nenhuma dúvida de que ela não é uma universidade
para negros. E na saúde também, já que tratar da saúde
num país onde a medicina é elitista e os médicos se
comportam como elitistas, supõe frequentemente o apelo
às relações, aquele telefone que distingue os
brasileiros entre os que tem e os que não tem a quem
pedir um pistolão. Os negros não tem sequer a pedir
para ser tratados. E o que dizer dos novos direitos, que
a evolução técnica contemporânea sugere, como o
direito à imagem e ao livre exercício da
individualidade? E o que dizer também do comportamento
da polícia e da justiça, que escolhem como tratar as
pessoas em função do que elas parecem ser.
Penso
haver três dados centrais para entender essas questões
do preconceito, do racismo, da discriminação. O
primeiro é a corporalidade, ¨o segundo é a
individualidade e o terceiro é a
questão da cidadania. São as três questões que vão
ser a base da maneira como estamos juntos, da maneira
como nos vemos juntos, da maneira como pretendemos
continuar juntos. Resumindo, a corporalidade inclui
dados objetivos, a individualidade inclui dados
subjetivos e a cidadania inclui dados políticos e propósitos
jurídicos. A corporeidade nos leva a pensar na localização
( talvez pudessemos chamar de lugaridade ), a destreza
de cada um de nós, isto é, a capacidade de fazer
coisas bem ou mal, muito ou pouco e as possibilidades daí
decorrentes. E aí aparece em resumo, o meu corpo, o
corpo do lugar, o corpo da mundo. Eu sou visto, no meio,
pelo meu corpo. Quem sabe o preconceito não virá do exame da minha
individualidade, nem da consideração da minha da
cidadania, mas da percepção da minha corporalidade. A
individualidade permita, a partir do bom senso , alcançar
certo grau de exercício da transindivilidade, e aí a
consciência do outro e dos outros, a consciência do
mundo. E afinal a cidadania, que é o exercício de
direitos e supõe a ciência dos direitos que temos e a
capacidade de reivindicar mais. Como tudo isso está
ligado ao grau de consciência, voltamos, por
conseguinte, à questão da individualidade.
¨ Eu
tinha feito a anotação seguinte: “A instrução
superior não é garantia de individualidade superior. A
cidadania não é garantia de individualidade forte, nem
a individualidade forte é garantia de cidadania e
liberdade, o meu caso.” Desculpem mas estou tentando
utilizar a mim mesmo como exemplo. Tenho instrução
superior, creio ser personalidade forte, mas não sou um
cidadão integral deste país. O meu caso é como o de
todos os negros deste país, exceto quando apontado como
exceção. E ser apontado como exceção, além de ser
constrangedor para aquele que o é, constitui algo de
momentâneo, impermanente, resultado de uma integração
casual.
Daí
porque a análise das situações do preconceito no
Brasil supõe um estudo da formação sócio-econômica
brasileira. Não há outra forma de encarar o problema.
Tudo tem de ser visto através de como o país se
formou, de como o país é e de como o país pode vir a
ser. Tudo isso se inclui na realidade da formação sócio-econômica
brasileira. O passado como carência, o presente como
situação, o futuro como uma perspectiva.
¨
O
modelo cívico brasileiro é herdado da escravidão,
tanto o modelo cívico cultural como o modelo cívico
político. A escravidão marcou o território, marcou os
espíritos e marca ainda hoje as relações sociais
deste país. Mas é também um modelo cívico
subordinado à economia, uma das desgraças deste país.
Há países em que o modelo cívico corre emparelhado
com a economia e em muitas manifestações da vida
coletiva se coloca acima dela. No Brasil a economia
decide o que do modelo cívico é possível instalar. O
modelo cívico é residual em relação ao modelo econômico
e se agravou durante os anos do regime autoritário, e
se agrava perigosamente nesta chamada democracia
brasileira. A própria territorialização é
corporativa, os recursos nacionais sendo utilizados
sobretudo a serviço das corporações, o resto sendo
utilizado para o resto da sociedade. O cálculo econômico
não mostra como as cidades se organizam para serem
utilizadas por algumas empresas, por algumas pessoas. São
as corporações que utilizam o essencial dos recursos públicos
e essa é uma das razões pelas quais as outras camadas
da sociedade não têm acesso às condições essenciais
da vida aos chamados serviços sociais. No caso dos
negros, é isso o que se passa.
