
Imunidades
de jurisdição e
foro por prerrogativa de função
Oscar
Vilhena Vieira*
Texto
baseado nas notas taquigráficas de conferência proferida
no Seminário Internacional “O Tribunal Penal
Internacional e a Constituição Brasileira”, promovido
pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça
Federal, em 30 de setembro de 1999, no auditório do
Superior Tribunal de Justiça, em Brasília-DF.
1
INTRODUÇÃO
A
adoção do Estatuto da Corte Penal Internacional de Roma,
aprovado em 17 de julho de 1998, pela Conferência de
Plenipotenciários das Nações Unidas, constitui mais um
importante passo rumo à consolidação do sistema
internacional de direitos humanos e uma conseqüente
relativização do conceito tradicional de soberania. O
instrumental de proteção dos direitos humanos
arquitetado na esfera das Nações Unidas carecia, até a
Corte de Roma, de uma instância judicial que pudesse lhe
dar eficácia. A história da Comissão de Direitos
Humanos e dos diversos Comitês derivados dos tratados de
direitos humanos no âmbito da ONU é frustrante. O
sistema tem funcionado muito mais como representação da
vontade dos Estados, do que como instrumento de fiscalização
da implementação dos direitos humanos. Dessa forma, a
decisão de se criar uma corte internacional voltada a
punir os que violem sistematicamente os direitos humanos
deve ser saudada pelos cidadão do mundo.
O
objetivo dessa exposição é verificar se a adesão do
Brasil a esse tratado internacional, que não admite
reservas (art. 120), é compatível com a nossa ordem
constitucional. Embora a Constituição de 1988 propugne
pela criação de um tribunal internacional de direitos
humanos, por força do art. 7º do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), há
diversos outros dispositivos do texto que, lidos
isoladamente, contrapõem-se a algumas das prerrogativas
conferidas à Corte de Roma. Pretendo, portanto, analisar
essas tensões, buscando, por intermédio de um esforço
interpretativo, harmonizar as demandas do Estatuto aos
imperativos da Constituição.
Darei
atenção a duas questões que, ao meu ver, apresentam-se
como mais problemáticas. A primeira refere-se a própria
essência da Corte de Roma. Trata-se de uma jurisdição
internacional penal, que elide qualquer possibilidade de
invocação de imunidade de jurisdição por parte daquele
que cometer crimes contra a humanidade, genocídio, crimes
de guerra ou de agressão. Em que medida essa nova jurisdição
pode conviver com o pressuposto da soberania dos Estados,
assegurada pela própria carta da ONU, art. 2º,
e fundamento de nossa ordem constitucional, conforme o
art. 1º, I, do texto constitucional? Outra
questão, mais específica, também se apresenta como
problema para que o Brasil venha a se submeter à jurisdição
da Corte Penal Internacional. Como se sabe, o art. 77, b,
do Tratado de Roma prevê a possibilidade de prisão perpétua,
punição expressamente proibida pelo art. 5º
, XLVII, a.
Também ocorre uma tensão entre o instituto da entrega,
previsto no art. 89 do Estatuto, e o art. 5º,
LI, da Constituição, que proíbe a extradição de
brasileiros. Essa questão, porém, será deixada de lado
nesta apresentação.
O
que torna a tensão entre o Tratado e a Constituição
ainda mais dramática é o fato de o direito de não ser
punido com a pena de prisão perpétua constituir cláusula
super-constitucional, ou pétrea, por força do art. 60,
§ 4º, IV, da Constituição Federal. Se esse
direito não pode ser abolido sequer por uma emenda
constitucional, o que dizer por um decreto legislativo,
que autorize a adesão do Brasil a um tratado
internacional. O mesmo se diga em relação a delegação
de soberania. Embora a soberania não constitua cláusula
super-constitucional explícita, é evidente que a
soberania popular não pode ser delegada pelo legislador.
Ao
meu ver, no entanto, a Constituição jamais deve ser
interpretada de forma mecânica. Sendo a Constituição um
instrumento que serve como elo de ligação entre o mundo
da ética-política com o mundo do direito, a sua adequada
compreensão não pode dispensar um olhar mais abrangente
sobre o significado de seus dispositivos. Se é correto
afirmar que a Constituição brasileira e o Tratado de
Roma têm uma finalidade comum, que é a proteção da
dignidade humana, embora discordem em relação a alguns
dos meios para atingir seus objetivos, é nossa obrigação
como intérpretes do Direito buscar verificar em que
medida esses dois instrumentos podem ser harmonizados.
