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Direitos Humanos  e AIDS

HERBERT DE SOUZA (Betinho)

(Palestra proferida em 22 de outubro de 1987 na Faculdade de Direito da USP)  

meu tema é direitos humanos e doenças epidêmicas e eu vou tratar da questão da AIDS. Estou convencido de que a AIDS é uma doença revolucionária. Ela recoloca de forma radical para a nossa sociedade, tanto brasileira quanto internacional, uma série de problemas vitais que durante muito tempo tentamos ignorar. Nossa cultura foi se afastando do real e tenta ignorá-lo, ao invés de desafiá-lo. A medicina moderna foi criando uma idéia de onipotência e nos dizia, de forma indireta, que todas as doenças eram curáveis e que finalmente a morte não podia existir. A cultura ocidental moderna não só passou a ignorar a morte como a tentar negá-la sob todas as formas e através de todos os artifícios. Poucas são as pessoas que enfrentam a morte como seu cotidiano, como algo natural. Na nossa cultura a morte não existe. E a medicina se imbuiu dessa idéia, transmitida através da tecnologia e do avanço científico, de que nós estávamos a pique de superar a morte. Dentro dessa visão, todas as doenças são tratáveis, todas as enfermidades são curáveis. Num determinado momento e ciência moderna começou até mesmo a pensar que a eternidade estava ao alcance da humanidade. Estávamos já tratando o câncer como a última doença mortal. De alguma maneira, havia no horizonte de cada um de nós a seguinte expectativa: o dia em que descobrirem a cura do câncer marcará o fim das doenças mortais. Acabando as doenças mortais, acabou-se a morte.

E eis que surge um vírus, o HIV, que se esconde no sistema imunitário, nas células que definem, articulam, constróem o sistema imunitário. E ao se instalar nesse sistema o desarma, fazendo com que as pessoas passe a ser absolutamente vulneráveis a qualquer ataque externo. E está produzido o pânico do século XX. Um sistema imunitário desarmado é a doença mais espetacular produzida ao longo da história da humanidade.

A AIDS se apresenta como absolutamente mortal e epidêmica. No Brasil, hoje, a cada dez meses, dobram os casos de AIDS. Tomando-se como base três mil casos registrados no Brasil – subnotificados, obviamente, porque devemos ter cinco ou seis mil casos -, façamos esse exercício: dobremos a cada dez meses; em seis anos chegaremos à casa dos milhões, não de pessoas contaminadas, mas de pessoas com manifestação de AIDS. Então essa dimensão epitêmica, que existe a nível de Brasil, e a nível mundial, como que produz uma consciência de pânico. A humanidade pode, se não encontrar nos próximos seis ou sete anos a cura ou a vacina, estar condenada a um processo de extermínio por este vírus. Segundo pesquisas, alguns países da África já estão nesse quadro, pois 20% da população apresenta manifestação de AIDS ou se encontra contaminada pelo vírus.

Esse vírus, sob todos os aspectos, apareceu de forma espetacular, mortal, com manifestação rápida, fulminante, sem cura. E até o presente momento, sem nenhum meio de ataque direto que possa destruí-lo. Ele se transmite através da relação sexual. A relação sexual, queiramos ou não, é vital para a humanidade e é universal, e na nossa cultura está marcada por todo tipo de preconceito, culpabilidade, pecado, danação, inferno. Ele veio relacionado também ao sangue, que é outro elemento universal na cultura da humanidade; o sangue está na nossa cultura sob mil formas, há pessoas que entram em pânico quando vêem sangue, embora seja parte constitutiva da nossa realidade. E o sangue se transmite, fundamentalmente, pelo sangue. Mesmo quando segue através do esperma, é porque o esperma contaminado entra na corrente sanguínea, ele nos mata através do sangue.

Mas a AIDS vem marcada também por várias outras questões: o racismo, por exemplo. Quando o vírus foi descoberto, logo se buscou culpado, e o culpado era o negro africano, a AIDS teria vindo do Haiti. Depois se descobriu que mais americanos iam ao Haiti que haitianos iam aos EUA, aí se abandonou um pouco essa idéia. Nela, o culpado era a África, os africanos teriam sido contaminados, através de suas relações com o macaco, e passado esse vírus para o resto da humanidade. O racismo ensaiou seus passos na questão da AIDS e resistiu por uns três anos, e só recentemente, com o fracasso de todas as teorias que tentaram explicar a AIDS como resultado dos “seres inferiores africanos”, é que essa teoria caiu por terra. Racismo, sexo, sangue. Mas esse vírus também vinha associado a uma coisa já lembrada, e que é muito brutal para a nossa cultura enfrentar: a morte. Nossa cultura não admite a morte. A AIDS vinha dizer assim: “Convençam-se que todos são mortais”. E uma nova doença voltou a revelar para o século XX que a morte é absolutamente inevitáveis.

Bastavam esses quatro elementos para definir a AIDS como extremamente revolucionária e explosiva. Se comparamos o número de suas vítimas e o pânico existente em torno dela, não há a menor proporção. Mas eu acho, estou convencido, que existe uma razão objetiva para esse pânico. É que de fato não estamos diante de uma epidemia mundial, que só será vencida pelo desenvolvimento científico, pela mudança de comportamento de alguns setores da população e pela intervenção da sociedade e do Estado, de forma radical e enérgica, no controle do sangue a nível mundial. Mas eu queria ainda fazer referência a algo que a AIDS desvelou no mundo contemporâneo: a questão dos preconceitos que essa sociedade guarda em relação às pessoas. Eu, quando decidi falar aberta e publicamente que estava contaminado pelo vírus da AIDS, sabia que podia dizer isso como hemofílico, que fui contaminado através de transfusões de sangue, mas eu já tinha presenciado a morte e a tragédia de várias outras pessoas, que morreram de AIDS, que tiveram que morrer clandestinamente porque eram homossexuais ou drogados. E esses homossexuais e drogados haviam incorporado a culpabilidade, a discriminação da sociedade em relação a eles, e assumido isso de tal maneira, que preferiam a morte anônima a lutar pelos seus direitos.

Uma vez fui procurado por uma jovem que me disse o seguinte: “Meu irmão é funcionário de uma empresa estatal, ele tem AIDS e não consegue se tratar em nenhum hospital; meu pai e eu é que temos de cuidar dele, os hospitais se recusam e a empresa não dá a menor assistência”. Aí eu falei: “Se você quiser, nesse exato momento, vamos chamar a televisão, as rádios, os jornalistas e vamos fazer essa denúncia”. Ela respondeu: “Mas isso pode prejudicar o meu irmão”. E eu: “Minha amiga, você não disse que seu irmão está em estado terminal, morrendo?”. “’E”. “E o que mais ele pode perder? Ele não vai morrer?”. Ela disse: “É, ele vai morrer, mas eu tenho que pensar”. Aí falei: “Bom, você pense e me diga; no momento que você quiser, vamos denunciar essa empresa estatal que está discriminando uma pessoa humana, doente, por abuso e discriminação”. Vinte dias depois, fui chamado pela mesma pessoa que me disse: “Eu queria te agradecer porque fui conversar com a direção da empresa, exigi tratamento, disse que denunciaria essa discriminação e hoje meu irmão está morrendo com conforto, num hospital, com apartamento, com ar refrigerado, com tudo que ele tem direito”. E essa pessoa se sentia feliz porque seu irmão estava morrendo em paz.

