O
ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E A REFORMA DA SEGURIDADE SOCIAL
Vicente Elisio
de Oliveira Neto
Promotor de Justiça Substituto
Sumário
:
1.
Introdução;
2.As
alterações na Carta de 1988 que resultariam da aprovação
integral do projeto de emenda apresentado pelo governo
federal;
2.1
Restrição ao salário-família; 2.2
1.
INTRODUÇÃO
O
tema desse estudo é a Reforma da Seguridade Social consoante o
Projeto de Emenda Constitucional apresentado pelo Governo Federal.
Seu objeto é investigar
a repercussão das propostas que integram o referido projeto em
face dos fundamentos e objetivos do Estado Social proclamado pelo
constituinte de 1988, por ele denominado Estado Democrático de
Direito.
Para
isso, esclarecemos desde logo, não cuidaremos dos limites
impostos ao poder constituinte derivado em razão do resguardo dos
direitos adquiridos, questão sempre tratada pelos que analisam o
tema.
Na
persecução de nosso objetivo, dividimos o estudo em cinco
partes, excluída esta introdução.
Inicialmente,
procuramos apresentar de forma sistemática o conteúdo do projeto
de emenda.
Em
seguida, expomos os argumento favoráveis e contrários às alterações
constitucionais.
Estado
liberal (Estado de Direito), sua superação pelo Estado Social,
Estado que se caracteriza pela declaração e garantia dos
direitos sociais, por meio da prestação de serviços públicos e
interferência na esfera das relações privadas.
Segue-se
à investigação do ordenamento constitucional vigente destinada
a evidenciar o caráter social do Estado Democrático de Direito,
seus fundamentos e objetivos fundamentais, bem como inserir a
Seguridade Social no quadro dos direitos sociais. Isto posto,
apontamos as restrições aos objetivos do Estado Democrático em
razão das propostas de reforma.
Por
fim, expomos nossas conclusões.
2. AS ALTERAÇÕES
NA CARTA DE 1988 QUE RESULTARIAM DA APROVAÇÃO INTEGRAL DO
PROJETO DE EMENDA APRESENTADO PELO GOVERNO FEDERAL.
No item que se
inicia, elencamos as mudanças constantes do Projeto de Emenda
Constitucional referente à Reforma Previdenciária ou, melhor
dizendo, reforma da Seguridade Social, tendo por base o texto
publicado no Jornal Folha de São Paulo em 17 de março de 1995.
A ordem de
apresentação das modificações é a mesma em que elas aparecem
no texto da Emenda.
Por fim,
esclarecemos que efetuamos breves comentários a respeito do
sentido e/ou do alcance da alteração exposta somente nas hipóteses,
por nós consideradas, imprescindíveis, tendo em vista que a
discussão crítica da reforma será objeto dos capítulos subseqüentes.
2.1.-
Restrição ao Salário-Família
Com a nova redação
proposta, o inciso XII do artigo 7º, assim disporia:
“XII – Salário
– família pago em razão do dependente
do trabalhador de baixa renda”.
Atualmente, o salário
– família é direito conferido a todos os trabalhadores urbanos
e rurais, sem que para fazer jus a este direito se exija qualquer
condição. Aprovada a inovação, faz-se mister que, além de
trabalhador urbano ou rural, o cidadão perceba remuneração
aviltante.
É público e notório
que o valor pecuniário pago a título de salário – família é,
na atualidade, inexpressivo, com o que se poderia argumentar que a
restrição, ou mesmo extinção do benefício, não acarretaria
repercussões de monta no plano social. Contudo, acreditamos que a
mudança em tela é de relevante importância para evidenciar o
caráter e os objetivos da proposta de reforma previdenciária,
para quem a investiga globalmente, como veremos a breve trecho.
2.2- Competência Legislativa em Matéria
Previdenciária
Com a alteração
do prescrito no inciso XII do artigo 24, retira-se dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios (artigo 30, inciso II), a
competência de que dispõem para legislar concorrentemente
sobre Previdência Social. O objetivo é impedir que tais pessoas
jurídicas de Direito Público criem seus próprios institutos de
previdência.
Além disso, com
a inclusão de mais uma alínea (f), ao inciso II, parágrafo 1º,
do artigo 61, a iniciativa de lei versando a respeito do custeio
da Seguridade Social passaria a ser de competência privativa
do Presidente da República.
2.3 – Proibição do Recebimento Simultâneo
de Proventos da Aposentadoria com a Remuneração de Cargo,
Emprego ou Função Pública
Ao artigo 37
seria acrescido o seguinte parágrafo, verbis:
“Artigo 7º - É
vedada a percepção simultânea de rendimentos de aposentadoria
com a remuneração de cargo, emprego ou função pública,
ressalvados os cargos mencionados no inciso XVI deste artigo.”
O inciso XVI
trata da cumulação remunerada de cargos, que só poderá ocorrer
nas hipóteses previstas em suas alíneas a, b e c, a saber:
a)
a de dois cargos de professor;
b)
a de um cargo de professor com outro técnico ou científico;
c)
a de dois cargos privativos de médico.
A respeito do
tema dispõe ainda a proposta de emenda em seu artigo 16, verbis. “Artigo
16 – o disposto no artigo 37, parágrafo 7 , em relação aos
cargos em comissão declarados em lei de livre nomeação e
exoneração, somente entrará em vigor dois anos após a promulgação
desta Emenda”. (Grifamos)
2.4. – Proibição de
Instituir, Manter ou Contribuir para o Custeio de Regime
Previdenciário pelo Exercício de Mandato Eletivo
Há a previsão
de acréscimo de um outro parágrafo ao artigo 37, em que ficaria
estabelecido ser vedado à união, aos Estado, ao Distrito Federal
e aos Municípios instituir ou manter Regime de Previdência pelo
exercício de mandato eletivo, bem como contribuir direta ou
indiretamente, a qualquer título, para o seu custeio.
A respeito,
preceitua o artigo 13 da Emenda, verbis:
“Artigo 13.
A extinção dos regimes de previdência relativos ao exercício
de mandato eletivo não prejudica os direitos à aposentadoria e
pensão, nas condições previstas na legislação vigente à data
da promulgação desta Emenda, daqueles que estejam em gozo do
benefício ou que nessa data tenham implementado os requisitos
para obtê-lo.
