Pinochet
e a Astúcia do Destino
A detenção do ex-ditador Augusto Pinochet na Inglaterra por
crimes contra a humanidade cometidos durante a ditadura no Chile
deflagrou uma controvérsia mundial que ultrapassa posições
pessoais a favor ou contra o General. Debate-se, em última instância,
a possibilidade de uma ordem mundial democrática, baseada na
dignidade do indivíduo enquanto pessoa humana e não apenas
enquanto cidadão de um Estado.
Os partidários
da sua extradição para a Espanha defendem a universalização
dos direitos humanos, fundamentando-se nos princípios
estabelecidos nos julgamentos de Nuremberg e nos diversos tratados
assinados tanto pela Inglaterra e Espanha, quanto pelo Chile. Os
defensores do General, por sua vez, sustentam que está em jogo a
soberania chilena, cuja violação é inconcebível dentro da
ordem internacional vigente.
O modelo
tradicional de ordem internacional, que estamos acostumados a
enxergar como o único possível, foi criado em 1648, pelo Tratado
de Westphalia, e desenvolvido ao longo dos três últimos séculos,
sendo decisivo para a consolidação dos Estados nacionais e do
poder destes sobre a sociedade. Estabelece uma rígida distinção
entre assuntos domésticos - questão exclusiva de soberania
nacional - e assuntos internacionais - regulados por um direito
que só reconhece os Estados como sujeitos. Dentro desse sistema
inter-estatal anárquico, baseado no equilíbrio de força entre
Estados autônomos, soberania é o princípio que asseguraria a
todos os Estados o mesmo status no plano internacional, ainda que
apenas formalmente.
Todavia, o
processo de globalização crescente, acelerado com o fim da
Guerra Fria, demanda uma proteção que o Estado-nação sozinho não
pode mais fornecer. Informação, comunicação eletrônica,
terrorismo, poluição, doenças, crimes, drogas, aquecimento
global e o perigo de armas nucleares, entre outros, não respeitam
territórios nem fronteiras. Na economia, é cada vez maior a
presença de corporações e instituições financeiras
internacionais nos assuntos domésticos, em nome da sobrevivência
financeira dos Estados, sem que a defesa da soberania constitua
qualquer obstáculo. O fluxo de turistas circulando pelo mundo
passou de 70 milhões para 500 milhões em pouco mais de trinta
anos. A diversidade de culturas, etnias e valores dentro de um
mesmo Estado implodiu o critério da territorialidade como fator
primordial de integração social. O buraco na camada de ozônio
ameaça a todos, ricos e pobres. Trilhões de dólares circulam
diariamente pelo mundo, entrando e saindo de países, e
provocando, na retirada, arrasadoras crises cambiais e políticas,
como a que ocorreu recentemente no Brasil.
Neste
sentido, a universalidade dos desafios que enfrentamos neste fim
de século aponta para a necessidade de uma regulação global de
problemas que são verdadeiramente mundiais, recorrendo-se a um
direito da humanidade que está consubstanciado, em grande medida,
na doutrina internacional dos direitos humanos. Com efeito, a
densidade e intensidade das interconexões globais estimulam redes
mais complexas de relações entre Estados, instituições
internacionais e organizações da sociedade civil. O Estado-nação
se enfraquece com o processo de globalização, seu peso relativo
diminui e seu papel se transforma, ao mesmo tempo que assistimos a
um fortalecimento da sociedade civil global e da chamada cidadania
planetária, dentro de uma ordem de fato mundial e não somente
inter-estatal.
De acordo
com esse direito universal de respeito à dignidade humana, crimes
hediondos, como os cometidos pelo General Pinochet, jamais
poderiam ser acobertados por noções formais e vagas como 'atos
de Estado' ou 'razão de Estado'. Seria inconcebível proteger com
imunidade soberana quem chegou ao poder através de um golpe de
Estado e, na única consulta popular que enfrentou, após 15 anos
de ditadura brutal, foi repudiado com um rotundo "não"da
população à sua permanência por mais nove anos.
A questão
fica ainda mais clara diante da inexistência de qualquer
possibilidade jurídica, política ou institucional de apuração
isenta pelos tribunais chilenos dos crimes de tortura, assassinato
e genocídio cometidos durante o regime militar. Primeiro, devido
à lei de Anistia de 1978 e, segundo, devido à imunidade
parlamentar vitalícia garantida a Pinochet pela Constituição de
1980, que foi elaborada sem a convocação de uma Assembléia
Constituinte democraticamente eleita. Mesmo que Pinochet pudesse
ser processado, o julgamento, de acordo com as regras
constitucionais vigentes no Chile, seria da competência da Justiça
Militar, ainda hoje controlada pelo militares envolvidos com as
atrocidades praticadas pela ditadura chilena.
Soberania,
assim, não pode ser utilizada para mascarar a responsabilidade de
chefes de Estado e invocada em situações estratégicas para
manter o status quo. Com efeito, os partidários do ditador não
se insurgiram contra a participação americana na derrubada de
Allende e na sustentação do regime pinochetista, quando os EUA
interferiram diretamente em assuntos de "soberania
nacional" chilena.
Esta última
decisão dos tribunais ingleses, que permite a extradição do
general para a Espanha para ser julgado pelos crimes cometidos após
1988, e todas as vitórias anteriores conseguidas junto à Câmara
dos Lordes e ao Ministério do interior inglês, constituem um
grande passo em direção à universalização dos direitos
individuais, mas não se trata de inovação. O direito
internacional, desde a Declaração dos Direitos Humanos pela ONU
em 1948, caminha neste sentido, contando já a esta altura com os
instrumentos formais - reconhecidos através de tratados
assinados, entre outros, pelos três países diretamente
envolvidos - que são capazes submeter o ditador a um julgamento.
Quem viola
os direitos humanos é o Estado. Exatamente por isso, os tratados
internacionais asseguram proteção aos direitos da pessoa humana
por cima da soberania nacional. Caso contrário, os indivíduos não
teriam nenhuma proteção quando as ditaduras se instalassem no
poder e suprimissem os direitos e garantias individuais, o que,
infelizmente, não é raro no mundo em que vivemos.
Como se vê, o caso Pinochet transcende o Chile, direitos humanos
não constituem mais apenas uma questão interna de cada país, o
que se choca com a doutrina tradicional da soberania nacional. O
julgamento de Pinochet ficará para a história como um caso
exemplar de transição entre dois paradigmas do direito
internacional.
Um paradigma
tradicional, baseado na soberania, que vem perdendo força e substância,
e outro que ainda não se firmou, fundado na proteção
supra-nacional dos direitos humanos, assegurada em tratados
internacionais. Quis a fortuna que Pinochet fosse colhido pela astúcia
do destino e lançado nas malhas intrincadas de um direito que ele
tanto desprezou, tornando-se o seu julgamento símbolo de uma nova
consciência jurídica mundial.
Liszt Vieira
- Professor da PUC/UFF e Defensor Público
Marcia Bernardes - Mestranda em Direito na PUC
14/10/1999
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