Conhecendo esse e vários outros casos, percebi que a AIDS estava revelando, de forma trágica, o modo como a nossa sociedade discrimina as pessoas, discrimina o homossexual, discrimina a relação sexual, discrimina a privacidade das pessoas, o direito de existir da forma como a sua consciência julga necessário, ou de acordo com seus sentimentos ou com a sua vontade. E que ainda descarrega sua discriminação sobre as cabeças e consciências dessas pessoas. E o mais trágico é que muitas delas internalizam essa discriminação e morrem na clandestinidade, sem lutar pelos seus direitos mais elementares, como, por exemplo, o direito de morrer em paz. Senão de viver, mas de morrer em paz.

Essa talvez tenha sido uma das experiências mais difíceis para mim. Eu presenciava o fato em homossexuais, drogados, ou o que fosse, e estava diante de pessoas, não diante de objetos da minha condenação moral. Ao mesmo tempo, meus dois irmãos manifestavam a doença. E estávamos enfrentando esse problema ainda clandestinos. Foi então que decidi sair da clandestinidade. Já tinha vivido assim durante cinco anos, clandestino na ditadura militar; para mim era o suficiente. É inadmissível que alguém sofra por um vírus, uma doença, uma enfermidade, e que, além disso, além de ter de enfrentar a morte, ainda precise se esconder da sociedade e dos seus irmãos e irmãs. E a experiência que eu vivi ao dizer que era hemofílico e contaminado por AIDS, e que meus irmãos também eram, foi e está sendo uma experiência extremamente positiva. Para mim e pelo menos para mais um, porque o outro irmão provavelmente não tenha condições de estar percebendo o que está acontecendo com ele. Ao romper a clandestinidade, ao denunciar a discriminação, recebi muita solidariedade.

Solidariedade de amigos recentes, amigos de muito tempo, mas também de pessoas completamente desconhecidas, que nunca me viram, que nunca souberam, que me encontram na rua e demonstram apoio e afeto. Então eu descobri também isso, que quando a gente aposta na dimensão negativa, a gente colhe a dimensão negativa. O pessimista sempre colhe a desgraça. Agora, quando a gente aposta na dimensão positiva, na solidariedade, também colhe a dimensão positiva. Acho que é uma coisa perigosíssima admitirmos, em princípio, que as pessoas são ruins, que as pessoas são más, egoístas e covardes. Acho que devemos partir do princípio oposto, e apostar nisso. E tomar o resto como exceção e não como regra. Há um caso ilustrativo. Meu filho de cinco anos e meio brincava sempre com duas crianças e, quando eu saí na televisão, no jornal ou no rádio, os dois amiguinhos desapareceram de nossa casa. Minha esposa pressentiu algum problema. A primeira reação nossa foi da mais profunda tristeza. Discriminar a mim que tenho 52 anos não me incomoda muito, mas discriminar uma criança de 5 anos e meio é triste. Triste e inadmissível. Decidimos chamar a família, o pai e mãe das duas crianças, e eles vieram. Sentamos e dissemos: “Olha, nós sabemos que vocês devem estar preocupados com os filhos de vocês; é justo; todo pai e toda mãe se preocupam com os filhos, com a saúde deles, mas queremos dizer a vocês algumas coisas”. Aí demos, durante uma hora, mais ou menos, um curso prático sobre hemofilia, transfusão de sangue, contaminação genética. Falamos que nosso filho não é hemofílico, portanto não toma transfusão de sangue, portanto não está contaminado. Depois mais meia hora sobre AIDS, as formas de contaminação, as formas de transmissão, como se transmite, como não se transmite. E os dois escutavam mais atentamente e, depois dessa conversa, já estavam querendo saber sobre outras coisas, sobre onde nós tínhamos estado no exílio, curiosos sobre outras dimensões da nossa vida. E, depois de duas horas de conversa, toda a questão estava resolvida. No outro dia, cedo, as duas crianças amigas já estavam lá em casa, brincando com o nosso filho. E continuam brincando até hoje.

Esse exemplo só nos mostrou o seguinte: a passividade, o pessimismo, a entrega ao que existe de pior, só reproduz o pior. Se nós não tivéssemos conversado com aquela família, provavelmente as crianças não estariam brincando com nosso filho. Mas, depois da conversa, da informação, da abertura, da confiança na capacidade deles em entender a situação e enfrentá-la, a situação mudou. Não quero dizer que todos vão ter condições de viver e de proceder como nós. A situação para os homossexuais é muito difícil, mas é possível fazer alguma coisa.

Partindo da experiência pessoal, quero dizer o seguinte: a AIDS está produzindo um verdadeiro strip-tease da nossa sociedade, dos nossos valores, da nossa cultura, assim como do sistema de saúde em nosso país. Aqui, o sistema de saúde não existe para a prevenção. É um sistema da cura, da morte e do comércio. Desde há muito deficiente, foi destruído ao longo desses vinte e tantos anos de ditadura. Na verdade, nunca tivemos uma política séria de saúde pública, que estivesse voltada para interesses da população.

Eu já disse que a AIDS era a ponta de um iceberg, porque é a ponta mais dramática, mais visível. Mas logo abaixo vem uma série de doenças endêmicas que poderiam ter sido absolutamente eliminadas do país, com pouco investimento e pouco recurso, e que até hoje não o foram, para vergonha nossa. O Brasil é um país tuberculoso, um país com doença de Chagas, com lepra, com esquistossomose e uma série de outras enfermidades que atingem a milhões de pessoas, sem contar aquelas que morrem sem estar doentes, porque morrem de fome. Como é o caso da mortalidade infantil no Nordeste e também (por que não?) nas periferias das nossas capitais. Há porém a consciência política de que nós não temos um sistema de saúde; mas, de doença e comércio – exatamente esse comércio que produziu a calamidade do sangue, transformando em mercadoria e hoje transmitindo a morte, por meio da transfusão, através da AIDS, hepatite B e várias outras doenças. E essa situação tem muito mais a ver com política e cidadania e direitos humanos do que com qualquer coisa.