¨
Um
outro dado a acrescentar é que a situação dos negros
no Brasil é uma situação estrutural e cumulativa o
que mostra a diferença com outras minoridades ( que não
são minorias ). Vemos com frequência comparar, ou por
lado a lado, a briga dos negros com a briga das mulheres
e com a briga de outras minorias, inclusive algumas que
recentemente se levantaram para exigir direitos. Não dá
para por tudo no mesmo saco, como se faz. Sobretudo não
dá pelo seguinte: por exemplo, as mulheres começaram
sua luta recentemente, mas já conseguem resultados que
os negros não obtém. Isso basta para mostrar que as
situações não são iguais. As mulheres lutam dentro
da sociedade, enquanto os negros não fazem parte da
sociedade que manda. A situação deles é uma situação
estrutural e cumulativa, onde cada progresso obtido ao nível
do país não representa melhoria efetiva correspondente
de sua situação como grupo.
A
situação parece se agravar com o presente processo de
globalização, que tem efeito sobre todos os aspectos
da vida, incluindo a questão do preconce¨ito. Vejamos
por exemplo alguns elementos característicos desta fase
da história, como o retorno com força do darwinismo
social, condenando as pessoas consideradas inferiores na
sociedade mundial. Até as próprias técnicas com que
trabalhamos hoje se afirmam em dados de força, pois a técnica
mais forte expulsa as outras, toma o lugar das outras e
se impõe. Como temos de trabalhar com sistemas técnicos,
um resultado reflexo dessa necessidade é o
comportamento darwinístico. O presente clima
internacional está sendo desfavorável às pessoas
consideradas inferiores na sociedade mundial. Há um
clima contra as raças chamadas “inferiores”. Esse
clima já existia antes, mas com a globalização ele se
agrava e se adensa, daí constantes julgamentos de valor
das pessoas em virtude de raça, sua origem e também em
relação aos imigrantes. O Brasil, por ser um país
tradicionalmente aberto, é grande vítima dessas tendências
perversas universalizantes. Basta lembrar, neste outrora
intitulado país do homem cordial, o tratamento odioso
freqüentemente oferecido aos migrantes internos.
Estados e municípios não se pejam de colocar barreiras
nas suas fronteiras para impedir a entrada de migrantes
considerados indesejáveis. Tal fermento de
anti-solidariedade nacional se justifica até mesmo por
certos discursos carregados de semente de desagregação.
É a perversidade da globalização, consagrando os mais
¨ fortes, e pela mesma ocasião naturalizando os racismos,
os preconceitos, as discriminações. É assim, também,
que se chega a considerar normal, por exemplo, 1.300.000
de desempregados na cidade de São Paulo e milhões
neste país, onde há dezenas de milhões de pobres.
Tudo isso busca respaldo na idéia de que precisamos
organizar o país, para facilitar a globalização e
para que ele entre no primeiro mundo. Que bobagem! Uma
bobagem cientificamente respaldada, a gente aceitar a
naturalização da perversidade , que parece também ser
a norma primeira do comportamento dos políticos da
ordem global e da ordem nacional.
Essa
globalização tem também aspectos curiosos. Vejamos
essa polarização mundial pelos índios, que repetimos
aqui dentro. É natural que se defenda os índios, pois
eles merecem nossa ajuda, mas não considerando-os como
natureza mas como seres humanos. Mas a confusão
estabelecida por muitos entre a causa indígena e causa
ecológica folcloriza a campanha e impede a ampliação
do seu alcance. Talvez por isso também a causa negra
fica em segundo plano, já que os negros não fazem
propriamente parte da “natureza”, mas da produção,
o que complica tudo, pois a produção é causadora de
¨ conflitos reais e duradouros. A verdade é que o
discurso oficial, o discurso social no Brasil,
privilegia uma parcela da sociedade que tem problemas e
desconsidera uma massa da população que tem problemas
maiores, porque faz parte do processo da política.