2
REGRAS E PRINCÍPIOS
Como a
eventual adesão do Brasil ao Tratado que estabelece a
Corte Penal Internacional desperta uma tensão entre
diversas regras e princípios reconhecidos pela Constituição
de 1988, é fundamental que se tenha maior clareza sobre
como lidar com conflitos e colisões de normas dentro da
Constituição. Daí se iniciar com um tópico sobre
regras e princípios.
A Constituição,
como o Direito em geral, é composta por regras e princípios.
As regras, normalmente, são diretivas, que determinm a
conduta dos sujeitos, deixando pouquíssimo espaço de
discricionariedade àquele que deve aplicar a norma. As
regras são normas dotadas de um enunciado com grande
concretude. Se uma pessoa cometeu um homicídio e esse
fato é indisputável, ela deve ser punida em conformidade
com o disposto no art. 121 de nosso Código Penal.
Evidente que há circunstâncias excepcionais, previstas
pela própria regra, que podem bloquear a punição. Mesmo
assim a diretiva e as exceções são previstas na própria
regra, não reduzindo a sua concretude. Nesse caso, o
trabalho do intérprete será bastante reduzido. As regras
são ainda aplicadas num tudo ou nada. Quando se encontram
em conflito umas com as outras, devem ser integralmente
aplicadas ou simplesmente desaplicadas, em conformidade
com alguma outra regra voltada a solução de conflitos,
como: regra posterior revoga regra anterior; regra
superior prevalece sobre inferior; regra específica sobre
a mais genérica. Portanto, se uma for aplicável, isso
significa que a outra ou é inválida ou não se aplica àquele
caso concreto.
Os princípios,
por sua vez, têm um conteúdo mais aberto e, geralmente,
uma carga de abstração maior que as regras. Portanto,
cabe ao intérprete trabalhar para um adequado
preenchimento do conteúdo semanticamente aberto dessas
normas. No entanto, não é apenas o caráter morfológico
que distingue regras e princípios. Os princípios
constitucionais são aqueles que estabelecem o código ético,
a referência de justiça de uma Constituição. Ao
incorporar idéias como igualdade, liberdade, dignidade
humana, democracia etc., a Constituição traz para dentro
de si princípios de justiça de difícil determinação.
O fato de terem se tornado Direito positivo não elimina o
conteúdo ético desses dispositivos. Mais do que isso,
para a sua determinabilidade, não basta uma mera
compreensão técnica do Direito. Diferentemente de termos
que vêm sendo lapidados por séculos pela ciência jurídica,
os princípios de justiça de uma constituição são
marcados por séculos de disputas a respeito do seu
sentido. A sua positivação, ao invés de por fim a um
conflito em relação a esses valores, instaura esse
conflito no cerne do Direito, especificamente na tarefa de
interpretação e aplicação do Direito.
Do
ponto de vista jurídico, o que significa falarmos da
dignidade humana? Não é claro. Temos, assim, de buscar o
conteúdo dessa expressão fora do Direito, seja na
filosofia política, na teoria moral, no consenso político
da realidade, ou em alguma forma de argumentação
racional. O fato é que a Constituição criou
dispositivos abertos à interpretação e à argumentação
e, para que possamos aplicá-lo, temos de dar um passo além
da própria Constituição.
Outra
diferença em relação aos princípios é que quando
estes entram em conflito com outras normas, sejam elas
princípios ou regras, não buscam a simples exclusão da
pretensão normativa dos demais dispositivos. Quando
ocorre a colisão entre dois princípios, ambos continuam
tendo validade e buscando determinar a conduta daquele que
estiver obrigado pela norma. Ao invés de um excluir o
outro, ambos devem harmonizar-se, ainda que, em cada situação,
um princípio possa ganhar mais peso que os demais. Da
mesma maneira, quanto uma regra entra em conflito com um
princípio, temos de buscar outra forma de solucionar este
conflito, que não o modelo tradicional para a solução
de conflitos entre regras acima exposto. A aplicação de
uma regra a um caso concreto jamais pode desprezar a também
aplicação de um princípio pertinente, pois um dos
objetivos dos princípios é exatamente permear o conteúdo
das regras e orientar a sua aplicação.