Nessa luta relacionada à AIDS, tive uma revelação fantástica: eu descobri que o principal problema de saúde no Brasil era o ministro da Saúde. Ele é ministro da Saúde de um país que ocupa o 2º lugar no mundo em casos absolutos de AIDS, nunca entendeu o que é uma epidemia, tendo tido a coragem de dizer que não importava AZT porque o Brasil tinha que fazer pesquisa científica para comprovar sua eficiência e proteger o consumidor. Isso quando nós sabemos que esse mesmo ministro é quem permite a importação e o uso, aqui no Brasil, de drogas condenadas no mundo inteiro.

Outro exemplo da forma como a gente enfrentas obstáculos ali onde não deveria haver, foi quando o diretor da Cacex, perguntado pelo jornalista se ia importar ou não AZT, saiu-se com esta jóia: “AZT é coisa de bicha rica”. Pois bem, depois dessa ele continuou em seu cargo, porque uma das coisas que se perdeu nesse país foi aquela coisa elementar que se chama sentido de dignidade.

Mas gostaria de terminar dizendo o seguinte: creio que nós podemos transformar a tragédia da AIDS, da enfermidade e da doença num desafio, numa oportunidade, numa possibilidade de recuperar na nossa sociedade, em nós mesmos, em cada um de nós e em todos nós, o sentido da vida e da dignidade. E, com esse sentido da vida e da dignidade, seremos capazes de lutar pela construção de uma sociedade democrática, de uma sociedade justa e fraterna.

Debate

Pergunta: Caro Betinho, todo o mundo foi contaminado pela emoção, felizmente uma boa contaminação... Se essa doença emergiu, como você observou, foi porque a nossa elite se sentiu atingida, e no Brasil ela nunca se sente atingida. Há dois anos eu lhe disse que você trouxe do exílio uma lição muito importante para nós todos, que, atabalhoadamente, queremos construir um país melhor. E a lição que você nos deu, eu senti de perto vi, como é que você trabalhou, quando estávamos divididos, com mil picuinhas na questão da reforma agrária, com todas as entidades se dividindo a troco de ninharias, ano de 82, nós vimos, no final de 82, você, como um dos articuladores principais, uma paciência homérica, conseguir sentar, na mesma mesa, grupos que jamais aceitariam sentar na mesma mesa, grupos que estão sendo dizimados agora no campo. Essa campanha pela reforma agrária foi uma das coisas mais lindas que já vi nesse país; ela começou aos poucos, de repente se espalhou pelo Brasil inteiro, ano de 83, ano de 84, em São Paulo, vimos passeatas, concentrações de mil trabalhadores rurais do Vale do Ribeira, interior do Estado, que a imprensa escondeu; e, no Brasil, como se escondem as coisas, a grande massa da população é uma massa invisível, o que a AIDS fez foi atingir a massa invisível. E tudo isso, se hoje no Congresso Constituinte conseguimos fazer com que a reforma agrária, que foi a grande derrota de cem anos atrás na Abolição, voltasse a ser de fato um outro ponto decisivo, um ponto central, isso deve muito à sua paciência, à sua sabedoria, a essa sua calma, e eu queria lhe agradecer por isso, como cidadão brasileiro e... com a emoção que cabe para cada pessoa trazer.

Betinho: Queria fazer dois comentários. O primeiro é o seguinte: nós não conhecemos realmente, no Brasil, o perfil social da AIDS, que classes sociais ela está atingindo. Como vocês sabem, a pesquisa social no Brasil é miserável. Os indicadores sociais no Brasil são miseráveis, tão pobres quanto a renda per capita. Dados sobre desemprego, sobre acidentes de trabalho, sobre, enfim, tudo isso que a gente gostaria de saber, que existem em países mais conscientes, nós não temos, são dados tão pobres quanto a população. Por isso, acho que a gente deve tomar com bastante cuidado a constatação sobre quem está sendo afetado por AIDS no Brasil, e sobre quem vai ser afetado. A desgraça que atingiu os americanos pode, paradoxalmente, ser um elemento de salvação da própria humanidade. Se a AIDS é uma doença do chamado Terceiro Mundo, como aliás já está sendo na África, com os africanos morrendo de AIDS há muito tempo... Com a pesquisa dos japoneses, agora, de que esse vírus poderia estar existindo há mais de setenta anos, isso fica mais provável ainda. Acho que nós dificilmente teríamos a concentração de esforço e de capacidade científica que está sendo colocada agora em relação à AIDS. É muito provável que o perfil dos aidéticos nos EUA seja basicamente de classe média, inclusive porque a classe média americana é a grande maioria daquela sociedade. No caso do Brasil, eu temo que, além da classe média, que é essa parte visível em que você falou, uma grande proporção da população pobre vá ser atingida. O que acontecerá, infelizmente, se nós, num prazo muito curto, não vermos condições de debelar a crise.

Acho que este governo não revelou a menor capacidade e sensibilidade, diante deste e de todos os outros problemas sociais que conhecemos. E eu diria até mais, que o próprio governo americano não se empenhou à altura do desafio que está colocado. Porque a questão da AIDS é de uma velocidade espetacular, cada mês, cada seis meses, valem, no caso da AIDS, o que valeria cinco, dez anos para outras enfermidades; então, os investimentos que o mundo desenvolvido está colocando em relação à AIDS não correspondem à gravidade da epidemia, nem aqui, nem lá. Se eles dedicassem 10% do dinheiro gasto em corrida armamentista à pesquisa da AIDS, não tenha dúvida de que nós já estaríamos hoje muito mais próximos da cura, se é que já não estivéssemos com a cura. Existe uma outra coisa fantástica na AIDS: não posso aceitar que ela seja incurável, não existe essa idéia, o que existe é a incapacidade da ciência em chegar ao conhecimento do problema, quer dizer, à cura da AIDS. Essa é uma questão.

Quanto à reforma agrária, realmente acho que uma das lições que tiramos da Campanha Nacional pela Reforma Agrária, aí por analogia, comparando a questão com a questão da AIDS, é a seguinte: durante bastante tempo, muito de nós trabalhamos mais a divisão que a unidade. Essa é outra coisa: por que não trabalhar mais a unidade que a divisão? Acho que a Campanha Nacional de Reforma Agrária é uma evidência dessa possibilidade. Hoje, movimentos sociais com diferenças profundas, que são mantidas, são capazes de sentar juntos e lutar por uma mesma emenda popular, por uma mesma perspectiva. Acho que isso é um pouco o que falei de apostar naquilo que a gente tem de positivo, de proposta, e não de autoderrota antecipada em que, muitas vezes, a gente entra.

Pergunta: Sabemos que algumas empresas estariam fazendo exames de sangue em seus candidatos para ver se apresentam o vírus da AIDS, e se tiverem, elas recusam os candidatos contaminados. Queria saber como você sente esta questão do estigma da AIDS, sendo colocado em relação ao direito das pessoas, privando dos direitos, invadindo de forma violenta a intimidade e a privacidade dessas pessoas.