E finalmente neste environment internacional, esse
discurso dos direitos humanos é muito fácil, se não
acompanhado do discurso dos direitos do homem, isto é,
de cada homem. Enquanto o que se tem feito é tratar dos
chamados direitos humanos, os direitos da cada homem não
têm um tratamento adequado. Aliás, é frequente que o
homem tenha os seus direitos acatados, quando há
especularização, e onde há especularização não há
nem direito nem homem, mas apenas discurso. Eu creio que
isso faz parte também da maneira como a chamada liderança
da formação social brasileira trata as diversas questões.
Neste particular, uma questão que me parece importante
de ser tocada é a questão do contrato sob o qual nós
vivemos hoje. Porque o Brasil não é bem democracia,
mas uma democracia de mercado. O que é central é o
mercado, não o homem.
Três
séculos de Iluminismo, uma luta consequente dos filósofos,
depois de intelectuais e de políticos para a ampliação
dos direitos e, de repente, tudo parece ter sido
perdido. O centro do Universo deixa de ser o homem para
ser o dinheiro, não o dinheiro produtor, mas o dinheiro
em estado puro, com seus sacerdotes, que são
banqueiros, seus templos que são os bancos.
Nessa
concepção da sociedade, no mundo e, sobretudo, neste
país, o homem é residual. A democracia de mercado impõe
a competitividade como norma central, uma
competitividade obtida através de normas privadas que
arrastam as normas públicas. O que domina nessa
democracia de mercado é o elogio da técnica, como se
ela se auto-satisfizesse e, preeminência da
racionalidade sem razão, é típica do processo econômico
do fim do século e obstáculo à floração do
pensamento.
Por
outro lado reina o consumo, que magnifica o ideal
contemporâneo de ter, no lugar do ideal de ser , que
leva a aceitação da obje¨tificação como se fosse a
objetividade e faz os homens aceitarem ser coisas,
recusando, por conseguinte, a individualidade forte. Por
isso, na democracia de mercado o consumidor é mais que
perfeito e o cidadão se contenta em ser usado, com a
morte da política, numa situação em que as eleições
são um ato de consumo eleitoral e o debate político é
substituído pelas pesquisas de intenção de voto. As
pesquisas não são o debate político. A idéia de
resultados afasta a idéia de valores. Por isso não há
democracia neste país, há apenas um a democracia de
mercado, na qual os mais fracos não hão de esperar
nada e os negros muito menos.
Tudo
isso é condimentado pelas duas violências centrais do
nosso tempo: a violência do dinheiro e a violência da
informação. São as duas grandes violências que
perturbam o conhecimento do mundo e atrofiam a condução
da consciência. Nos países onde essa violência do
dinheiro, essa violência da informação não têm
limites, a condução de uma consciência cívica é
realmente difícil. É porisso que neste momento estamos
assistindo, neste país, ao assassinato da idéia de nação.
O que de mais grave ocorre atualmente no Brasil é este
assassinato cotidiano da idéia de nação. Essa de¨struição
dessa idéia de conjunto, expressada nas séries de
medidas provisórias a que assistimos é o mais
grave crime cometido neste país nos últimos
trinta anos. Esse abandono da solidariedade... A sorte
é que a nação começa a se refugiar nas cidades, a
despeito dos poderosos do mercado e dos poderosos de
estado. As cidades estão reconstruindo a nação. E a
sorte dos negros, como a sorte dos pobres, é que eles
estão sobretudo nas cidades. Nestas, as mazelas não são
absolutas, mas contraditórias.