Dito isso,
vejamos como enfrentar e buscar superar as tensões
referentes à imunidade de jurisdição e ao princípio da
soberania e a questão da prisão perpétua.
3
IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO E SOBERANIA
A
Constituição estabelece, no caput
do seu art. 1º, que o Brasil é um "Estado democrático
de Direito", que tem por fundamento, entre outros, o
princípio da "soberania" e da "dignidade
humana". Creio que o ordenamento jurídico dos
Estados democráticos de Direito, fundados na dignidade
humana, devam ter necessariamente repúdio a todos os
crimes que encontram-se sob a jurisdição da Corte de
Roma. Portanto, esses princípios levam-me a achar que o
que está estabelecido no Estatuto deve, em princípio,
ser incorporado ao nosso sistema jurídico. Mais do que
isso, há uma determinação expressa no sentido de que o
Brasil propugne pela criação de um tribunal
internacional de direitos humanos (art. 70 do ADCT). O
princípio da soberania, no entanto, poderia apresentar
alguns problemas para a adesão do Brasil a esse tratado,
como se verá a seguir.
A
imunidade de jurisdição, reconhecida pelo Direito
Internacional Público, é aquela voltada à proteção da
soberania dos Estados e de seus representantes, sem a qual
não há lugar para as relações diplomáticas. A idéia
original de absoluta imunidade de jurisdição deriva de
um conceito hobbesiano-maquiavélico, ex
parte principe, de soberania. O princípio da
soberania vem, no entanto, passando por um processo, se não
de erosão, pelo menos de transformação. Os direitos
humanos, nos últimos 50 anos, constituem um dos elementos
que vêm pressionando o conceito tradicional de soberania.
Isso ocorre na medida em que se estabelece uma série de
limitações ao poder dos Estados, que se vêem obrigados
a prestar contas de suas relações com os seus cidadãos
a organismos internacionais.
O
sistema internacional de direitos humanos, somado ao atual
estágio de desenvolvimento das democracias
constitucionais, abre espaço para uma perspectiva mais
rousseau-kantiano de soberania, ex
parte popoli. A soberania, dessa perspectiva ética,
passa a ter uma razão fundamental, que é a proteção de
série de direitos das pessoas sob sua jurisdição. Aliás,
como apregoam os contratualistas. Ao Estado só é legítimo
o exercício do poder, enquanto este exercício estiver
voltado à proteção dos direitos. À medida que o Estado
deixa de realizar as tarefas para as quais foi constituído,
deixa também de ser protegido pelas prerrogativas da
soberania.
Na esfera
doméstica, a prevalência da soberania no sentido
rousseau-kantiano sobre a soberania de inspiração
maquiavel-hobbesiana, não causa surpresa. A derrubada de
um regime autoritário, ou mesmo a fragmentação de um
Estado, em nome da autodeterminação dos povos, são
reconhecidamente atos legítimos do povo, contra
governantes tirânicos. Na esfera internacional, no
entanto, por mais que tenhamos progredido nas últimas décadas,
a política e o Direito Internacional continuam a ser
vistos como esferas predominantemente estatais.
O Estatuto
da Corte Penal Internacional de Roma vem, assim,
introduzir mais pressão sobre o conceito tradicional de
soberania. Ao estabelecer uma jurisdição internacional
permanente para julgar os crimes contra a humanidade, os
crimes de guerra e o genocídio, a esfera de ação dos
Estados e de suas autoridades fica ainda mais regulada
pelo Direito Internacional Público. Soma-se, dessa forma,
uma esfera penal/individual, à regulamentação
decorrente dos demais tratados de direitos humanos.
No que se
refere particularmente à imunidade de jurisdição, o
Estatuto de Roma impõe um avanço muito grande.
Destaque-se, em primeiro lugar, que, no caso da Corte de
Roma, a imunidade de jurisdição também não se
apresenta de forma clássica, uma vez que não temos um
Estado e suas autoridades sendo julgados por outro Estado,
à revelia de sua vontade, mas sim autoridades de um
Estado sendo julgadas por um organismo internacional, ao
qual se submeteram voluntariamente os Estados.
Para
ilustrar a questão desse conceito mais kantiano de
soberania aqui defendido, buscarei trazer os principais
argumentos levados a cabo pelos magistrados da Corte
Judiciária da Câmara dos Lordes do Reino Unidos, no caso
Pinochet, ao discutirem a questão da imunidade de jurisdição.