Betinho: Eu acho que existem já hoje uma série de fatos que mostram como a discriminação contra as pessoas, particularmente no caso da AIDS, está afetando concretamente os direitos humanos. Uma ética médica mesmo, uma ética científica, exigiria sigilo absoluto no diagnóstico de qualquer enfermidade. Quer dizer: a relação do paciente com o médico, do ponto de vista ético, deveria ser tão sigilosa quanto foi a relação fiel e padre na confissão. Pelo menos parece que a Igreja Católica conseguiu manter isso por milhares de anos sem que houvesse grandes denúncias de violação. Infelizmente, hoje, com o problema da AIDS, temos recebido, por exemplo, na ABIA, uma série de denúncias ou preocupações de que várias empresas estariam pressionando laboratórios ou médicos para que comuniquem os resultados dos exames à empresa. E obviamente, essa comunicação, se é positiva, se supõe que ela produziria, de forma velada ou não, creio eu, motivo de despedida. Até agora, no entanto, não tivemos nenhuma denúncia pessoal, individualizada, de uma pessoa que chegasse e dissesse assim: “Foi feito o teste, foi constatada a positividade e eu fui demitido”. No entanto, já recebemos uma série de indicações de que problemas como este poderiam estar ocorrendo. E observe que isso, além de constituir uma discriminação contra a privacidade e o direito das pessoas, é uma medida de caráter absolutamente idiota. Porque uma pessoa aidética, trabalhando no seu ambiente, ela não constitui risco algum de contaminação.

Esse é um lado da questão que eu acho que está aí presente. Temos tentado desenvolver trabalhos na linha de direitos e na linha da legislação, que previna esse tipo de discriminação. E a principal questão se refere ao direito do sigilo do exame. Por exemplo, existe a obrigatoriedade da notificação aos serviços públicos, à Secretaria da Saúde etc., para se fazer registro, o controle da epidemia. Mas essa comunicação poderia ser dada em código. Nos EUA, por exemplo, quando as pessoas vão fazer exames, pergunta-se a elas, antes do exame, se querem ser comunicadas do resultado, e se quiserem de que forma, quer dizer, a pessoa é consultada previamente sobre como quer exercer seu direito de privacidade. Acho que o problema é mais complicado quando você observa uma pessoa que é positiva e que é casada, porque isso envolve também o direito da esposa e dos filhos. Então, na verdade, a AIDS abriu um capítulo importante no campo da ética. Assim como reabre outros capítulos mais difíceis para a nossa cultura, como é o caso da eutanásia. Quando você está diante de um caso terminal, o que você faz? O que é respeitar o direito à morte de uma pessoa? No caso específico das relações de trabalho, acho que já existe hoje um conhecimento suficiente para garantir, ou para lutar para garantir, os direitos do trabalhador. E é claro que uma pessoa com AIDS, desde que seja superada a crise de uma infecção oportunista, por exemplo, ela tem todas as condições de voltar ao trabalho e de exercer o seu direito ao trabalho, tranquilamente.

Quero, sempre resgatando a parte positiva, dizer o seguinte: Nós já fomos chamados por várias empresas estatais, Embratel e Eletrobrás, para fazer seminários, painéis para os empregados, sobre AIDS. O último tinha 1.600 empregados, em duas assembléias, para as quais eles foram liberados do trabalho, a fim de discutir com médicos, psicólogos, e inclusive eu estava presente, sobre todos os aspectos da AIDS, com debate aberto. Um médico da empresa defendeu um ponto de vista muito correto, ele disse: “Aqui não é diferente do resta da sociedade brasileira, então, muito provavelmente devem existir empregados com AIDS e nesses casos nós vamos tratar deles e se eles tiverem condições de trabalhar, vão trabalhar, porque não oferecem perigo de contaminação”.

Eu acho que existe sempre a possibilidade de nós tomarmos a iniciativa de colocar, nas relações de trabalho, a questão da AIDS, ao invés de esperar sempre que o problema chegue sob seu aspecto negativo, que é exatamente a discriminação, a dispensa, o pânico e o medo no contexto onde o trabalhador está. Nós tivemos contato, por exemplo, com o Sindicato dos Portuários do Rio de Janeiro, para fazer uma pesquisa e um trabalho entre os portuários, porque foram descobertos, parece, seis casos de AIDS. Agora a  situação, a meu ver, é particularmente dramática na população carcerária, porque aí, somando-se à violência já brutal, e às condições de vida brutais em que vivem, você ainda coloca a questão da AIDS pelo lado da droga e das relações sexuais. Acho que um dos maiores desafios aos direitos humanos hoje, na questão da AIDS, se coloca ali onde está, digamos, a violência das violências, a miséria das misérias: na população carcerária. No ambiente de trabalho, acho que ainda temos condições até mesmo de manter a solidariedade, impedindo que essas coisas se manifestem. Nós temos que travar essa luta antes que a AIDS se transforme numa epidemia de grandes proporções, gerando o pânico na população. Por sorte, nós ainda não temos o pânico.   

Pergunta: A gente acaba chegando a conclusão de que a AIDS é uma doença extremamente peculiar, porque ela não mexe só com o problema da saúde, é uma doença que traz uma característica a acaba alterando o  comportamento de uma forma que a gente pode dizer que, daqui para a frente, só vamos ter uma geração, que está começando agora ou que está com vinte e poucos anos, marcada em todos os níveis pela questão da AIDS, não só no nível sexual, mas a nível de comportamento geral sob todos os aspectos: como a gente se aproxima das pessoas, como a gente conversa com as pessoas. Então todas aquelas conquistas da juventude durante toda uma década, rompendo com uma série de tabus, está extremamente comprometida por essa doença. Na hora que a gente vai combater, encarar o problema da AIDS, a gente tem que começar a tomar pelos diversos aspectos. Primeiro, o problema sanitário, basta olhar esses hospitais da periferia de São Paulo: AIDS em série, a capacidade de difusão é uma coisa assustadora. Depois, tem o problema moral. O lado do preconceito, da discriminação. Enfim, é uma série de aspectos que a gente tem que pegar. O lado da informação. Quando você contou o caso com teu filho, eu envergonhado me questiono se não teria a mesma atitude dos pais dos meninos, porque a falta de informação é uma coisa impressionante. Então, eu gostaria de saber, você que já está aí mu, nível de discussão e está exercendo um trabalho, gostaria que contasse um pouco do seu trabalho, o que vocês estão fazendo, como vocês estão atuando e como vocês estão procurando pegar todos esses aspectos e jogar para as pessoas.