Parágrafo
único - Lei Complementar disciplinará a responsabilidade da União,
Estados, Distrito Federal, dos Municípios e dos respectivos
institutos referente à manutenção dos benefícios mencionados
nesse artigo, devendo, igualmente, dispor sobre a situação dos
que, tendo contribuído, não fizeram jus a qualquer benefício.”
2.5. – O Regime Previdenciário dos Servidores Públicos Civis
A Emenda inova a
redação do artigo 40 e seus parágrafos, estabelecendo em síntese,
o seguinte:
a)
ao servidor das pessoas jurídicas, de Direito Público
(Fundações, inclusive), é assegurado regime previdenciário próprio,
na forma da lei complementar prevista no artigo 201, que observará
os requisitos e critérios fixados para o Regime Geral de Previdência
Social definirá regras de cálculo do valor do benefício
d(artigo 40, caput);
b)
o custeio do regime será feito mediante contribuições
dos servidores públicos ativos e inativos, bem como dos
pensionistas e do respectivo órgão estatal (parágrafo 1º);
c)
lei ordinária estabelecerá a regra de reajuste dos benefícios
para preservar o seu valor real (parágrafo 2º);
d)
ressalvados os cargos previstos no artigo 37, inciso XVI,
é vedada a percepção de mais de uma aposentadoria pelo regime
próprio dos servidores, bem como percebê-la cumulativamente com
aposentadoria do regime geral (parágrafo 3º);
e)
via lei complementar poderão ser estabelecidos requisitos
relativos a tempo mínimo de exercício no serviço público e no
cargo ocupado pelo servidor, para fins de aposentadoria (parágrafo
4º);
f)
os dispositivos supracitados aplicam-se
aos membros do Poder Judiciário,
do Ministério Público e do Tribunal
de Contas da União (parágrafo 5º).
2.6 – Regime Previdenciário dos
Servidores Públicos Militares.
Com relação aos
integrantes das Forças Armadas e seus pensionistas, prescreve o
texto inovado do parágrafo 9º do artigo 42, um regime previdenciário
próprio, custeado por contribuições dos servidores ativos e
inativos, pensionistas e da união, na forma da lei complementar
prevista no artigo 201, que deverá refletir as peculiaridades da
profissão militar, bem como definir limites de idade e regras de
cálculo do valor do benefício.
No que diz
respeito aos policiais e bombeiros militares suas aposentadorias
obedecerão ao disposto no artigo 40, bem como aos preceitos da
lei complementar prevista no artigo 201, que deverá refletir as
peculiaridades destas profissões.
2.7 – Aposentadoria dos Ministros do
Tribunal de Contas da União
A Emenda altera a
redação do parágrafo 3º do artigo 73, suprimindo sua parte
final, que garantia aposentadoria com as vantagens
do cargo, desde que o Ministro
o tivesse exercido efetivamente por
mais de cinco anos.
Com a alteração,
assim estabelecerá o referido parágrafo, in verbis: “Parágrafo
3 – Os Ministros do Tribunal de Contas da União terão as
mesmas garantias, prerrogativas, impedimentos, vencimentos e
vantagens dos Ministros do Superior Tribunal de Justiça.“
2.8. – Aposentadoria dos Magistrados e
Membros do Ministério Público
Conforme já
indicamos (2.5), propõe a Emenda a aplicação do Regime
Previdenciário dos servidores públicos civis aos membros do
Poder Judiciário, do Ministério Público e do Tribunal de Contas
da união.
Aqui apontaremos
apenas a supressão do inciso VI, do artigo 93, bem como da alteração
do parágrafo 4º, do artigo 129, efetivada para adaptá-lo à
supressão indicada.
O inciso VI do
artigo 93 assegura aos Magistrados a aposentadoria com proventos
integrais, compulsória por invalidez ou aos setenta anos de
idade, ou facultativa aos trinta anos de serviço, após cinco
anos de exercício efetivo na judicatura.
Como a Emenda
estabelece a supressão do inciso acima e do parágrafo 4º do
artigo 120 manda aplicá-lo aos membros do Ministério Público,
faz-se necessário alterá-lo, retirando a remissão.
2.9 – Acordos e Execuções Trabalhistas
Ao artigo 114,
que trata da Justiça do Trabalho, o Projeto de Emenda quer
incluir um novo parágrafo, verbis:
“Parágrafo 3º – Nenhum pagamento decorrente de acordo ou
de execução de sentença será efetuado sem o prévio
recolhimento das contribuições sociais incidentes.”
2.10.
– Requisição e Acesso, pela Fiscalização Previdenciária, a
Informações Relativas ao Patrimônio e Operações Financeiras
dos Contribuintes.
Altera a Emenda o
texto do parágrafo 1º do artigo 145, que passaria a dispor:
“Parágrafo 1º – Sempre que possível, os impostos terão
caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica
do contribuinte, sendo facultado à fiscalização tributária e
previdenciária, nos termos da lei, a requisição e acesso a
informações sobre o patrimônio, os rendimentos e as operações
financeiras e bancárias dos contribuintes, ficando responsável
civil, criminal e administrativamente pela garantia de sigilo
dos dados que obtiver e atendido o disposto no artigo 5º,
XII”.
2.11
– Alterações nas Competências da União, Estados, Distrito
Federal e Municípios Relativas à Instituição de Contribuições
Sociais
Duas são as
alterações na matéria:
a)
propõe a Emenda excluir da competência da União a
instituição das contribuições sindicais que, desta forma, não
mais figurariam entre as contribuições parafiscais e, por
conseguinte, perderiam os privilégios decorrentes deste status
(artigo 149, caput);
b)
com a nova redação do parágrafo único do artigo 149,
levada a efeito para adequá-lo ao que passaria a dispor o inciso
XII do artigo 24 (ver 2.2), os Estados, o Distrito Federal e os
Municípios não mais poderão instituir contribuições
destinadas ao custeio de seus sistemas de previdência.
2.12
– Fim da Imunidade Tributária Específica Prevista no Artigo
153, Parágrafo 2º Inciso II.
Pretende a Emenda
suprimir o preceito insculpido no inciso II, parágrafo 2º, do
artigo 153. Trata-se de uma imunidade tributária específica do
imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza (IR) em
relação aos rendimentos provenientes de aposentadoria e pensão,
pagos pelos institutos de Previdência Pública, a pessoa com
idade superior a sessenta e cinco anos, cuja renda total seja
constituída, exclusivamente, de rendimentos do trabalho.