O
fato de Pinochet ser mantido sob custódia em território
inglês, aguardando a decisão da procedência ou não do
pedido de extradição formulado pela Justiça espanhola,
pôs em debate o alcance da imunidade diplomática em
contraposição à prática de violações sistemáticas
dos direitos humanos. Tratava-se
de verificar se Pinochet tinha ou não direito a gozar do
instituto jurídico da imunidade de jurisdição, na forma
diplomática, conforme anunciou o Lorde Slynn of Hadley,
na abertura da primeira decisão, em 25 de novembro de
1998: The sole
question is whether he is entitled to immunity as a former
Head of State from arrest and extradition proceedings in
the United Kingdom in respect of acts alleged to have been
committed whilst he was Head of State.
No
caso em questão, a legislação britânica, decorrente de
uma série de tratados diplomáticos firmados no decorrer
do tempo, parece não deixar dúvida de que chefes de
Estado e ex-chefes de Estado gozam da referida imunidade
quando em solo britânico. Mesmo assim o tribunal resolveu
conhecer do pedido de extradição formulado pelo governo
espanhol. Conforme ficou demonstrado pelo voto da maioria
dos magistrados, a questão sobre a imunidade “proteger
ou não o ex-ditador”, não era tão simples como
poderia sugerir uma rápida leitura do texto legal. O
silogismo: a lei garante imunidade aos ex-chefes de Estado
– Pinochet é um ex-chefe de Estado; logo, deverá ter
sua imunidade garantida – foi posto à prova, no que se
refere a sua premissa.
Para
os votos vencedores, antes de se declarar a imunidade do
ex-ditador, era necessário verificar se os atos de violação
dos direitos humanos de responsabilidade do general, como
amplamente demonstrado pelo conjunto probatório, eram
compatíveis com a função de chefe de Estado ou não.
Anteciparam-se a eventuais críticas, questionando-se se
seria uma atribuição de um tribunal estrangeiro
determinar se o comportamento A ou B de um governante era
ou não digno de um chefe de Estado. Concluíram que isso
estaria fora de sua alçada legal e portanto seria uma
interferência na soberania do Estado estrangeiro. Mais do
que isso, seria muito arriscado para qualquer tribunal se
arvorar em guardião último do que devem ou não fazer os
chefes de Estado.
Antes
porém de dar o caso por encerrado, lembraram que se não
há um estabelecimento preciso do que constitui a função
de chefe de Estado, há, pelo menos, restrições sobre o
que não é admitido ao Estado, no que se refere a sua
relação com os seus nacionais. Se um Estado não pode
torturar ou liqüidar arbitrariamente os seus inimigos e
se isto constitui um crime internacional, evidente que ao
cometer atos que constituíram graves violações de
direitos humanos, o General Augusto Pinochet estava
violando frontalmente o Direito Internacional. Nesse
sentido, os atos contrários a lei internacional não
podem ser considerados atos do Estado chileno, mas sim das
pessoas que se encontravam no exercício do poder. Dessa
forma, aquela imunidade que deveria salvaguardar as
pessoas, para não colocar em risco a soberania nacional,
perde totalmente o seu sentido. Não pode o Direito
Internacional ser utilizado como escusa para sua própria
implementação. Em outros termos, não podemos invocar os
tratados diplomáticos sobre imunidade para não aplicar
os tratados internacionais de direitos humanos.
De
acordo com o tribunal, ao praticarem atos de violação
sistemática de direitos humanos, como os praticados pelo
ex-ditador e seu asseclas, estes se despiram da condição
de agentes de Estado e agiram na condição de delinqüentes
comuns, pois par o Direito Internacional a prática de
violação de direitos humanos não é compatível com a
posição de agente de Estado, quanto mais de chefe de
Estado. Dessa forma a imunidade prevista na lei inglesa não
deveria beneficiar o ex-ditador.
Como
dito, o impacto dessa decisão foi enorme, especialmente
por concluir pela necessidade de se estabelecer parâmetros
éticos legais para o exercício da função de chefia de
Estado. O resultado do julgamento foi mais surpreendente
pois articulado a partir de uma densa e sólida construção
jurisprudencial e não de uma simples argumentação jurídica
voltada a justificar interesses políticos subalternos.
Caso os demais tribunais do mundo tenham a intenção de
levar a sério o complexo instrumental de direitos humanos
posto a sua disposição, nas últimas décadas,
dificilmente conseguirão desprezar a lógica que imperou
na primeira decisão da Câmara dos Lordes.