Betinho: Bom, antes de responder a isso queria acrescentar um elemento na minha análise que acho que é fundamental. Tenho dito que existem dois tipos de vírus. Não sou virologista. Mas existe um outro vírus na consciência das pessoas. Existem milhões de pessoas contaminadas pelo vírus do medo. Tem pessoas que hoje estão morrendo de AIDS, sem ter AIDS. Por exemplo, há os que se suicidam porque acham que estão contaminados. Em São Paulo, teve uma família que se suicidou. Existem pessoas que começam a sentir e a sofrer o medo da AIDS sem ter nenhuma razão para tal, e que no entanto sofrem do medo tal qual uma outra pessoa que teria razão. E essas não são milhares, são milhões. Então, existe um problema ao nível coletivo do medo. E que eu até me pergunto, qual é a razão desse medo. A maioria esmagadora de pessoas com medo de estarem  com AIDS não tem razões objetivas para tal, no entanto elas foram contaminadas pelo medo. Eu diria, sem tentar ser psicanalista, que a AIDS começou a ser uma espécie de catalisadora de medos, de sentimentos de culpa, de preconceitos, de tudo, uma espécie de Chernobyl virológica, um negócio incontrolável. Eu já vi, por exemplo, casos de adolescentes que, porque há quatro anos tiveram relações com uma mulher desconhecida ou porque há dois anos transaram com não sei quem e porque de repente perceberam uma pinta vermelha nas costas, entram em estado de pânico e querem fazer exame para ver se estão com AIDS. Eu já curei vários desses medos, porque fiz algumas perguntas chaves e desmoralizei o medo. E as pessoas se curam. Então existe essa outra dimensão, porque até agora eu estava falando do AIDS-AIDS, do vírus-vírus, mas esse outro também é real, é esse medo difuso que existe na sociedade e que está atingindo hoje, fundamentalmente, a juventude.

Mas atinge profundamente também as mulheres. Porque veja que coisa fantástica, uma mulher casada com um heterossexual, de repente fala assim: “Se o meu marido tem uma transa fora, ele pode se contaminar e me contaminar”. A partir do momento que ela percebe essa possibilidade, que é difusa mas possível, ela pode passar a ter relações sexuais com o seu marido sob a marca do medo e exigir dele que use preservativo. Isso não é incomum, está acontecendo. Por exemplo, na classe média,  hoje em dia, o medo é generalizado: as relações sexuais liberadas, tardiamente para nós nos anos 60, nos anos 50, já estão banidas pelo medo. Isso que você estava dizendo, que hoje tem a geração antes do AIDS/depois do AIDS, é verdade. Eu sou de uma geração que levou décadas para chegar à liberação sexual. Quando nós mal tínhamos chegado na liberação sexual, vem essa desgraça para cortar o processo. Eu realmente me sinto muito revoltado, eu pessoalmente me sinto indignado, tenho raiva desse vírus por causa disso, porque a nossa geração toda viveu a repressão sexual de uma forma muito violenta. Eu fui educado pelo demônio, não foi Deus. Eu tinha medo do inferno, medo do pecado, sentimento de culpa em relação ao sexo, era carregado de culpabilidade, de desgraça. Me lembro de que, discutindo com meu professor, por sinal muito aberto, o último que eu tive, frei Mateus, eu perguntava coisas que até o irritavam: “Mas beijo é pecado?”. Hoje se diz: “Mas beijo transmite AIDS?”. Então tinha aquilo que não era possível para o namorado, mas era possível para o noivo, e certas coisas só para depois de casado, enfim, era uma desgraça essa geração nossa de quem tem 40, 50 anos. Então nós falávamos, eu pelo menos dizia assim: “Meu filho hoje é liberado, porque eu nunca ensinei, nunca apresentei o demônio para ele, ele não conhece o demônio e, de repente, eu vejo meu filho, com 22 anos, apavorado com a AIDS, abrindo de novo o caminho para essa neura; junto com a neura vem a culpabilidade, vem o diabo! O diabo sempre arranja uma forma de voltar e se meter na história. Essa é uma observação en passant aqui para o nosso debate.

Agora nós, da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS, somos quarenta pessoas, das mais diferentes profissões: tem antropólogo, virologista, infectologista, pediatra, psiquiatra, cientista social, bispo, não é Dom Eugênio Salles, do Rio de Janeiro, é Dom Mauro Morelli, de Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, Nilo Batista, que é jurista, enfim, a gente tenta abordar a AIDS sob os mais diferentes enfoques. E nós nos propomos a fazer basicamente três coisas: 1º) seguir, acompanhar as políticas do governo em termos de saúde, no caso particularmente da AIDS, tudo que o governo fizer de positivo nós aplaudiremos, tudo que fizer de negativo, nós criticamos; 2º) informar e prevenir. Nós realmente estamos convencidos de que o que podemos fazer é prevenir, dado que a cura não está nas nossas mãos; ela é o desafio da ciência moderna. Mas nós podemos trabalhar a informação: jornais, revistas, televisão, produzindo materiais, audiovisuais etc., conferências, seminários, para trabalhar aquilo que você pode trabalhar, a consciência das pessoas; 3º) construir um banco de dados, aberto à sociedade, sobre AIDS, com uma dimensão nacional e internacional. Quando este banco estiver operando totalmente, nós vamos ter condições de estar via satélite em contato com os bancos de dados sobre AIDS nos EUA, na França, na Inglaterra, colocando essa informação, aqui, ao alcance de quem lida com o problema.

Existe um problema que não assumimos, por falta de condições financeiras: o da assistência material. O que é dramático. Porque, muitas vezes, o aidético se vê morrendo, e isolado, sem recursos. Mas existem grupos que estão fazendo isso, como o GAPA. Hoje eu estive com Dom Evaristo Arns, e ele disse que reservou o melhor espaço, o mais bonito espaço que a Arquidiocese de São Paulo tem, para construir um hospital, enfim, algo para atender às vítimas da AIDS com todo amor, com todo carinho, e já pensando exatamente nessa realidade epidêmica, se preparando para o futuro. Nesse sentido acho que Dom Evaristo dá – como diríamos nós que somos brasileiros – um show de visão e de solidariedade, de sensibilidade humana, que é incrível. Mas essa postura tem que ser promovida para que frutifique, porque ela é a luta da saúde. Porque não quero isolar a questão da AIDS da luta da saúde, do direito à saúde. E acho que se ela é mais dramática, ela não é só, ela não pode ser isolada. Porque quando você, por exemplo, luta para o sangue não seja contaminado, você está garantindo o direito da saúde à população. E a questão do sangue é um escândalo, é um absurdo a forma como se trata o sangue. Foi feita uma pesquisa no Rio de Janeiro absolutamente incrível, pesquisaram cem mendigos, setenta eram doadores de sangue, para vocês terem uma idéia a que ponto essa coisa chegou.

Pergunta: Queria retomar a parte que você falou do caso daquela moça com o irmão já em estado terminal. Esse medo que a gente vê existir na pessoa a nível de empresa, a gente também vê atitudes das autoridades de saúde que parecem mais permeadas pelo medo do que por qualquer avaliação mais adequada da situação.