2.13 – O Financiamento da Seguridade
Social
Segundo o
projeto, a seguridade terá seu financiamento garantido por toda a
sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante
recursos provenientes dos orçamentos das pessoas jurídicas políticas,
bem como das seguintes contribuições (artigo 195):
a)
do empregador, que poderão ter alíquotas ou bases de cálculo
diferenciadas em razão da natureza da atividade incidentes sobre:
a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos
ou creditados; a
qualquer título; à
pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo
empregatício, a receita ou faturamento; o lucro;
b)
do trabalhador e dos demais segurados da Previdência
(inciso I, “a”, “b” e “c”, II, c/c parágrafo 1º).
Além destas
contribuições, outras fontes destinadas a garantir a manutenção
ou expansão da seguridade social poderão ser instituídas por
lei complementar (artigo 3).
Será definida
por Lei Federal os critérios de transferência de recursos para o
Sistema Único de Saúde e Ações de Assistência Social da União
para os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, observada a
respectiva contrapartida de recursos (parágrafo 6º).
Por fim, pretende
a Emenda suprimir o privilégio atualmente previsto no parágrafo
7º do artigo 195, que isenta de contribuição à Seguridade
Social as entidades beneficentes de assistência social.
2.14- O Direito à Saúde “Nos Termos da
Lei”
A nova redação
proposta ao artigo 196, insere em seu texto a expressão “nos
termos da lei”, passando o dispositivo a preceituar:
“Art. 196. A saúde
é direito de todos e dever do Estado, garantido, nos termos da
lei, mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução
do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e
igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção
e recuperação”.
2.15. – As Novas Regras do Regime Geral de
Previdência Social
A disciplina do
novo Regime Geral de Previdência Social que o projeto visa
estabelecer altera prescrições do artigo 201 e parágrafos, e
pode ser assim sintetizada:
a)
a previdência social será organizada, sob a forma de
regime geral, de caráter contributivo, observados critérios que
preservem o equilíbrio financeiro e atuarial (artigo 201, capuf);
b)
serão especificados em lei complementar os segurados, as
prestações, os prazos de carência e o valor máximo para os
benefícios (parágrafo 1º);
c)
é vedada a adoção de requisitos e critérios
diferenciados para concessão de aposentadoria e pensão aos
beneficiários do RGPS, ressalvados os casos de trabalho exercido
sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou à
integridade física (parágrafo 3º);
d)
lei ordinária definirá critérios que assegurem o
reajustamento dos benefícios, de modo a preservar-lhes o valor
real (parágrafo 4º);
e)
nenhum benefício que substitua o salário de contribuição
ou o rendimento do trabalho do segurado terá valor mensal
inferior ao do salário mínimo (parágrafo 5º);
f)
é vedada percepção de mais de uma aposentadoria a cargo
do RGPS, assim como a acumulação de aposentadoria do RGPS com
proventos de aposentadoria ou remuneração de cargo, emprego ou
função pública (parágrafo 6º).
2.16. – A Previdência Complementar
Com
relação ao Regime de Previdência Complementar pretende o
projeto firmar o seguinte:
a)
será organizado, conforme critérios estabelecidos em lei
complementar, sendo facultativa a adesão do segurado vinculado ao
RGPS (compulsório), com o fim de complementar as prestações
deste regime (artigo 202, capuf);
b)
a participação, a qualquer título, das pessoas
integrantes da administração direta ou indireta, dos três níveis,
no custeio dos respectivos planos de previdência complementar, não
poderá exceder a participação dos segurados (parágrafo 1º);
c)
as entidades de previdência privada com fins lucrativos não
gozarão de subvenção ou auxílio do Poder Público (parágrafo
2º).
2.17.- A Indeterminação do Valor Mínimo
do Benefício Conferido aos Deficientes e Idosos
Com
a modificação prevista na Emenda, o inciso V, do artigo 203,
passaria a estabelecer, verbis:
“V – a garantia
de auxílio mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso,
desde que comprovem não possuir meios de prover à própria
subsistência ou tê-la provida por sua família, conforme
dispuser a lei”.
A alteração
consiste na supressão de garantia de que tal benefício não
seria inferior ao mínimo, consoante dispõe o texto em vigor.
2.18. – Aposentadorias Proporcional e
Especial
Consoante
prescreve o artigo 10 do projeto, “ficam
extintas a aposentadoria proporcional por tempo de serviço, bem
como a aposentadoria especial de Professor”.
2.19. – Regras de Transição
O
projeto de Emenda estabelece uma série de disposições
destinadas a disciplinar a fase de transição, ou seja, o tempo
que decorrerá entre a promulgação das reformas e a elaboração
da legislação complementar e ordinária necessárias, bem como
procura determinar critérios que deverão ser observados para o
enquadramento das relações jurídicas em curso.
Destas
questões tratam particularmente os artigos 7º, 8º, 9º e 11 a
16. De tais preceitos não trataremos, tendo em vista que não
interessam ao objeto de nosso estudo.
3 – A DEFESA DA REFORMA
Ao
investigarmos os argumentos expendidos pelos defensores da reforma
previdenciária constatamos inicialmente que, em regra, não
buscam eles justificar as mudanças partindo de uma análise
global, na qual se apontaria o sentido e o alcance, os objetivos
fundamentais das alterações propostas. Ao contrário, o enfoque
prioriza um ou alguns aspectos, uma ou outra proposta, exceção
feita ao artigo da lavra do atual Ministro da Previdência
Reinhold Stephanes, embora omisso quanto a alguns pontos.
Na
exposição dos argumentos reformistas que iniciaremos, procuramos
apresentá-los em ordem decrescente de generalidade, consoante
nossa avaliação.
3.1 – Os Problemas do Sistema Previdenciário
Decorrem do Ordenamento Constitucional em Vigor
Embora
normalmente não explicitado pelos analistas, na base da maior
parte dos raciocínios mudancistas, provavelmente na totalidade
deles, encontra-se subentendida a idéia segundo a qual a
disciplina constitucional da previdência social brasileira é a
causa primeira dos inegáveis problemas que a afligem. Trata-se
afinal, de um imperativo lógico sem o qual não se vislumbraria a
necessidade de alterar a Carta Magna.
De
modo implícito manifesta-se a idéia quando se afirma, verbi gratia, a falência do sistema previdenciário, o expressivo número
de benefícios, os “privilégios” dos servidores públicos e
magistrados.
Por
outro lado, há quem não vacile em expor diretamente o argumento: o constituinte de 88
instituiu um modelo previdenciário inaplicável em nossa
realidade social’.