O Estatuto
de Roma vem reforçar essa lógica que dominou a argumentação
dos magistrados no caso Pinochet, ou seja, no que diz
respeito à sistemática violação de direitos humanos, o
conceito tradicional de soberania deve ceder espaço, como
esfera de proteção de atos arbitrários dos governantes.
Se
aceitarmos que o princípio da soberania deve
harmonizar-se ao da dignidade humana, encontrando-se por
esse limitado, não se poderá admitir qualquer dúvida em
relação à necessidade de se compreender a soberania
brasileira como um instrumento de realização da
dignidade humana. Aliás, qualquer constituição democrática,
que respeite os direitos humanos, estará obrigada a
organizar a soberania do Estado de forma instrumental.
Mais
que isso, do ponto de vista normativo, temos muita clareza
de que a Constituição brasileira dirige o político
brasileiro, seja o Executivo ou o Legislativo, para a criação
de um Tribunal Internacional, como o de Roma. O art. 7º
do ADCT não é uma norma meramente programática. Não
está na Constituição à toa; trata-se de uma diretiva
aos nossos diplomatas e legisladores.
Analisadas
essas premissas, não pode restar dúvida da
compatibilidade do nosso ordenamento constitucional e a
intenção de se estabelecer uma Corte Internacional
voltada a coibir atos tão bárbaros como o genocídio, os
crimes contra a humanidade, os crimes de guerra e agressão.
Passemos então para a questão relativa à prisão perpétua.
4
PRISÃO PERPÉTUA
Conforme
já mencionado, o art. 77, b,
do Estatuto de Roma, estabelece a possibilidade de (...) reclusão
perpétua quando o justifique a extrema gravidade do crime
e as circunstância pessoais do condenado, o que
colide com o disposto no art. 5º, LXVII, b,
da Constituição Federal, segundo o qual (...) não
haverá penas (...) de
caráter perpétuo. Como também já dito, os direitos
e garantias fundamentais constituem parte do cerne super-rígido
da Constituição brasileira, ou seja, não podem ser
abolidos sequer por força de emenda à Constituição,
quanto mais por ato infraconstitucionais, como o que
autoriza o Executivo a assumir compromissos
internacionais. Visto nesse plano, a previsão da pena de
prisão perpétua no Estatuto simplesmente inviabilizaria
a adesão do Brasil a este tratado; lembrando sempre da
vedação prevista pelo Estatuto à possibilidade de
reservas. Adotar essa interpretação mecânica da
Constituição, no entanto, não me parece adequado, pois
afastaria a possibilidade de se ampliar a esfera de proteção
da dignidade dos brasileiros, por intermédio de mais um
mecanismo de direitos humanos, que é a Corte Penal
Internacional.
Antes de
avançar os argumentos sobre o sentido das cláusulas
superconstitucionais, é necessário destacar que o
Supremo Tribunal Federal não tem tido nenhum problema em
autorizar a extradição para países onde há a pena de
prisão perpétua, mesmo quando o réu concretamente corre
o risco de ser encarcerado perpetuamente. Diga-se, aliás,
que em mais de uma ocasião o Supremo Tribunal Federal
autorizou a extradição para Estados que admitem a pena
de morte, com a condição de que houvesse a comutação
desta pena pela de prisão perpétua. Isso se justifica
pelo fato de que a Lei n. 6.815/80, que regula a extradição
no Brasil, por força do seu art. 91, não restringe a
extradição em função da prisão perpétua. Há, assim,
uma duplicidade no ordenamento jurídico brasileiro:
domesticamente não se admite, entre outras, a pena de
prisão perpétua, mas, para efeitos de extradição, essa
pena não constitui uma restrição. Nesse passo a previsão
da prisão perpétua pela jurisdição da Corte de Roma não
constituiria nenhum obstáculo para o ordenamento jurídico
brasileiro, em termos de adesão.
A
seguinte objeção poderia ser erguida contra esse
argumento: o referido art. 91 da lei que regula a extradição
não é compatível com o art. 5º, XLVII, b,
da Constituição de 1988, e que, portanto, as decisões
do Supremo que aplicam a lei são também
inconstitucionais. A essa primeira objeção poder-se-ia
argumentar que a Constituição, ao proibir determinadas
penas, não pretendeu estender esses limites para os casos
de extradição. De fato, quando a Constituição cuida da
extradição, estabelecendo regras e limitações para a
sua concessão, não inclui entre essas limitações
aquelas estampadas no art. 5º , XLVII.