E já que uma das coisas que vocês têm como objetivo é estar acompanhando as políticas de saúde do governo, aqui em São Paulo foi feito um convênio com a Febem, e todas as nossas seis mil crianças vão passar pelo teste do HIV. Na verdade, realmente parece muito mais uma decisão de pânico que uma decisão de quem vai fazer alguma coisa, porque muito provavelmente o resultado disso aí vai simplesmente revelar mais um aspecto da incapacidade do nosso sistema de saúde de estar dando conta do problema.

Betinho: Só um comentário. Você veja como a lógica nem sempre é verdadeira. Pela lógica, se você quer proteger uma comunidade, você aplica o teste em todas as comunidades. Mas, estou de acordo contigo, essa lógica pode ser simplesmente uma forma irracional de enfrentar um problema que é muito mais complicado do que simplesmente fazer testes. Inclusive porque sabemos hoje que os testes de AIDS são em vários casos muito relativos, você tem falso negativo, falso positivo, você tem tempos em que se manifestam ou não, existem dúvidas sobre esses tempos. Tenho discutido sobre o problema do teste, e muitos no nosso grupo defendem a teoria de que não é por aí, que não é este o caminho, que o caminho da prevenção não passa por aí. Principalmente quando você tem comunidades que já estão vivendo abjetivamente uma situação de violência institucionalizada, como é o caso das crianças que estão internadas nessas instituições, e os presos.

E refletindo um pouco a partir da minha própria experiência, por exemplo, vivi a seguinte situação objetiva: eu era hemofílico, tinha tomado transfusão de sangue durante minha vida inteira e em 1986 havia uma estatística no Rio de Janeiro, que dizia que 95% dos hemofílicos eram contaminados. Aí falei: “Bom, vou fazer o teste ou não?”. Eu vacilei, eu oscilei durante muito tempo, porque dizia assim: “Bom, eu estou nos 95%, então basta tomar as medidas de proteção à minha esposa, nas minhas relações com ela, que tudo bem, para que eu vou desafiar os 95%?”. E fiquei meses nessa situação até que um dia me bateu na cabeça o seguinte: “Mas, e se eu estiver nos 5%, minha vida vai mudar...”.

O teste tem essa coisa incrível, uma coisa é você pensar que é, outra é você ter o teste dizendo assim: “Positivo”, aí aquela espécie de soco na boca do estômago que você leva, se recompõe, me recompus e tal, aí minha esposa fez o teste, deu negativo, testou, fez dois, três testes, negativo, tudo bem. Aí eu comecei a refletir sobre como é complexa essa coisa no caso da AIDS. Quando dá positivo, se você sabe que é positivo e não toma cuidado, você pira, você dança. Mas se você não dança, se você é capaz de se cercar das condições emocionais e psicológicas para fazer face a esse problema, você racionaliza o seu enfrentamento com a doença, estabelece monitoramento, transfere a responsabilidade de estar se olhando todo o tempo para um médico, faz testes etc. e enfrenta. Porque sempre me perguntavam: “Mas você é positivo ou não?”. Falava assim: “Bom, não fiz o exame”. Uma vez feito o exame, não tem mais isso, você deve decidir: “Assumo publicamente ou assumo diante de mim que eu vou ocultar”. Enfim, tem todas essas complicações, todos esses problemas que vão se tecendo em torno do problema. Agora, no caso específico que você falou, porque isto estou fazendo na minha inteira liberdade, fui eu que decidi; mas quando você pega uma coletividade que está sob a guarda do Estado brasileiro realmente eu tenho milhares de dúvidas, porque estamos longe de ter um Estado que defenda aos interesses do cidadão. Estamos vivendo exatamente um Estado que está oprimindo o cidadão, que não é capaz de respeitar seus direitos. então, se se quer saber se uma população carcerária está contaminada, um cientista poderia dizer assim: “Faça uma pesquisa por amostragem, sigilosa, e você vai saber quantos por cento daquela população está contaminada ou não, sem passar todos pelo teste e pelas consequências do teste”, que ninguém tem condições nessa sociedade, nesse momento, de saber quais vão ser. Inclusive que tipo de “aidário” se vai produzir a partir daí. Então, realmente, esse problemas, que se levanta, é o tipo de problema que a gente tem que reunir teólogos, moralistas, filósofos, juristas, comissão de direitos humanos, sentar e realmente ir a fundo para pensar. E temos que fazer isso já, porque não dá para... quer dizer essa coisa é séria demais para ficar por conta da Funabem.

Pergunta: Tenho uma informação importante para passar aqui. Tenho conhecimento de uma medida judicial que está sendo tomada aqui em São Paulo com relação a esses bancos de sangue que não fazem teste anti-AIDS. Trata-se de um inquérito civil que está na Procuradoria Geral da Justiça para apurar os fatos, a denúncia feita pela revista Veja, há pouco tempo, a respeito desses bancos de sangue. E depois, se comprovados que esses bancos de sangue não fazem realmente o teste, será promovida a competente ação para que eles obrigatoriamente passem a fazer o teste. E, se houver interesse por parte da sua entidade, posso colocar você em contato com o advogado que está tomando essas medidas.

Betinho: Tem interesse sim, porque, no caso do Rio de Janeiro, estamos pensando numa campanha, numa articulação em relação especificamente à questão do sangue. Legislação, inclusive, no Rio de Janeiro, nós já temos, que obriga os bancos de sangue a fazerem testes, a controlarem a qualidade do sangue. Mas, ao lado disso, temos cerca de 70% dos bancos de sangue que não fazem nada, o menor controle e mais uma quantidade, não temos cifras, de bancos de sangue clandestinos. No caso do Rio de Janeiro, creio que no caso de São Paulo também, é bom que se saiba, que uma parte dos bancos de sangue está ligada ao jogo do bicho, ao narcotráfico e a toda forma de marginalidade que existe por aí. Inclusive, na história dos bancos de sangue do Rio, é conhecido um fato de que ali na avenida Rio Branco, no Edifício Central, havia um ponto de jogo do bicho no subterrâneo, e as pessoas iam jogar, não tinham dinheiro, subiam para o banco de sangue, davam um pouquinho de sangue, pegavam o dinheiro e faziam o joguinho embaixo. E, com isso, pode ser, até mais do que dava o próprio jogo. O submundo que está ligado à questão do sangue, a nível nacional e internacional, é algo espetacular. Isso é uma longa história que a AIDS também veio tornar mais uma vez pública. Agora, vocês vejam o seguinte, quem é encarregado no Rio de Janeiro de fazer a fiscalização: o Departamento de Vigilância Sanitária. Eles têm, para 169 bancos de sangue, uma viatura estragada e quatro funcionários, então, de nada adianta a legislação se você não tem estrutura para realizar. Agora, com toda campanha feita, nós inclusive colocamos publicamente que eles precisariam, imediatamente, de vinte viaturas e de cinquenta técnicos, para fazer uma visita, por mês, aos bancos de sangue. E agora estamos nos articulando com o Secretário Estadual de Saúde, Secretário Municipal de Saúde, Sindicatos dos Médicos, associações e moradores, enfim, uma espécie de pool de associações para tentar definir uma estratégia global de ataque do sangue e acreditamos que, por esse caminho, nós vamos conseguir alguma coisa. E, nesse campo, nós achamos o seguinte: que é absolutamente fundamental comprometer a classe médica com o controle do sangue. Meu princípio é muito elementar: um médico prescreve sangue, o médico brasileiro hoje deve saber que o sangue pode matar o paciente, portanto é responsabilidade dele, ou co-responsabilidade, averiguar se o sangue está testado ou não. Se nós conseguíssemos, da classe médica, adesão a esse princípio, a essa política, acho que poderíamos resolver o problema do sangue em pouquíssimo tempo, porque é fácil verificar se está controlado ou não. Agora, para um leigo, para uma família em desespero, para uma pessoa acidentada que entra numa emergência não é, mas para um médico é.