3.2. – Desproporção entre Benefícios e
Custeio
A
questão central para muitos é a enorme variedade de benefícios,
aliada a escassez de fontes de custeio, formulação que também
aparece nas observações dos que percebem a falência da previdência
social.
Focalizando
o assunto, doutrina Eduardo Gabriel Saad: “criaram-se
benefícios sem qualquer preocupação com o respectivo custeio
(...). Basta dizer que países do primeiro mundo (...) não
possuem um elenco de benefícios tão extenso e variado como o
nosso”.
3.3 – A Falência do Sistema Previdenciário
Para
uns, a previdência social faliu; para outros tantos, o sistema
encontra-se às vésperas do colapso. De uma forma ou de outra, é
inadiável a reforma salvadora.
Nesse
ponto surgem dados estatísticos e valores numéricos dotados de
baixa credibilidade, quer pela falta de transparência e controle
social dos recursos públicos em nosso país, quer pela contestação
baseada em outros dados e valores apresentados por vozes contrárias
ao diagnóstico da quebra do sistema.
Argumenta
Stephanes que no período 1980-94, o número de benefícios rurais
triplicou e, de maneira geral, o crescimento excessivo de benefícios
sem a efetiva contribuição fez com a previdência não disponha
de recursos em caixa para melhor remunerar os segurados.
A
situação é grave, a solução urgente e as propostas do governo
apontam no rumo certo, argumenta Nelson Jobim, verbis:
“as alterações
propugnadas no âmbito da seguridade social buscam atingir o difícil
equilíbrio entre a urgência de se redefinir os planos de custeio
e benefício, para prevenir o cada vez mais previsível colapso do
sistema previdenciário, tanto do setor público quanto do
privado, e a necessidade de se dar aos cidadãos o máximo de
visibilidade quanto ao seu futuro, evitando cortes drásticos e
abruptos nas relações anteriormente estabelecidas entre cada
indivíduo e o seu regime previdenciário”.
3.4. – Aposentadoria por Tempo de Serviço
Um
dos principais alvos das críticas reformistas é a aposentadoria
por tempo de serviço, particularmente sua modalidade
proporcional.
Argumenta-se
que os seus beneficiários são das classes mais favorecidas,
somente existe no Brasil e em uns poucos países árabes, e,
ainda, que os aposentados por tempo de serviço passam a usufruir
dos proventos da inatividade em plena forma física do que
decorrem dois problemas: o
longo tempo de gozo de benefício e seu status
de não contribuinte, problema este que a reforma busca resolver
ao estabelecer que os inativos irão contribuir.
Alega
Stephanes que “as pessoas
estão se aposentando cedo demais, 64,5% com menos de 54 anos e
vivendo em média 18/20 anos com a aposentadoria”.
3.5 – Os Benefícios dos Servidores Públicos
Enquanto
os segurados do Regime Geral de Previdência Social percebem benefícios
de pequeno valor e que não podem ultrapassar o teto previsto em
lei, Magistrados, membros do Ministério Público e servidores públicos
em geral gozam de “privilégios” em razão de perceberem na
inatividade proventos até 20% mais elevados que a remuneração
dos ativos, dentre outros.
Tal
situação, nas esferas nacional, estadual e municipal, deve ser
alterada de imediato, sob pena de comprometer ou inviabilizar as
atividades públicas, afirmam os defensores da reforma.
“Na União, os pagamentos com os aposentados e pensionistas se
aproximam aos dos trabalhadores ativos. Há Estados e Municípios
em que a folha dos inativos supera a dos ativos”.
3.6. – A Previdência Complementar
O
Sistema de Previdência complementar, que vem funcionando bem em
todo o mundo, pregam os reformadores, é a solução para
assegurar a sobrevivência digna dos inativos.
Estabelecido
um teto a ser observado em todos os regimes de previdência pública
(geral, dos servidores civis, dos militares), será facultado aos
segurados complementar seus benefícios através da filiação voluntária
ao novo sistema.
Além
disso, argumenta-se que a previdência complementar será decisiva
para o incremento da poupança nacional, instrumento decisivo para
o desenvolvimento pátrio.
3.7. – Fim da Isenção às Entidades
Filantrópicas
Por
fim, a seriedade do projeto de reforma é justificado com o fim da
isenção, atualmente existente, usufruída pelas entidades
assistenciais, estabelecido na Emenda e muito lembrado pelos meios
de comunicação, em face dos escândalos em que tais entidades já
figuraram no passado recente.
Ademais,
justifica-se a medida afirmando que a isenção em exame prejudica
o princípio contributivo do sistema.
4 – AS OPINIÕES CONTRÁRIAS
Os
opositores da reforma envidam seus maiores esforços para demolir
o argumento central dos reformistas, consistente na identificação
do ordenamento constitucional em vigor como a fonte dos problemas
do sistema previdenciário brasileiro.
Para
tanto, iniciam suas análises reconhecendo a existência de
problemas e distorções na Previdência Social. No entanto, para
eles a solução das dificuldades não decorrerá de alterações
no plano constitucional, posto que lá não se encontram suas
causas, de ordem administrativa e política, essencialmente.
Por
outro lado, buscam reafirmar a imprescindibilidade da atuação
estatal no campo de seguridade social, contrapondo-se, por
conseguinte, aos ideais privatizantes prestigiados pelos
defensores da reforma.
Por
fim, articulado a tais pressupostos, formulam duras críticas e
aspectos específicos. Do projeto de emenda, como veremos a
seguir.
4.1 – Os Reais Problemas do Sistema
As
dificuldades enfrentadas pela Previdência Social, esclarecem os
analistas anti reforma, relacionam-se a questões que podem ser
solucionadas sem que se faça mister emenda a Carta Magna, quais
sejam.
a)
desvio de recursos – as receitas da previdência foram
empregadas, v.g., na construção de Brasília, volta redonda e
Itaipu;
b)
falhas na organização administrativa;
c)
sonegação e apropriação indébita das contribuições
previdenciárias, possibilitadas pela fragilidade e deficiência
na fiscalização;
d)
má-gestão dos recursos financeiros;
e)
favoritismo e fraude na concessão de benefícios.
Após
analisar tais questões, por ele denominadas pontos de
estrangulamento do sistema, o Professor Dalmo Dallari
conclui pela desnecessidade e ineficácia da reforma proposta
tendo em vista que tais vícios “devem
ser urgentemente combatidos com objetividade, coragem e o Código
Penal nas mãos, sem a fantasia da modernidade e a falácia da
necessidade de remover obstáculos constitucionais”.