A
globalização agrava as crises urbanas e, ampliando o
fenômeno da escassez, aumenta a pobreza e a miséria e
estimula a violência. A sorte é que a globalização
que aí está não é obrigatoriamente a que vai ficar.
A que nós estamos agora vivendo é uma globalização
perversa, mas os materiais de que dispomos hoje no mundo
são suficientes para fazermos uma outra globalização,
mais humana.
Pela
primeira vez na história recente das técnicas o homem
não precisa ser escravo da máquina.¨ Se atualmente
ainda é, este não é um fato da técnica, mas da
organização. E junto a isso, veja-se o papel de um
novo cotidiano produzido pelo processo da globalização.
Essa multiplicação de individualidades, isto é, de
possibilidades de interpretação do mundo, do lugar e
de si mesmo, é uma nova riqueza ainda não explorada
devidamente. Quanto mais diferentes somos, mais
interpretações existem e, desse modo, os conflitos são
mais ricos e a possibilidade de negociação se torna
mais franca, mais aberta, mais produtiva. Isso é também
ajudado pela nova mobilidade dos homens. Nunca os homens
foram tão móveis, nunca eles foram tão numerosos e
viveram tão fora de seu nascimento. É uma enorme
riqueza que hoje se verifica no mundo inteiro sobretudo
nas cidades, com a chegada de gente de outras raças, de
outras religiões, de outros cheiros . Os americanos
propuseram ao mundo cheirar igual, com os famosos
desodorantes. Não conseguiram.
E
o fato de que o mundo acelera a sua globalização pode
ser uma boa causa, se pensarmos que a cidade é o lugar
onde as pessoas se movimentam mais, produzindo contatos
numerosos e crescentes. As classes médias dormentes,
mas agora atingidas pela crise do ajustamento, começam
¨também a despertar, já que são as carências que dão
a cada um a consciência de sua posição.
O
adormecimento das classes médias, nas fases de
prosperidade, reduziu a possibilidade de se perceber a
precariedade da situação de ser homem. Aliás, essa
superioridade dos pobres, dos migrantes, das minorias,
pelo fato de não terem acesso pleno às modernidades e,
por conseguinte, entender, a partir das carências, o
seu ser no mundo e o seu existir na formação social
nacional, esse aguçamento das contradições aparece
como uma esperança, ou pelo menos uma promessa.
Por
outro lado, esses esboços de moralidade internacional
que se desenham e esse discurso mesmo da moralidade
interna quem sabe um dia permitirão tornar positivos
alguns efeitos de campanhas e movimentos hoje isolados.
Mas o que recentemente vem sendo produzido a pretexto de
tratar da problemática do negro no Brasil é a pletora
de discursos ornamentais que um dia poderá possibilitar
uma tomada de posição, uma negociação mais adequada
e sincera. Primeiro é preciso deixar de lado os
discursos bobos ¨e os discursos choramingas. Depois
precisamos nos despedir das situações ornamentais,
onde predomina a gesticulação ritual e vazia, esses
festejos que consagram, apenas um dia, o melhor da
hipocrisia nacional.
Urge
que passemos aos verdadeiros projetos. Para isso, impõe
aos negros tomar consciência de que não é suficiente
conhecer seu próprio campo, mas é indispensável
conhecer o campo do outro, ou ainda melhor, conhecer o
campo comum em que vivem todos os brasileiros. A formação
social nacional é esse campo comum para o conhecimento
e a ação, que não podem deixar-se limitar pela
chamada realidade negra. Temos que recusar o gueto em
que nos querem confinar os que mandam na sociedade
brasileira e buscar lugares mais importantes dentro da
sociedade. Diante do mundo e do país, como uma
totalidade os negros devem buscar enxergar-se como
participantes dessa totalidade, que é dinâmica e
buscar os caminhos. No campo internacional, o encontro e
a busca de raízes comuns podem ser algo importante, mas
são também um convite a um não tratar de frente a
questão da formação social brasileira, central no
conhecimento do problema. Sem isso, não é a história
americana, nem a da Nigéria ou da África do Sul que ¨vão
ajudar no encontro de soluções para os negros
brasileiros.