Pergunta: Eu, até hoje, não consegui ter medo da AIDS, eu parto do ponto de vista de que todos nós somos mortais. Agora vou passar para você alguma coisa que eu ouço das pessoas. Hoje foi dito, aqui, que a AIDS é uma doença revolucionária, que ela veio provar que a morte existe, que ela iguala os homens porque atinge a todos, poderosos ou não, que uns reclamam contra a necessidade do controle sexual, a necessidade de escolher seus parceiros, outros, que a AIDS veio barrar, veio controlar a atitude do homem, então gostaria de saber o que você acha – a AIDS pode ser até positiva, o vírus da AIDS? Ela veio chamar uma responsabilidade maior do homem? Ela veio conscientizar todos nós que existe Deus e que o homem não pode controlar a morte?

Betinho: Bom, eu sou contra o vírus da AIDS, quero fazer uma declaração de voto radicalmente contra, quer dizer, a AIDS é uma enfermidade terrível, tem que ser combatida de todas as formas. As pessoas que morrem de AIDS muitas vezes morrem em situações dramáticas, absolutamente dramáticas, então não gostaria de ser interpretado como dizendo: “Bom, Deus salve a AIDS!”. Deus, acabe com a AIDS! Eu diria assim: o diabo inventou essa coisa e temos que desinventar rapidamente. O que eu tento dizer, mostrar, é que todos esses desafios podem ser enfrentados positivamente, podem ser transformados em momentos de superação. E um dos momentos de superação, que eu acho que a AIDS pode produzir, é uma mudança de atitude, frente à vida e à morte. Acho que é um desafio que está colocado. Acho que toda pessoa que não admite a morte, vive com medo dela. Aliás, nem vive porque passa a viver, passa a ter medo de uma forma que torna a vida insuportável. E outra dimensão que talvez a gente pudesse colocar como desafio, como um problema a ser enfrentado, é que eu acho que a AIDS recoloca a pesquisa científica num caminho absolutamente fundamental, que é o do sistema imunitário. Ela está obrigando a ciência moderna a percorrer um caminho revolucionário na visão da própria saúde. Dezenas ou centenas de doenças que hoje são tratadas como doenças, no futuro vão ser tratadas como resultado da relação entre o homem e o meio ambiente. E o que faz a relação do homem com o meio ambiente é o sistema imunitário. Agora ela, em si mesma, é absolutamente terrível, negativa, ela é uma doença, é um vírus que tem que ser eliminado. Não gostaria de passar por alguém que dissesse assim ou como um certo cardeal do Rio de Janeiro, que a AIDS é um castigo de Deus, para punir o pecado da nossa sociedade. Quer dizer, a AIDS não é pecado, não é nada mais do que um vírus, o resto é o que nós fizermos dele. E aí é que eu vejo a questão de como nós seremos ou não capazes de enfrentar esses desafios e superá-los.

Pergunta: Uma questão de esclarecimento em relação à campanha publicitária que o governo fez durante um tempo. Eu moro na periferia, São Miguel Paulista, e de repente a gente percebeu que as crianças não queriam mais andar sem camisa, todos queriam sempre andar com a camisinha, preocupadas com a AIDS. Como você viu, essa campanha publicitária do governo... E por outro lado, como preocupação da esquerda, um pouco mais radical, ou nossa também, está um grave problema, o problema da fome, miséria, desemprego, os vários problemas sociais. E o problema da AIDS talvez seja da burguesia, até pintou isso. E eu também vi isso com grande preocupação. Até o dia em que, de repente, eu estava percebendo que alguém com um peso muito grande, com uma visão muito longe, falava que se não cuidarmos, daqui a dez anos, possivelmente, a AIDS matará tanto quanto a fome. Que caminhos você vê, de esclarecimento, de consciência, que a gente poderia contribuir em relação à classe popular, em relação às pessoas com quem a gente trabalha?

Betinho: Em relação à campanha do governo, eu uma vez disse que era uma campanha feita num horário em que todo mundo estava  dormindo ou pegando AIDS. Porque começa a passar lá pelas onze horas da noite... Enfim, em matéria de propaganda, em matéria de comunicação, de informação, acho que ela foi tão fraca que morreu por si mesma, ela desapareceu e ninguém percebeu. Nesse sentido é até curioso como as campanhas da Globo, da Bandeirantes, da Manchete e das outras, e os trabalhos dos jornais foram dezenas de vezes mais efetivos que a campanha do governo. E aí, por exemplo, tenho um depoimento em relação à campanha da Globo. A Globo ficou profundamente sensibilizada com o problema da AIDS, a Globo perdeu vários empregados. Então, não foi preciso muita força para sensibilizar os meios de comunicação de massa de que isso era uma questão grave. Quem não entendeu isso foi só o Ministério da Saúde.