4.2 – A Importância da Atuação Estatal
no Campo Revidenciário
Em
verdade, com a reforma previdenciária, o que se busca é
estabelecer as bases para a privatização da previdência,
concluem os críticos.
Assim
sendo, procura-se afirmar a importância da atuação estatal no
campo previdenciário, argumentando-se com a insegurança das relações
econômicas no mundo atual.
Nesse
sentido, ensina o festejado Wladimir Novaes
Martinez que “a
instabilidade econômico-financeira própria da artualidade não
aponta investimentos como seguros a longo prazo. Inexiste garantia
do retorno de aplicações fora de instituições, estáveis, como
o Estado, e, mesmo com este, o risco é previsível. Poupar por 40
anos, mediante regimes financeiros como capitalização, é
aventura arriscada, diante de percalços naturais à rentabilidade
de qualquer sistema produtivo ou social”.
Tendo
em vista as experiências ocorridas em outros países,
particularmente no Chile, percebe-se que a privatização dos
sistemas previdenciários não é total, no sentido de incorporar
todos os segurados do regime público anterior. Normalmente, os
benefícios do contingente mais pobre da população são
assumidos pelo Estado.
4.3- Aposentadoria por Tempo de Serviço
Como
já noticiamos, um dos benefícios mais atacados pelos defensores
da reforma é o da aposentadoria por tempo de serviço. Em sua
defesa são apresentados dois argumentos, a saber:
a)
sua pequena repercussão financeira: as aposentadorias por
tempo de serviço somadas as especiais não chegam a representar
8% das despesas do INSS com o pagamento dos benefícios;
b)
a aposentadoria por tempo de serviço deve ser vista como
um fator de atenuação da questão do desemprego, na medida em
que contribui para a abertura de vagas no mercado de trabalho.
Ainda
com relação à aposentadoria por tempo de serviço, há quem
indague por qual razão o benefício vem sendo objeto de tantas críticas.
Acreditamos ser plausível afirmar que o interesse em suprimir o
benefício visa tornar mais vantajoso o sistema previdenciário
privado, que os promotores da reforma tentam instituir. Isto
porque, extinta tal modalidade de aposentadoria, os segurados
seriam obrigados a contribuir por um período mais longo.
4.4 – A Previdência Complementar
Com
relação a previdência complementar prevista no projeto de
Emenda, apresentada como solução apta a assegurar benefícios
equivalentes à remuneração a que faziam jus os segurados no período
ativo, bem como fator de incremento da poupança nacional, seus críticos
formulam argumentos de peso.
Ampara-se
a defesa do regime complementar em sua adoção em diversos países.
A fragilidade do argumento é demonstrada por Celso Barroso Leite,
que pontifica, ao traçar um panorama da situação dos sistemas
previdenciários estrangeiros: “A
previdência complementar também enfrenta dificuldades. Nos
Estados Unidos, por exemplo, onde ela é garantida pelo Estado até
certo limite, o Presidente Clinton está preparando projeto de
reforço dessa garantia. Ou seja, enquanto nós aqui estamos
discutindo essa bobagem de privatização da Previdência Social,
como se isso fosse possível, os Estados Unidos estão estatizando
a previdência complementar, os fundos de pensão”.
Além
disso, significativa parcela da população brasileira estaria
excluída do regime complementar por não dispor de recursos a
aplicar neste sistema de poupança. Investigando o problema
concluiu Milton Vasques: “No sistema de capitalização não há espaço para solidariedade e
Justiça Distributiva. Dele estão excluídos os cidadãos cujos
rendimentos situam-se na linha de pobreza ou abaixo dela, onde a
luta pela sobrevivência se trava no presente, impedindo-os,
racional e materialmente, de pensar em poupança para sobrevivência
futura. Esses são os maiores clientes da previdência social: os
que menos podem contribuir para financiá-la”.
5 – O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E A
SEGURIDADE SOCIAL
5.1. – O Estado Social
Transformação
social, política e cultural, decorrente de profundas alterações
no campo econômico, e de grande repercussão no mundo jurídico,
de capital importância para a compreensão da história das
sociedades ocidentais, deu-se em fins do século XVIII e tem por
fato histórico emblemático e decisivo a Revolução Francesa de
1789: Cuida-se do fim das monarquias absolutistas, cujo poder
tinha por fundamento a vontade divina, com a ascensão da
burguesia ao comando do Estado, com a justificativa da fonte
popular do Poder Político.
Em
substituição ao antigo regime (Estado Absolutista, Despótico),
instaura-se o Estado de Direito. A caracterização das estruturas
e relações do poder estatal sob a forma do Estado de Direito,
consoante a melhor doutrina,
é efetuada com a indicação dos seguintes traços: a submissão da atividade estatal ao império da lei (Princípio
da Legalidade); a adoção da técnica de divisão dos poderes do
Estado proposta por Mostesquieu; e, a declaração e garantia dos
direitos individuais.
Interessa,
para os fins do nosso estudo, ressaltar que dentre os direitos
individuais fundamentais reconhecidos no Estado de Direito
encontram-se a liberdade e a igualdade. Com relação a liberdade,
sua afirmação categórica encontra lugar no âmbito das relações
econômicas: os cidadãos são livres para estipularem entre si as
condições e bases das relações de trabalho, produção,
distribuição e consumo de bens, sem qualquer interferência do
Estado, que não deve imiscuir-se na seara das relações
privadas. A liberdade é, dessa forma, a liberdade de produzir, de
trabalhar, de consumir, em síntese: a liberdade afirmada no Estado de Direito é a liberdade econômica.
A
igualdade, por sua vez, é a igualdade formal, jurídica. Todos são
iguais e livres, podendo assim os cidadãos atuarem na sociedade
civil, esfera das relações privadas, em condições de
igualdade, sem que o Estado possa, ao legislar, criar distinções
entre os indivíduos, vez que é da essência da lei a
generalidade. A respeito, doutrina José Afonso da Silva:
“a igualdade no Estado de Direito, na concepção clássica, se
funda num elemento puramente formal e abstrato, qual seja a
generalidade das leis. Não tem base material
que se realize na vida concreta”.