E
a pretendida solidariedade internacional passa também
por reclamar solidariedade nacional. Os tempos porém não
parecem favoráveis. Vejam-se, por exemplo, os pobres
debates sobre a reforma da Previdência, que claramente
demonstraram o despreparo dos políticos para os grandes
debates nacionais e morais. O próprio discurso da oposição
é um discurso do contra, mas usando os mesmos termos da
chamada situação, onde o discurso dos princípios foi
substituído pelo discurso dos recursos. Há que
abandonar esse discurso dos recursos e enfrentar o
discurso dos princípios.
A
questão do negro também deve ser tratada de maneira
digna. A produção de um novo discurso poderá permitir
um novo plano de debate, e essa é a tarefa essencial
dos movimentos negros. Isto supõe a tolerância com as
práticas plurais. É evidente que o movimento negro tem
de ser plural, porque deveria ser uno? É a pluralidade
que faz sua riqueza e sua força. A trança no cabelo ou
¨ o cabelo espichado não devem ser um dado que exclua ou
separe. Que cada qual como é encontre seu lugar nessa
luta, participando pela forma que melhor aprouver a vida
pública, como cada um tem o direito de adotar a estratégia
possível que lhe pareça a melhor. Essa tolerância
dentro do movimento negro é indispensável para que ele
conheça uma outra etapa. Mas com isso tem que ser feito
mediante um discurso cientificamente elaborado, que não
pode ser um discurso choramingas, nem um discurso de
pura emoção. A organização é também indispensável,
como um dado multiplicador das forças limitadas.
Só
assim será possível rever injustiças seculares,
estruturais e cumulativas, mediante políticas compensatórias,
que devem ser urgentemente implantadas neste país,
inclusive as medidas de discriminação positiva. Pedir
aos negros que aceitem o discurso oficial e esperem
tranquilos a evolução normal da sociedade é condená-los
a esperar outro século. O país necessita, com urgência,
de
medidas positivamente discriminatórias, que são a única
forma de refazer um balanço mais digno, revendo o balanço
histórico.
Eu
estou muito agradecido pela atenção com que ouviram
estas considerações disparatadas e confesso que estive
muito feliz por ter sido convidado a estar aqui esta
noite.
Definição
de papéis, democracia, participação...
P:
Em seu entender, qual deve ser o papel de um intelectual
na luta contra o preconceito racial?
-
O papel do intelectual é a busca da verdade e a expressão
dessa busca. Não basta encontrar a verdade, é preciso
proclamá-la. Nesse caso, o que seria normal, que todo
intelectual se alinhasse em todo o tipo de luta para
restaurar direitos, para afirmar igualdades. Seria
normal que todo intelectual fosse contra o preconceito
racial. A verdade é que isso não se dá. E não se dá
em parte porque, no caso brasileiro, os intelectuais estão
cada vez mais omissos e uma boa ¨parte prefere a aliança
com o establishment. Mais especificamente, o
intelectual deveria participar da luta contra o
preconceito racial não apenas como profissão de fé,
um discurso de adesão, mas pela proposta de interpretação
da sociedade brasileira como um todo. Acho que é a única
forma pela qual o preconceito racial pode ser
eficazmente combatido, ultrapassando o limiar da emoção
e passando para a produção de um discurso coerente que
possa ser a base de um discurso político. As pessoas
preparadas para produzir tal discurso são as que a
gente chama habitualmente de intelectuais.
P:
O senhor poderia explicar melhor as principais diferenças
entre uma democracia de mercado e uma democracia de
participação?