Caso
essa argumentação preliminar não satisfaça a todos, é
possível, ao meu ver, buscar harmonizar os imperativos da
Constituição às exigências da Corte, de forma mais
substantiva. Ao estabelecer um rol de princípios e
direitos que não podem ser abolidos sequer por emenda
constitucional, o objetivo do constituinte foi posicionar
esses direitos e princípios acima da possibilidade de
deliberação do sistema político. O reconhecimento de cláusulas
intangíveis constitui, sem sobra de dúvida, um
instrumento antimajoritário, porém justificável
democraticamente se os dispositivos entrincheirados
estiverem voltados à própria manutenção da democracia
e a preservação da dignidade humana, razão de ser de
nosso sistema constitucional (Vieira: 1999). Ao vedar a
possibilidade de prisão perpétua, entre outras penas
como a de morte e as cruéis, o objetivo do constituinte
foi restringir a ação do Estado, no exercício do seu
poder coercitivo. Se o fundamento do poder do Estado que
decorre da Constituição é a dignidade humana, a sua
violação não pode ser um instrumento de ação do
Estado. É evidente que mesmo as penas admitidas pela
Constituição podem ser consideradas uma infringência à
dignidade human, porém são infringências autorizadas.
Partindo-se do princípio que os direitos não são
absolutos, mas que podem ser limitados em função da
realização dos direitos dos outros, qualquer ordem jurídica
é obrigada a aceitar sanções que se contrapõem à
plena realização da dignidade de cada um. Ao autorizar
uma pena de reclusão, a Constituição está permitindo
que se infrinja o direito à liberdade, que é parte
nuclear do princípio da dignidade humana. Essa limitação,
no entanto, é legítima, pois faz parte da própria gramática
dos direitos, que só podem ter a pretensão de mútua
realização se admitirem restrições, uns em função
dos outros.
Exemplo
do não absolutismo dos direitos é o direito à vida.
Embora reconhecido pelo caput
do art. 5º da Constituição e reforçado pelo
inc. XLVII, a,
que proíbe a pena de morte, a própria Constituição
prevê que a pena capital pode vir a ser aplicada em caso
de guerra declarada. Ou seja, em circunstâncias
excepcionais, a vida deixa de ser um direito absoluto. No
que se refere à prisão perpétua, no entanto, o
constituinte não estabeleceu nenhuma cláusula
excepcionando hipóteses em que a restrição
constitucional pode ser deixada de lado. Ou seja, nosso
ordenamento permite excepcionalmente a retirada da vida
mas não o encarceramento perpétuo. Certamente essa decisão
parece fazer pouco sentido, pois se permite o mal maior
porque não permitir o menor. Porém, a função do intérprete
não é reescrever a Constituição, mas tentar compreendê-la,
para que essa possa ser aplicada adequadamente. Ou seja, o
dispositivo que proíbe a prisão perpétua aparentemente
não pode ser confrontado, pois não há permissão explícita
para a sua limitação. Digo aparentemente, pois a
Constituição não pode ser interpretada aos pedaços.
Ler apenas um de seus artigos e tirar conclusões peremptórias
constitui um erro primário, pois a Constituição é um
todo sistemático, em que as regras não só devem ser
lidas em conjunto com outras regras, mas, principalmente,
à luz dos princípios que informam todo o sistema.
No
caso em tela temos uma regra clara que impede a prisão
perpétua, e que, portanto, nos deveria afastar do
reconhecimento da Corte de Roma. Por outro lado temos o
art. 7º do ADCT, que determina que o Brasil se
engaje na criação de uma Corte como a de Roma. Mais do
que essas duas diretrizes em sentidos contrários, temos
uma série de princípios, como o da dignidade human, o
da soberania e o da prevalência dos direitos humanos, que
devem ser levados em consideração na tomada de uma decisão
como essa. Quando temos um conflito de normas da mesma
hierarquia, sendo todas elas pertinentes ao caso e
produzidas no mesmo momento, como o art. 7º do
ADCT e o art. 5º, XLVII, b,
temos de buscar nesses outros princípios um meio de
solucionar esse conflito.