Tais concepções
de liberdade e igualdade têm por fundamento a doutrina do
liberalismo, político e econômico. O Estado preconizado pelos
liberais é o Estado que deve pautar sua atuação pela
neutralidade na seara econômica. Visto que os cidadãos são
livres e iguais, e que tais direitos devem ser reconhecidos e
assegurados pelo Estado, tem-se por conseqüência que não pode
ele interferir nas relações intersubjetivas próprias da
sociedade civil, ou seja, na órbita das relações privadas.
As
proposições do Estado de Direito Liberal serão superadas a
partir do início do século XX com a doutrina do Estado Social.
Dentre
os fatores apontados como ensejadores do abandono da concepção
liberal de Estado destacam-se as lutas dos trabalhadores,
particularmente no continente europeu, que exigiam a interferência
do Estado na esfera econômica, via legislação disciplinadora
das relações de trabalho, bem como a prestação de serviços públicos
na área da saúde, educação, habitação, assistência social,
etc., e, ainda, a crítica formulada pelo pensamento socialista às
relações de produção e apropriação do resultado do trabalho
humano típicas do regime capitalista.
No
Direito Constitucional comparado, são indicadas as Constituições
do México (1917), de Weimar (1926) e a Carta de Bonn (1949), as
duas últimas da Alemanha, como as primeiras a elencar uma nova
modalidade de direitos, os direitos sociais, em um capítulo
relativo à ordem econômica e social.
A
doutrina do Estado Social não é pacífica. Questiona-se desde a
propriedade da expressão “Estado Social”ou “Estado Social
de direito”, até o caráter e os verdadeiros objetivos e
ideologia a que serve a teoria do Estado Social. Para uns,
trata-se de uma formulação revolucionária cuja aplicação
resultaria em alteração do status
quo, com a supressão do sistema capitalista e consequente
instituição do regime socialista;
para outros, não passaria de um paliativo destinado a
amenizar as condições sociais do sistema vigente; outros ainda
entendem ser fórmula apta a, mantido no sistema econômico,
tornar concretos os direitos de igualdade liberdade. De nossa
parte, preferimos o último entendimento.
Segundo
Elías Diaz, na expressão Estado Social de Direito “o
qualitativo social refere à correção do individualismo clássico
liberal para afirmação dos chamados direitos sociais e realização
de objetivos de justiça social”.
A
atuação do Poder Público no Estado Social visa a realização
da igualdade material entre os cidadãos. Nesse sentido ensina o
Mestre Paulo Bonavides que “o
centro medular do Estado Social e de todos os direitos de sua
ordem jurídica é indubitavelmente o princípio da
igualdade".
Visto
que historicamente a teoria do Estado Social ocupou o espaço
aberto com a superação do Estado Liberal de Direito, poderia-se
indagar de sua atualidade no momento em que ganha força a
retomada dos postulados liberais com a corrente denominada
neoliberalismo. A respeito, não vacila Paulo Bonavides: “O Estado Social é hoje a única alternativa flexível que a
democracia ocidental, a nosso ver, ainda possui”.
Sinteticamente,
podemos caracterizar o Estado Social apontando os seguintes traços:
a)
assim como no Estado de Direito, a atuação estatal
encontra-se submetida ao princípio da legalidade, o poder é
exercido por órgãos com atribuições típicas (divisão
funcional do poder), e aos cidadãos são assegurados direitos
individuais fundamentais;
b)
por outro lado, ao contrário do Estado liberal, o Estado
Social interfere na atividade econômica, disciplinando-a via
legislação, ou atuando diretamente em face de interesse público
relevante ou em razão de imperativos da segurança nacional
(intervencionismo estatal);
c)
a igualdade e a liberdade assumem caráter de direitos
materiais, que devem ser concretizados no plano social;
d)
assume o Estado Social a responsabilidade de assegurar os
direitos sociais de modo a realizar o bem estar social.
5.2 – O Estado Social da Carta de 1988: Estado Democrático de Direito
A
realização do Estado Social é afirmação presente, explícita
ou implicitamente, no texto das Constituições do Mundo
Ocidental.
Para tanto, normalmente é dedicado um capítulo da Lei Maior
aos direitos econômicos e sociais.
No
entanto, não há uniformidade quanto à denominação do
Estado. A Carta Alemã, em seu artigo 20, inciso I, firma que
a República Federal da Alemanha é um Estado Federal,
Democratico e Social. Na lei das leis espanhola prescreve
o seu artigo 1º ,inciso I, que a Espanha se constitui em um
Estado Social e Democrático de Direito. Por sua vez, a
Constituição Portuguesa adota a expressão Estado de
Direito Democrático.
Seguindo
a terminologia da Lei Fundamental Lusa, com pequena inversão
na ordem de seus termos, asseverou o constituinte pátrio que
a República Federativa do Brasil constitui-se
em Estado Democrático de Direito
(artigo 1º ). Não há que se levantar dúvidas a respeito da
filiação da Lei Maior em vigor ao grupo das Constituições
ocidentais que proclamam o Estado Social. Muito embora a
doutrina brasileira do Estado Democrático de Direito ainda
esteja por ser escrita, não obstante a riqueza de contornos
estabelecidos pelo legislador constituinte, não tergiversam
aqueles que, de passagem cuidaram do assunto, quanto ao caráter
social do Estado Brasileiro.
O
festejado Celso Ribeiro bastos é categórico: “No
entendimento de Estado Democrático de Direito devem ser
levados em conta o perseguir
certos fins, principalmente sociais,
guiando-se por certos valores”.
No
mesmo sentido, e ainda mais incisiva, é a lição de José
Afonso da Silva, verbis:
“A Constituição de 1988, ao indicar o Estado Democrático de
direito, abre às perspectivas de realização social profunda
pela prática dos direitos sociais que ela inscreve e pelo
exercício dos instrumentos que oferece à cidadania e que
possibilita concretizar as exigências de
um Estado de Justiça Social,
fundado na dignidade da pessoa humana”.
Tendo-se em
vista a caracterização do Estado Social que propomos
anteriormente (5.1), as lições acima referidas e a investigação
dos dispositivos constitucionais levada a efeito no próximo
item, restará afastada qualquer dúvida porventura existente,
quanto à essência social de nosso Estado Democrático de
direito.
5.3- Fundamentos e Objetivos Fundamentais do
Estado Democrático de Direito
Devemos
aqui indicar os princípios e valores eleitos pelo
constituinte, por ele denominados fundamentos e objetivos
fundamentais, para fixar os contornos do Estado Democrático
de Direito, que interessam diretamente ao desenvolvimento de
nosso estudo.
