
A importância da Corte
Desde o fim da Primeira Guerra Mundial
pretende-se consagrar a responsabilidade penal internacional, quando o
Tratado de Versalhes clamou, sem sucesso, pelo julgamento do Kaiser
Wilhelm, por ofensa à moralidade e à inviolabilidade
("sanctity") dos tratados. As razões para essa pretensão
não eram imparciais ou universais, mas unilaterais, fundadas em um
critério principal: só o vencido pode ser julgado. Esse critério
também seria o instituído, de maneira preliminar, pelo Acordo de
Londres ("London Agreement") e pelo "Control Council Law
N. 10" ao estabelecerem o chamado Tribunal de Nuremberg. Com isso,
evidentemente, não se pretende defender que não houvesse o julgamento
de nazistas como Hermann Göring, Rudolf Hess, Joachim von Ribbentrop,
Erich Raeder, entre os 24 primeiros a serem julgados (a partir de 20 de
novembro de 1945, sob a égide do "London Agreement"), ou o
julgamento de médicos que produziam experiências em campos de
concentração, entre os outros 185 indivíduos julgados, nos próximos
12 julgamentos que seguiram (sob a égide do "Control Council Law
N. 10"). Também não se pretende abonar japoneses julgados pelo
segundo Tribunal Militar Internacional instituído após a Segunda
Guerra Mundial. Defende-se, ao contrário, a inexistência de
seletividade na condução de julgamentos e atitudes internacionais, bem
como lembrar que o princípio da reciprocidade não deve ser aplicado na
esfera da proteção internacional da pessoa humana. Assim, os
responsáveis pelo lançamento de armas nucleares sobre Hiroshima e
Nagasaki ou pela manutenção dos "Gulags" deveriam, também,
serem julgados, além de outros criminosos de ambos os lados.
Um ano antes da última sessão do
Tribunal do Japão, a Assembléia Geral das Nações Unidas solicitou à
CDI, mediante a resolução nº 177 (II), de 21 de novembro de 1947, que
formulasse os princípios de direito internacional reconhecidos pelos
instrumentos e julgamentos do Tribunal de Nuremberg, bem como preparar
um "draft" de Código de ofensas contra a paz e segurança da
humanidade. Em 1950 a CDI adotou a formulação desses princípios,
submetendo à Assembléia Geral, e em 1954 submeteu o projeto de
Código, sendo esse último inviabilizado por não haver acordo sobre a
definição de agressão — resolução nº 897 (IX) de 4 de dezembro
de 1954. O consenso sobre a definição de agressão só aconteceria
vinte anos depois, com a resolução da Assembléia nº 3314 (XXIX), de
14 de dezembro de 1974, mas a viabilidade política da instalação da
responsabilidade penal só seria realidade no final do século XX, após
muitos relatórios e resoluções. Entretanto, importantes instrumentos
internacionais sobre essa temática foram elaborados nessa segunda
metade de século, como, por exemplo, a "Convenção para a
Prevenção e a Sanção do Delito de Genocídio" (1948), as quatro
Convenções de Genebra sobre o direito humanitário (1949) e seus dois
protocolos adicionais (1977), a "Convenção sobre a
Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes de Lesa
Humanidade" (1968) e os "Princípios de Cooperação
Internacional para Identificação, Detenção, Extradição e Castigo
dos Culpáveis de Crimes de Guerra ou de Crimes de Lesa Humanidade"
(1973).
Mas, afinal, qual a importância desse
longo processo de formulação de uma Corte Criminal Internacional
permanente? Em resposta à essa indagação, a ONG nova-iorquina
"Lawyers Comittee for Human Rights" apontou seis pontos.
Primeiro, acabar com a impunidade dos grandes violadores dos direitos da
pessoa humana, em termos repressivos e preventivos. Segundo,
proporcionar a reconciliação social e a tranqüilidade e confiança
às vítimas, suas famílias, e à comunidade afetada, mediante a
investigação e o julgamento dos responsáveis pelos crimes
internacionais. Terceiro, sanar possíveis insucessos de Cortes
Nacionais, que deixam impunes os criminosos, principalmente quando esses
são autoridades políticas ou militares, o que se verifica com
freqüência em casos de crimes de guerra ou de desestruturação do
sistema legal interno. Quarto, remediar limitações políticas e
jurídicas inerentes aos tribunais internacionais criminais ad hoc, como
a instalação em alguns casos e não em outros, o viés político das
escolhas do Conselho de Segurança para instaura-los (além do
questionamento de sua autoridade para tanto) e o perigo do excesso de
tribunais instaurados ("tribunal fatigue"), sem consistência
na interpretação e aplicação do direito internacional, já que são
criados para um situação específica e com um corpo de juizes
distinto. Quinto, criar um mecanismo com força
("enforcement") para condenar pessoas que ofendem gravemente
os direitos humanos e o direito humanitário. E, por fim, o sexto ponto
seria tornar a Corte Criminal Internacional (doravante CCI) um modelo de
justiça penal e de julgamento justo ("fair trial"),
constituindo um patamar institucional ("standard-setting
institution") para a implementação interna ou internacional das
normas de proteção da pessoa humana.
Os pontos argumentativos levantados pelo
"Lawyers Comittee" são de extrema pertinência, mas a
eficácia das argumentações dependerá de uma série de fatores, que
variam da dificuldade de atingir a ratificação universal do tratado
instaurador da CCI até detalhes ainda a serem discutidos durante a
Conferência de Roma, principalmente os ligados a aspectos operacionais.
Apesar desses fatores, que serão discutidos nos tópicos subsequentes,
cremos que a criação da CCI, mediante a participação equânime dos
Estados em uma conferência internacional e não por ato unilateral do
Conselho de Segurança, é um marco na história do direito
internacional. Trata-se, realmente, de uma oportunidade de acabar com a
seletividade na determinação de quem são os criminosos; de eliminar
de forma definitiva o argumento de competência nacional exclusiva em
matéria de proteção internacional da pessoa humana; de evitar ou
sancionar o terrorismo estatal em matéria de direitos humanos e de
direito humanitário, geralmente aliciados por atos de poder internos,
como repressão militar ou leis de anistia; de constituir no plano
internacional, na matéria em tela, em suporte aos métodos de
supervisão e investigação e em aprimoramento dos sistemas de
petição ou comunicação; de representar o complemento dos sistemas
regionais de direitos humanos; de frear atitudes desumanas durante
conflitos armados; de ser base para o princípio da legalidade; além do
que foi destacado pelo "Lawyers Comitee".
Assim, voltamos a ressaltar que as
características e a eficácia da CCI dependerão da participação dos
Estados na Conferência. Discutiremos, a seguir, alguns tópicos
essenciais do projeto da CDI, que estão sendo debatidos em reuniões
especializadas de governos, de "experts" e de ONGs. |