O
que justifica a proibição da prisão perpétua? Ao meu
ver, o pressuposto de que toda a pessoa humana é capaz,
em função de ser dotada de razão e qualidades éticas,
portanto de dignidade, de se regenerar, constitui a melhor
justificativa para se impedir o encarceramento perpétuo.
Assim, ao estabelecer que a pena tem um fim, o condenado
poderá, durante o tempo de seu cumprimento, “pagar”
pelo mal praticado (caráter retributivo da pena), sem,
porém, perder de vista a sua condição de ser moral,
capaz de arrependimento e conseqüente ressocialização.
Se
a dignidade humana é, portanto, a razão pela qual não
aceitamos a pena de prisão perpétua, o dispositivo que
expressa tal determinação deve ser de alguma maneira
reconciliável com a possibilidade de se aderir ao tratado
de criação da Corte Penal Internacional, uma vez que o
objetivo dessa Corte também é a preservação da
dignidade humana. Ao buscar coibir os crimes de genocídio,
crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crimes de
agressão, o objetivo do Estatuto não é outro que não o
de buscar preservar a dignidade humana. Temos assim duas
normas com mesmo objetivo, sendo que discordam, entre si,
quanto aos meios para se atingir esse fim. Enquanto para o
Estatuto a prisão perpétua é um meio legítimo, ainda
que excepcional, para punir os seus réus, para a
Constituição esse meio é inadequado, ainda que para
essa mesma Constituição a pena de morte seja
eventualmente aceitável, enquanto para o Estatuto a pena
capital não é admitida.
O
que me parece relevante discutir é qual a norma mais
protetiva da dignidade humana: o dispositivo
constitucional que veda a prisão perpétua, ou o Estatuto
que se utiliza da prisão perpétua como meio para se
coibir a violação à dignidade? Ao meu ver, o
estabelecimento da prisão perpétua pelo Estatuto de Roma
foi um erro, pois, como em Nuremberg, violam-se direitos
com o objetivo de proteger direitos. Esta não é um boa
prática, do ponto de vista ético. Melhor seria se pudéssemos
conciliar a necessidade de punição, com humanidade da
pena. Isso porém não foi feito e o tratado não admite
reservas. Mesmo assim, o ganho de se contar com um sistema
internacional voltado a coibir crimes tão graves como o
genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e
crimes de agressão, é muito grande, pois a prática de
qualquer um desses crimes gera uma violação dos direitos
de milhares de pessoas. Porém, na esfera dos direitos de
conteúdo moral, como temos nesse caso, os cálculos
quantitativos não devem prevalecer.
Há
que se ressaltar, no entanto, que de acordo com o
Estatuto, a prisão perpétua não deve constituir a
regra, mas uma exceção, como se lê no art. 77, b.
Mais do que isso, mesmo quando o réu tiver sido condenado
à prisão perpétua, essa decisão deverá (não
simplesmente poderá) ser revista pela Corte depois de
cumpridos 25 anos de pena, conforme dispõe o art. 110, 3,
do Estatuto. Portanto, a prisão perpétua não é um
imperativo, mas uma possibilidade, que, mesmo se
concretizada, deverá ser revista.
Assim,
rejeitar a Corte, que pode ser um mecanismo importante
para coibir atrocidades, em função da proibição da
prisão perpétua estabelecida pela Constituição, pode
ser um erro que favoreça a violação da dignidade
humana. Trata-se, portanto, de um resultado interpretativo
inaceitável. Como então proceder?
Se o Estado
brasileiro não pode ratificar o Estatuto fazendo uma
reserva; deixar de ratificá-lo viola o princípio da
dignidade humana, além de contrariar diversos
dispositivos da Constituição; ratificá-lo sem condições,
por outro lado, também contraria um dispositivo específico
da Constituição. Assim, encontramo-nos frente a um
dilema. Nossa única alternativa é buscar encontrar uma
interpretação que favoreça, em maior grau, a dignidade
humana. Ao meu ver, essa interpretação nos obriga aderir
ao Tratado de forma qualificada. Do ponto de vista prático,
embora o Brasil não possa fazer reservas, nada obsta que
se faça considerações ou declarações interpretativas
condicionais no instrumento de ratificação, que busquem
a harmonização dos ordenamentos interno e internacional.