Já
no pórtico constitucional, em seu preânbulo, encontramos
expresso que o Estado Democrático, dentre outras tarefas,
destina-se a assegurar o exercício dos direitos sociais, a
liberdade, o bem-estar, a igualdade e a Justiça.
Os
fundamentos do Estado Democrático de Direito encontram-se
elencados no artigo 1º da
Carta Política. Dentre eles, faz-se mister referir a
cidadania e a dignidade da pessoa humana.
O
conceito de cidadania, enquanto fundamento do Estado Social, não
se restringe a titularidade e exercício dos direitos políticos.
A determinação de seu conteúdo só adquire precisão em
conexão com o de dignidade da pessoa humana.
Por
outro lado, a compreensão da dignidade da pessoa humana
aludida na Lei Suprema deve afastar a conotação moral que
muitas vezes assume a expressão.
Deve ser entendido como princípio constitucional fundamental,
“um valor supremo, que
atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem,
desde o direito à vida”.
É
contudo, na doutrina Portuguesa, nas lições de Canotilho e
Vital Moreira, que se apreende a acepção e o alcance da
dignidade humana enquanto fundamento do Estado Social,
consoante os mestres do constitucionalismo português “o conceito de dignidade humana obriga a densificação valorativa que
tenha em conta o seu amplo sentido normativo-constitucional e
não uma qualquer idéia apriorística do homem, não podendo
reduzir-se o sentido da dignidade humana à defesa dos
direitos pessoais tradicionais, esquecendo-a nos casos de
direitos sociais”.
Proclamado o
Estado Democrático de Direito, definidos os seus fundamentos,
optou o constituinte por estabelecer, em sede constitucional
(certamente preocupado em orientar o intérprete, o aplicador,
o administrador e o legislador ordinário), as balizas da
atividade estatal, os alvos que devem ser perseguidos para que
se materializem os princípios do Estado Social. Para tanto, o
artigo 3º da Constituição assinala os objetivos fundamentais
do Estado Brasileiro.
Segundo
a melhor doutrina, os objetivos fundamentais
“são tarefas, metas,
que visam a tornar concretas as mesmas idéias ou propósitos
assegurados em forma de princípios pela Constituição”.
Chamamos
a atenção para dois deles:
a)
construir uma sociedade livre, justa e solidária (artigo 3º
, inciso I);
b)
erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as
desigualdades sociais (artigo 3º , inciso III).
Com
relação à liberdade e a justiça social, já demonstramos a
importância que assumem para o Estado Social. Quanto ao
objetivo da solidariedade, veremos a breve trecho a relevância
que possui em matéria de Seguridade Social.
Quanto
aos objetivos atinentes à erradicação da pobreza e
marginalização e redução das desigualdades sociais, cumpre
anotar que se fundam no princípio maior do Estado Social que
o da realização da igualdade no plano social. Cabe aqui
citar a propósito os ensinamentos de Paulo Bonavides: “O Estado Social é
Estado produtor de igualdade fática. Trata-se de um conceito
que deve iluminar sempre toda hermenêutica constitucional, em
se tratando de estabelecer equivalência de direitos. Obriga
o Estado, se for o caso,
a prestações positivas: a prover
meios, se necessário, para concretizar
comandos normativos de isonomia”.
5.4. – A Seguridade Social no Quadro dos
Direitos Sociais
Posto
a claro ser da essência do Estado Social declarar a envidar
todos os esforços para a realização dos direitos sociais,
é tarefa inafastável determinar quais direitos se incluem
nessa categoria por força do ordenamento constitucional
vigente, destacando o direito à Seguridade Social.
São
direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o
lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à
maternidade e `infância e a assistência aos desamparados,
conforme prescreve o artigo 6º da Lex Legum.
Já
ensinava o saudoso constitucionalista Meirelles Teixeira que “no
Estado Social, os direitos sociais constituem-se em prestações
positivas do Estado destinadas a
organizar a assistência econômica, cultural, jurídica etc.,
para a massa de sus habitantes, especialmente para os mais
necessitados e desprotegidos”.
No
mesmo sentido, e chamando a atenção para a necessidade histórica
dos direitos sociais, constata-se que “as
modernas constituições impõem aos Poderes Públicos a
prestação de diversas atividades, visando o bem-estar e o
pleno desenvolvimento da personalidade humana, sobretudo
em momentos em que ela se
mostra mais carente de recursos
e tem menos possibilidade de
conquistá-los pelo seu trabalho”.
Dentre
os direitos sociais, a saúde, a previdência e a assistência
social são reunidos, em nosso Direito Constitucional, em um
conceito mais amplo, qual seja o de Seguridade Social.
Prescreve o artigo 194, verbis:
“Artigo 194. A
seguridade Social compreende um conjunto integrado de ações
de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas
a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e
à assistência social”.
Estabelecida
a natureza de direito social de que goza a seguridade social,
sua importância é ainda mais ressaltada quando se leva em
conta que a seguridade social também se enquadra entre os
Direitos Humanos Fundamentais.
Retornando
à análise do texto constitucional, percebemos que o
constituinte dedicou todo um capítulo da Ordem Social (Título
VIII) à disciplina da matéria (Capítulo II, artigos 194 a
204). Relembramos que em outros dispositivos encartados no
curso do Texto Magno, a matéria da Seguridade,
particularmente a previdenciária, foi objeto da atenção do
constituinte.
Para
os fins que buscamos, interessa aqui deixar expressos os
objetivos ou princípios que devem ser observados pelo Poder Público
na realização da atividade de Seguridade Social, previstos
nos incisos I a VII, parágrafo único do artigo 194, a saber:
a)
universalidade da cobertura e do atendimento;
b)
uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços
às populações urbanas e rurais;
c)
seletividade e distribuividade das prestações;
d)
irredutibilidade dos benefícios;
e)
equidade na forma de participação no custeio;
f)
diversidade da base de financiamento;
g)
gestão administrativa democrática e descentralizada.
Por
fim, faz-se mister ressaltar o princípio fundamental da
Seguridade Social que a doutrina formula, tendo por base a
disciplina jurídica da matéria, e que se nos afigura de
capital importância para o entendimento das implicações da
reforma proposta pelo governo. Trata-se do princípio da
solidariedade, assim definido por Wladimir Novaes Martinez,
respeitado estudioso do Direito Previdenciàrio: “O
Principio da Solidariedade Social significa a contribuição
pecuniária de uns em favor de outros beneficiários, no espaço
e no tempo, conforme a capacidade contributiva dos diferentes
níveis da clientela de protegidos, de oferecerem e a
necessidade de receberem”.