-
Eu não vou falar de democracia de participação,
porque seria uma questão enorme. A participação como
ela é mencionada e como é feita não significa
democracia. Estou me referindo mais à democracia genuína,
isto é, um regime político que assegure através da
liberdade da igualdade uma ampliação sempre crescente
¨ de todos os tipos de direitos. O centro, a criação de
um sistema político onde a colaboração seja fundada
nessas qualidades essenciais de cada um. Já a
democracia de mercado, que é a que nós estamos vivendo
em muitos países hoje, e no Brasil em particular,
porque o Brasil não está vivendo uma democracia, mas
uma democracia de mercado, o homem não é central. O
que é central é o mercado e o homem é considerado com
residual. No caso brasileiro, basta ver as medidas
tomadas pelo atual governo brasileiro, em relação a
tudo que tem relação com o social, onde o que é mesmo
fundamental é o mercado e o homem recebe o resíduo, a
migalha, quando isso acontece. Todavia continua-se a
falar de democracia. Eu creio que há uma diferença a
estabelecer, e isso eu relacionaria com a questão
anterior - como o intelectual se comporta ou deve se
comportar dentro de uma democracia de mercado na luta
contra o preconceito racial - porque a democracia de
mercado agrava todos os tipos de preconceitos, ela passa
a dar preeminência não aos valores mas aos recursos.
P:
Como o senhor vê a questão das cotas reservadas para
estudantes negros nas universidades brasileiras?
¨ -
Eu creio que nós corremos o grande risco de limitar a
discussão da ascensão social pela educação a essa
questão de cotas. E a maneira como esse tipo de
pergunta se repete é sintomática de uma vontade de
estabelecer um debate falsificado. A questão que se
coloca não é propriamente de cotas, a questão que se
coloca é: quer o Brasil incorporar os negros,
ajudando-os a
ter
um lugar, digamos assim, normal dentro da sociedade,
quer o Brasil, na construção do seu futuro, considerar
que o negro deve participar desse futuro de forma igual?
Eu acho que é esta a questão. E nesse caso há o que
fazer. Será que nós vamos deixar à evolução espontânea
a solução deste problemas, como parece ser, ou a gente
teria que precipitar o movimento, e aí que a questão
das cotas aparece. O que é que eu devo fazer para que
os negros sejam mais numerosos nas boas universidades,
mais numerosos nos bons colégios, compareçam às
chamadas elites de todo tipo? Essa é a questão central
e não o inverso. Essa discussão a partir das cotas
amesquinha o debate e abriga a uma discussão sem
futuro. Eu creio que cotas ou outra coisa tem que ser
feita. Eu creio que o país tem que enfrentar esse
problema, buscando soluções, tem que mudar, e
enfrentar esse problema, buscando soluções, tem que
¨ mudar, e para mudar tem que ter soluções, que estão
chamando agora de discriminação positiva ou
afirmativa. Mas tem que temperar essa medida de cotas
com outras, por exemplo bolsas de estudo. Não adianta
nada deixar um negro pobre entrar numa universidade
rica, tem que ter bolsa de estudo, criar condições
ambientais que o favoreçam. Então me parece que essa
discussão tem que ser remetida aos negros.
P:
O senhor aceitaria o convite para participar de uma luta
das entidades negras que se organizam para combater o
racismo?
-
Cada vez que sou convidado eu trato de comparecer. O que
acontece é que eu me preparei para ser intelectual,
acredito ser um, e eu vejo uma grande dificuldade entre
ser um intelectual e ser militante. São duas atividades
que não se conjugam, senão muito excepcionalmente,
muito rapidamente, porque a necessidade de guardar
inteira liberdade é excluída aos militantes. O
militante acaba sendo uma pessoa que depende dos slogans,
dos grupos de que participam. No movimento negro eu
creio qu¨e deve haver lugar para diversas formas de
expressão, e uma forma de expressão que eu não
escolhi e penso que não vou escolher é de participar
de grupos e de tendências ou de facções. O que eu
quero é poder refletir sobre a questão, porque minha
vida foi sempre um investimento quanto a possibilidade
de reflexão e com isso permitir que se avance na produção
de um discurso diferente, porque o discurso dos
movimentos negros, em boa parte, é um discurso que não
sendo cientificamente elaborado, não tem a eficácia
política que deveria ter. Não tem.
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