E quando as campanhas foram apresentadas houve muita reação, de diferentes lados, em relação à importância e a gravidade do problema da AIDS. Vieram de diferentes lados. por exemplo, muitos grupos homossexuais condenavam campanhas em relação à AIDS porque achavam que era uma discriminação, que a campanha estava sendo usada para discriminar os homossexuais. Alguns grupos de prostitutas, por exemplo, reagiram e disseram: “Mais outra repressão!”. Os drogados então, que vivem oprimidos, mais ainda. Então os chamados grupos de risco, ou os grupos que estavam mais expostos à contaminação, reagiram. Setores da Igreja também reagiram, porque disseram: vão propor agora o uso de métodos de controle da natalidade, que nós proibimos, que não podemos assumir. Eu uma vez, inclusive, tive uma conversa com alguns bispos da CNBB, e eu dizia: “Olha, acho que temos que distinguir a questão da reprodução da questão de defesa da vida. Se uma pessoa põe uma camisinha para não procriar é uma coisa; mas se põe para defender a vida dessa parceira, é completamente diferente”. Então houve essa reação por parte da Igreja, que também foi um problema. E houve uma profunda incapacidade, por parte do governo, de perceber que o problema era sério. Dentre essas reações, também, algumas vezes a gente falava sobre a AIDS e alguém levantava e dizia: “É, mas a fome está matando mais, a esquistossomose está matando mais, a doença de Chagas está... acidente de carro está matando mais” etc. Eu falei: “Bom, eu realmente vim aqui para falar de AIDS, não para fazer uma competição sobre o que é pior”. Isso é uma competição que não me agrada. E não acho também que a prevenção à AIDS seja exclusiva, porque acho que todas as ações relacionadas à saúde da população têm de ser articuladas, integradas. Não vou dizer que primeiro cuido de uma coisa e depois de outra. Agora existe uma diferença qualitativa entre doença de Chagas e AIDS. Uma pessoa pode ter doença de Chagas e viver oitenta anos. Mas uma pessoa com AIDS vive, uma vez que se manifesta, em média, dois anos. A doença de Chagas não é epidêmica, é endêmica. E se o governo brasileiro, ou a sociedade brasileira, resolvesse eliminá-la, eliminaria, mas a AIDS é outra coisa. Então não dá para comparar qualitativamente. E, finalmente, outra questão grave é que uma epidemia se mede pela velocidade da sua propagação, é o célebre tabuleiro, aquele cara que começou com um grão de trigo e levou o rei à falência. Se você começa com três mil dobrando  a cada dez meses, em seis anos você chagou à casa dos milhões. Daí que hoje, por exemplo, sou daquelas pessoas que pertence ao que chamo o Exército de Brancaleone, as causas, as grandes causas, principalmente as perdidas, que nós temos, eu abraço todas. Então uma parte é para a reforma agrária, outra parte é para isso, outra parte é para aquilo. Mas eu vi que realmente, em defesa de muitas coisas, inclusive da própria sobrevivência de uma parte importante da nossa população, você tem que enfrentar a questão da AIDS. E aproveitar esse enfrentamento para articular isso em todas as dimensões. Por isso que eu digo que a AIDS é uma ponta de iceberg que revela a falência do nosso sistema de saúde pública. Então, é óbvio que hoje morram mais crianças de fome que pessoas morrem de AIDS, é óbvio,  mas acho que nós temos que prevenir para que a AIDS não mate milhões no futuro e impedir que as crianças morram de fome no presente, acho que essas duas coisas são perfeitamente compatíveis.

Pergunta: Queria dizer o seguinte: acho que estamos no renascimento de uma nova fase do humanismo. Betinho, falando da AIDS, lembrou a questão da morte, da religião. Do ponto de vista das igrejas, as grandes epidemias sempre foram os grandes momentos de afirmação do humanismo. Mas poucos têm uma visão mais construtiva sobre a questão da morte. A palavra da Igreja neste ponto é fundamental, pois ela não pode ficar omissa.

Betinho: Bom, que estas sejam minhas últimas palavras... Eu confesso que há situações difíceis, esse é um tema extremamente complicado para se elaborar. Eu não gosto muito da palavra mistério porque sempre atrás dela se esconde muita coisa, inclusive o medo. Eu hoje creio que o importante é a vida, a vida é um processo, mas é um processo feito de milhões de sucessões de instantes que você vive. E ao mesmo tempo que o importante é a vida, o importante também é admitir consciente e tranquilamente que a morte está presente em cada momento da vida. É como se você pegasse sempre uma moeda em que o lado em que você está vendo é a vida e, se você vira, está a morte. Toda vez que você pensa que esta moeda não tem verso e reverso, você está caindo numa armadilha. Portanto, a vida é uma convivência com a morte, nesse sentido. Nós não temos medo só da morte, acho que a gente tem, às vezes, mais medo é da vida.

Uma vez, vivi uma experiência, foi uma experiência de morte aqui em São Paulo; eu estava clandestino e tive uma úlcera supurada, uma hemorragia que não estancava, e fui parar no Hospital das Clínicas. Lá fui operado pelo Dr. Danilo. E tudo me dizia que ia morrer, porque eu era hemofílico, estava com hemorragia, ia ser operado; portanto ia morrer. A convicção da morte era praticamente total. E eu perguntei ao Dr. Danilo: “Qual é a minha chance?”. Ele falou em 95% de chance. Eu li o contrário, 95% de morte, então tinha só 5%. De novo estou sempre repetindo essas chances. Aí eu disse: “Bom, eu estou diante dela, diante dela eu tenho que, como dizia na minha terra, tem que ser homem, né, então vamos ser homem”, e me apagaram e eu acordei, não morri, como vocês todos podem ver. Mas, quando descobri que estava vivo, entrei em pânico, eu tive medo da vida. Que era como se eu voltasse a dizer: “Ih, vou ter que morrer de novo”. E isso porque eu estava vivo. Então, foi uma das experiências mais fortes que eu enfrentei e depois produzi uma série de filosofias para mim mesmo, para meu uso, dizendo assim: “Bom, mas suponhamos que eu tivesse morrido, realmente eu morri ali, acabou, sobrou alguma coisa? Ficou alguma coisa, e o espírito, existe espírito?” E o máximo que eu cheguei naquela ocasião, que é mais ou menos o que sinto hoje, é o seguinte: é possível que algum nível de consciência, que eu não sei qual é, sobreviva ao desaparecimento físico. Essa, para mim, é uma hipótese muito interessante porque, imagine eu com a minha consciência e sem o meu corpo... É uma coisa fascinante. Mas se não for, e é o fim mesmo, é algo espetacular porque aí eu elaborei uma outra visão, que é o seguinte: a morte não existe para mim, porque só pode existir morte para um sujeito; se eu desapareço, deixo de ser sujeito da minha morte. Então, na verdade, a morte só existe para o outro, a morte é algo que existe para o outro. Se meu irmão morre, dentro dessa visão, eu é que sinto a morte dele, eu que vou vivenciar a morte dele, mas ele não existirá para vivenciar sua própria morte. Então, isso também me tranquilizou, quer dizer, as duas hipóteses são altamente tranquilizadoras. Eu cheguei à conclusão de que realmente o que eu temo é o sofrimento, e não a morte. Por exemplo, eu tenho medo de avião, mas não é por causa do avião; é que eu acho que, se cair, machuca, dói, então é o medo do sofrimento, mas não o medo da morte. Eu consegui chegar até aí, se eu morrer e tiver alguma coisa a mais, eu volto para dizer o quê...

 

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