5.5
– A Proposta de Reforma da Seguridade Social Implica em
Restrições ao Estado Democrático de Direito
“Poderosas
forças coligadas numa conspiração política, contra o
regime constitucional de 1988, intentam apoderar-se do
aparelho estatal para introduzir retrocessos na Lei Maior e
revogar importantes avanços sociais, fazendo assim inevitável
um antagonismo fatal entre o Estado e a Sociedade. Não resta
dúvida que em determinados círculos das elites vinculadas a
lideranças reacionárias está sendo programada a destruição
do Estado Social brasileiro”. (Paulo
Bonavides, Curso de Direito Constitucional, p. 366)
A
contundente formulação do combativo constitucionalista tem
em vista o conjunto das reformas a que se pretende submeter a
Lei Maior. Daí porque conclui o Mestre afirmando o objetivo
da destruição do Estado Democrático de Direito. Entretanto,
como o objeto de nosso trabalho restringe-se à análise da
reforma da seguridade, preferimos falar em restrições ao
Estado Social.
Em
que medida e com que argumentos pode-se afirmar que a reforma
da seguridade social restringirá os objetivos do Estado
Social nos termos propostos e estabelecidos pelo constituinte
de 1988? Na medida que:
a)
a proposta busca extinguir e reduzir benefícios como,
v.g., a aposentadoria por tempo de serviço e o benefício dos
deficientes e idosos. Tais objetivos contrariam
indiscutivelmente os fins do Estado Social em razão do
agravamento das condições sociais;
b)
o projeto aponta para o incremento da previdência
complemental facultativa privada. Assim sendo, o Estado
transfere ao setor privado, que muito lucrará com tal medida,
recursos que irão ingressar em um sistema financeiro de
capitalização individualista, em detrimento da Previdência
Social, mantida em sistema de repartição baseada na
solidariedade;
c)
a proposta busca aumentar a arrecadação quer do
sistema público, incluindo na categoria dos contribuintes os
beneficiários, quer do sistema privado que estimula, posto
que impõe teto aos benefícios de categorias que atualmente
percebem proventos equivalentes à remuneração ativa,
obrigados deste modo a ingressar no sitema complementar,
decorrendo daí um injustificável sacrifício dimensional a
repercussão social do conjunto das alterações previstas na
Emenda Governista é tarefa impossível no momento. Todavia,
é possível desde já concluir que a aprovação da reforma
significará um retrocesso em face dos objetivos de construção
de uma sociedade justa e solidária que em 1988 despontava no
texto constitucional como aspiração dos cidadãos do Estado
Social Brasileiro.
6. CONCLUSÃO
Propõe o
atual Governo da Nação uma série de alterações no texto
constitucional. Em termos gerais, argumenta ser necessário
redefinir o papel do Estado e viabilizar o desenvolvimento e o
futuro do país, adaptando-o à realidade mundial, distinta
radicalmente da então posta em 1988. Dentre elas, a reforma
da seguridade social ocupa posição de destaque.
Em
síntese, a reforma da seguridade, aprovada nos termos
proposto, implicará em extinção e redução de benefícios,
através de mecanismos diversos, transferência ao setor
privado da parcela mais lucrativa da seguridade, em detrimento
do princípio da solidariedade, e aumento da arrecadação de
contribuições, no setor público e no privado
principalmente, por meio de inclusão de novos contribuintes e
estabelecimento de teto para o pagamento de benefícios.
A
defesa de reforma argumenta que a disciplina constitucional na
matéria é irreal, os benefícios são excessivos e o custeio
reduzido; o sistema encontra-se falido e muitos são os privilégios.
Ademais, a previdência complementar estimulada em muito
contribuiria para o desenvolvimento nacional ao incrementar a
poupança.
Em
sentido contrário, argumentam os opositores que os reais
problemas da seguridade estão relacionados particularmente
com os desvios dos recursos do sistema, sua péssima
administração, fraudes e interferências do fisiologismo político;
que não pode o Estado deixar de atuar no ramo; que não se
pode desconsiderar as repercussões sociais das mudanças e
que a previdência complementar excluirá expressivo
contigente social, que não dispõe de recursos para ingressar
no sistema.
Acreditamos
que uma tomada de posição acerca da reforma deve levar em
consideração o Estado social proclamado pelo constituinte de
1988. Não obstante, manifestamos nossa adesão às críticas
que não partem diretamente desse pressuposto.
A
característica fundamental do Estado Social, denominado em
nosso ordenamento constitucional, Estado Democrático de
Direito, é Ter por fim a concretização dos direitos
sociais.
A
investigação do texto constitucional permite que os
fundamentos e objetivos fundamentais do Estado nele proclamado
prendem-se à materialização dos direitos sociais, apontando
na construção de uma de uma sociedade do bem-estar e Justiça
Social. Para tanto, a atividade estatal é encarada como fator
imprescindível.
Argumenta-se,
ademais, que no período histórico em que vivemos não
conseguem os indivíduos isoladamente, sem a colaboração do
Poder Público, assegurar uma vida digna para si e para os
seus, o que torna essencial a seguridade social garantida e
efetivada pelo Estado.
Assim
sendo, só uma melhoria substancial nas condições de vida da
população como um todo tornaria plausível afastar-se o
Estado das responsabilidades e deveres que atualmente lhe
incumbem. Considerando-se que, de 1988 até hoje, as condições
sociais do povo brasileiro têm se agravado em escala
crescente, concluímos inexistir razões que justifiquem as
mudanças propostas.
Por
todo o exposto, afirmamos ser necessário, urgente e inadiável
que se cumpra a Constituição, ao mesmo tempo em que se leve
a efeito as mudanças indispensáveis à construção do
Estado Democrático de Direito, mudanças que independem de
reforma na Lei Maior.
Em
sendo o Ministério Público, por força de imperativo
constitucional, responsável pela defesa do Estado Democrático
de Direito, não podem os integrantes da instituição,
reunidos em Congresso, deixar sem registro que a reforma da
seguridade social contraria de modo flagrante os princípios e
fundamentos do Estado estampado pelo texto constitucional
vigente, inviabilizando a concretização da sociedade de
bem-estar e Justiça Social.
Março
de 1998.
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