Essa é uma prática discutível do ponto de vista do
Direito Internacional, mas muito utilizada, vide os
instrumentos de ratificação depositados pelos Estados
Unidos relativos a tratados de direitos humanos. Ao
estabelecer considerações e declarações
interpretativas condicionais, mas que tecnicamente não
constituem reservas, o país adere ao Tratado lançando
eventuais dúvidas para o futuro, para uma situação
concreta, em que o instrumento de ratificação seja
eventualmente questionado. Trata-se de um modelo de adesão
condicional, que tradicionalmente não tem sido rejeitado
na esfera internacional.
Logicamente
que uma opção como essa pode também ser refutada
domesticamente. O decreto legislativo que autorize essas
obrigações internacionais pode ter sua
constitucionalidade questionada frente ao Supremo. Ainda
que se aprove a idéia avançada no projeto de reforma do
Judiciário, que estabelece um § 6º ao art.
109, com a seguinte dicção: O
Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal
Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão,
esta emenda pode ser declarada inconstitucional.
Há
um caso interessante que talvez nos ajude a
compreender essa situação. O Tribunal Federal
Constitucional alemão deu uma decisão, no mínimo,
inovadora no caso do "Tratado da União
Européia” (BervfGE, 1993). Alguns juristas alegavam
que a emenda à Constituição que autorizou a
adesão ao "Tratado de Maastrich" violava
vários preceitos da Constituição alemã, dentre
eles o princípio democrático e o da soberania
popular, uma vez que uma série de atribuições
de governo passavam para órgãos da União Européia,
que não têm representação popular. O Tribunal
alemão, cioso do seu papel, mas consciente da
importância da União, proferiu uma decisão pela
qual o ato de adesão foi considerado condicionalmente
constitucional. O que significa isso? Pareceu-lhes
que a razão de ser da União Européia era compatível
com os princípios da Lei Fundamental. Dessa
forma, enquanto a União agisse em conformidade
com os princípios da Lei Fundamental, ou seja,
de acordo com os parâmetros da democracia constitucional
alemã, o ato de adesão seria considerado constitucional.
O Tribunal, no entanto, a qualquer momento poderá
rever a sua decisão em face de uma mudança de
postura da União Européia, que venha a violar
os princípios da Lei Fundamental. A decisão
da Corte Alemã, embora tenha gerado uma certa
insegurança quanto à posição da Alemanha na
União, impôs mais demanda democrática à União,
que padece de um reconhecido deficit democrático
(Vieira: 1999, 156 e ss).
A
constitucionalidade de nossa eventual adesão também pode
ficar sujeita ao cumprimento das condições estabelecidas
pelo Brasil no seu instrumento de ratificação. Caso a
Corte de Roma, num caso específico, não venha a
respeitar tais limitações, a adesão do Brasil pode ser
declarada inconstitucional, perdendo os seus efeitos.
CONCLUSÃO
A
criação de um Tribunal Internacional, voltado à
responsabilização de altas autoridades envolvidas em
gravíssimas violações aos direitos humanos, vem
preencher uma grande lacuna no sistema internacional de
proteção de direitos. Evidente que o surgimento dessa
nova ordem exige uma flexibilização dos padrões pelos
quais o conceito de soberania é compreendido. Penso, no
entanto, que não estamos frente a um momento de ruptura,
mas sim de um processo evolutivo iniciado no final da
Segunda Guerra. A idéia de que a soberania não se
justifica a si mesma e de que a legitimidade do Estado
deriva do respeito aos direitos fundamentais e do exercício
da democracia, constitui mais um avanço no nosso processo
civilizatório. Nesse sentido a Corte de Roma poderá dar
uma contribuição importante para a construção de um
estado internacional de direito.
Infelizmente
há uma tensão entre alguns dispositivos do Estatuto da
Corte e da Constituição brasileira. Não podemos
permitir, no entanto, que essa tensão se sobreponha à
coincidência de princípios entre essas duas ordens.
Embora constitua uma jurisdição subsidiária, a Corte de
Roma ocupa um espaço na aplicação da lei que
dificilmente pode ser ocupado pelos órgãos estatais.
Espaço esse voltado a coibir violações massivas de
direitos humanos. Assim, vejo a adesão do Brasil a esse
tratado como condizente com os princípios básicos que
informa nossa Constituição, desde que feitas as
ressalvas interpretativas necessárias no documento de
ratificação.
Oscar
Vilhena Vieira é
Professor de Direitos Humanos da PUC-SP, Diretor Executivo
do Instituto Latino Americano das Nações Unidas para a
Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente e
Procurador do Estado-SP (afastado).
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