
A
cooperação estatal e o
princípio da complementaridade
Tarciso Dal Maso Jardim(1)
A CCI, segundo o projeto da CDI, será
instituição de caráter permanente e composta dos seguintes órgãos:
i. Presidência; ii. Câmaras; iii. Procuradoria; iv. Registro e v.
Comitê de Estados Partes. A composição básica seriam de 18 juizes
eleitos por maioria absoluta, pelo Comitê, para um período de nove
anos (sem reeleição, mas com a possibilidade de continuar no cargo
para completar um caso). Nascerá de um tratado e, por isso, terá
competência restrita aos Estados Partes. A questão de vinculação
clássica de Estado Partes aos tratados e sua não vinculação a priori
a terceiros Estados não deve, contudo, ser radicalizada, pois há temas
que convergem também para a participação de terceiros Estados, como a
cooperação estatal. Antes de versar sobre a cooperação é preciso
tecer algumas considerações sobre a relação entre a CCI e as cortes
internas e autoridades nacionais.
As possibilidades de relação entre
jurisdições são duas: inerência ou complementaridade, embora essa
última tenha maior abrangência, como veremos. A jurisdição inerente
seria um regime especial ao crime do genocídio, em que a competência
da CCI seria inerente e automática. Nesse caso a competência da CCI
dependeria única e exclusivamente de o Estado, onde o crime ocorreu ou
onde o presumido culpado foi detido, ser parte do Estatuto da Corte.
Nenhum consentimento adicional seria necessário. O fato de o crime de
genocídio ter essa prerrogativa não se deve somente ao caráter de sua
gravidade, mas também pelo fato de o Art. VI da amplamente ratificada,
e de caráter costumeiro, Convenção Para a Prevenção e Sanção do
Crime de Genocídio prever a criação de corte penal internacional e
colocar essa como alternativa ao julgamento pelas cortes internas. Para
os demais crimes, a natureza da CCI será de complementaridade, o que
significa que a Corte pode estar ligada a uma matéria somente depois de
a jurisdição nacional ter convencionado para isto ou quando dita
jurisdição é incapaz de agir razoavelmente e/ou efetivamente
("unavailable or ineffective"). Esse mecanismo concede, como
é de praxe no direito internacional, a oportunidade de as cortes
internas solucionarem o caso de forma satisfatória. Então, as
autoridades e cortes nacionais terão a responsabilidade primária de
investigar os acusados, mas se o fizerem sem serem imparciais, sem o
devido processo legal, a complementar ou excepcional jurisdição da
corte seria acionada. Alertamos que a noção de complementaridade,
mencionada no preâmbulo do projeto da CDI, não está definida em sua
abrangência, embora sugestione-se que é o princípio que orientará as
relações da CCI e a ordem jurídico-política interna de modo geral.
Outro ponto polêmico reside em quem determinará os requisitos de
admissibilidade (Art. 35 do projeto), em especial a questão de
determinar a ineficácia ou indisponibilidade das instituições
internas. Cremos, sobre esse último ponto, que a interpretação do
Estatuto e dos requisitos de admissibilidade deveriam ficar ao encargo
da Corte.
De qualquer forma, como salienta Jelena
Pejic, o sucesso dos tribunais penais internacionais, que significa
julgar de fato pessoas indiciadas, depende de recursos para prendê-las
fisicamente (a dificuldade é maior em crimes de guerra, pois os
acusados possuem grande poder). E essa tarefa é da comunidade
internacional, o que envolve a cooperação dos Estados. No Tribunal da
Ex-Iugoslávia (ICTFY), por exemplo, não se despreza a competência
nacional, mas avoca-se a faculdade de suspender o iter processual
interno em qualquer momento (consagra a jurisdição concorrente). De um
lado, o regulamento desse tribunal prevê várias formas de assistência
estatal, como medidas preventivas, prevalecendo sobre impedimentos de
direito interno. De outro, não atender aos mandamentos do ICTFY
significa o possível acionamento do Conselho de Segurança. Contudo,
mesmo com essa força institucional, sob o escudo do Conselho de
Segurança, o sucesso do ICTFY é tímido, pois a cooperação estatal
é problemática. Esse dever de cooperação estatal resume-se a dois:
implementar os mandamentos do Tribunal e entregar indiciados ao
Tribunal.
Se a ICTFY possui problemas, esses serão
maiores por uma Corte instalada por um tratado, sem a força do
Conselho, sem o reconhecimento compulsório de sua jurisdição e sem o
dever de cooperação de todos os Estados membros das Nações Unidas.
Se o artigo 22 do projeto da CDI vigorar, teremos a possibilidade de
Estados Partes poderem escolher, com exceção do crime de genocídio,
se acordam com a jurisdição obrigatória da Corte (mediante
declaração facultativa), podendo ser para os demais crimes, para
algumas condutas ou ser limitada a certo período de tempo. Ademais, as
dificuldades aumentam quando o Art. 21 do referido projeto exige esse
requisito, se for o caso, tanto para o Estado de custódia, como para o
Estado onde o ato ou a omissão realizou-se.
Diante o quadro traçado, a eficácia da
CCI depende dos meios de efetivar a cooperação dos Estados Partes e de
terceiros Estados (potenciais Estados de refúgio de criminosos
internacionais) e da definição do princípio da complementaridade.
Nossa convicção direciona-se a orientar a matéria segundo a
considerável experiência internacional em esgotamento dos recursos
internos, concedendo à Corte a faculdade de avaliar a situação das
instituições jurídicas internas. Evidentemente, os crimes envolvidos
significam, de modo majoritário, a participação de autoridades e
dirigentes civis ou militares, o que nos leva a pensar em alternativas
que sejam um misto de ingerência coletiva e sabedoria convencional. Em
primeiro lugar, envidar todos os esforços possíveis para que a
justiça seja feita no plano interno. Em segundo, rejeitar a
flexibilidade exagerada da declaração facultativa. Por fim, buscar
associações com as Nações Unidas e a sociedade civil. Sobre esse
último aspecto, qual seria o papel do Conselho de Segurança? Como
evitar o privilégio dos membros permanentes do Conselho? Como evitar a
manutenção do status quo e a conseqüente seletividade de esforços? |