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O CASO PINOCHET: PASSADO, PRESENTE E FUTURO DA PERSECUÇÃO CRIMINAL INTERNACIONAL 

André de Carvalho Ramos 

"Contudo, uma coisa é clara. Se a humanidade quer ter um futuro reconhecível, não pode ser pelo prolongamento do passado ou presente.Se tentarmos construir o terceiro milênio nessa base, vamos fracassar. E o preço do fracasso, ou seja, a alternativa para uma mudança de sociedade, é a escuridão. Eric Hobsbawn, A era dos extremos, São Paulo, Companhia das Letras, p. 562. "

O chamado caso Pinochet. envolven­do a detenção em Londres do antigo homem forte do governo chileno, Augusto Pinochet, suscita polemicas ju­rídicas, além de sérios questionamentos éticos e morais, merecendo reflexão.

 

Em relação às polêmicas jurídicas, discute-se uma série de questões envolvendo desde a legitimidade da Espanha em julgar o general, passando pela oleo­sa a imunidade do antigo Chefe de Estado e desembocando na perspectiva de uma “caça às bruxas’’ internacional com base em lacunosas disposições protetivas de direitos humanos.

 

Urge, então, esclarecimentos sobre o verdadeiro cipoal de institutos jurídicos de Direito Internacional ventilados nos debates, que tem confundido tanto o jurista quanto o leigo. Neste artigo, bus­ca-se auxiliar o leitor a diferenciar mo­mentos distintos da repressão penal internacional, denominados por mim como sendo o passado, o presente e o futuro desta temática do Direito Internacional.

 

Em primeiro lugar, debate-se a legiti­midade do Poder Judiciário espanhol em julgar os crimes cometidos contra cidadãos espanhóis em território chileno. Ora, esta possibilidade não representa nenhu­ma inovação no campo do Direito Penal, E o “passado” desta temática no Direita Internacional, denominado assim apenas para firmar o seu lado tradicional, exis­tente ate bole. Cite-se o nosso Código Penal brasileiro, que estipula em seu art. 70 os casos de extraterritorialidade da lei penal brasileira.

 

De fato, de acordo com nossa lei penal vigente, crimes cometidos contra brasileiros no exterior podem perfeita. mente ser punidos pelo Brasil, preenchi. das algumas condições mínimas estipu­ladas pela própria lei brasileira. Ou seja, é o próprio Brasil que estabelece que punirá crimes cometidos contra brasilei­ros no exterior e ainda estabelece ele mesmo as condições para o exercício desta persecução criminal.

 

Estas condições podem ser mais os menos rigorosas, a depender exclusivamente do legislador pátrio, como, aliás, fica demonstrado pelas diferenças destas condições nos crimes cometidos no es­trangeiro mencionadas no inc. I, por um lado, e no inc. II, por outro lado, do art. 70 do Código Penal. O Brasil, enquanto autoridade de Direito Internacional, poda assim o lazer c encontra-se perfeitamente escudado no costume internacional de proteção de nacionais no exterior.

 

Assim, fica fundamentada a extrateritorialidade da lei penal, gerando-se conceitos doutrinários como o da perso­nalidade passiva, o da defesa e outros para justificar o alcance da jurisdição renal para além do território nacional. A Corte Permanente de Justiça Internacional, no seu famoso caso Lotus, de 1927, já decidira favoravelmente à Turquia, que processou e julgou um nacional francês por delito ocorrido fora do território turco.

 

A Espanha, de acordo com as leis espanholas, ou mesmo o Brasil, obedeci­das as limitações do art. 7.º de nosso Código Penal, não estão violando o Direito Internacional ou a soberania de outros países quando processam, julgam  e condenam pessoas que cometeram atos criminosos contra bens jurídicos nacionais no exterior.

 

Em relação ao caso Pinochet, observo ~ o primeiro pedido de detenção, de 10.1998, exarado pelo magistrado espanhol Garzón e aceito pelo magístrado inglês Evans, foi fundado na acusação homicídios de cidadãos espanhóis ocorridos no Chile entre 11.09.1973 e 31.12.1983.

 

Este pedido de detenção é justificado no “passado” da persecução criminal internacional, já que a Justiça espanhola ensaiava a defesa de vítimas espanholas General chileno, utilizando-se, assim, do princípio da personalidade passiva.

 

Entretanto, de acordo com Extradition Act de 1989, que internalizou no Reino ido a Convenção Européia de Extra­dição de 1957, o fato de os homicídios alegados terem sido cometidos no Chile, e não na Espanha, transforma tais crimes em crimes não-extraditáveis para o últi­mo país. A extradição, da forma como é regulada pela lei britânica e pela Con­venção Européia, não poderia ser feita.

 

Logo, a detenção provisória seria ile­gal. A constatação desta ilegalidade foi imediata: a Justiça espanhola emite um segundo pedido de detenção, do dia 22.10. 1998, novamente aceito pela Justi­ça inglesa, fundado em cinco tipos de acusações contra o General Pinochet, retratando crimes contra a humanidade, em especial a tortura, o sequestro e a formação de associação criminosa para cometimento de homicídios, utilizando­-se do aparato estatal e com motivação meramente política.

 

Assim, o caso Pinochet mostra a insuficiência do “passado” da persecução criminal internacional para superar a impunidade, e a sua rápida transforma­ção para o “presente”, que vem a ser a possibilidade de qualquer Estado deter, processar e julgar acusados de cometer crimes contra a humanidade, sem que haja necessariamente uma relação entre os latos e as pessoas a serem julgadas e o Estado julgador.

 

Estamos diante do “presente”, fruto da evolução do Direito Internacional dos Direitos Humanos e do combate á impu­nidade daqueles que cometeram atos bárbaros e odiosos.

 

Assim, esta nova vertente do debate relaciona-se com a legitimidade de um pais de julgar determinados criminosos, cujos atos seriam tão odiosos que justificariam a persecução criminal por qual­quer Estado, não importando a naciona­lidade do criminoso e do bem jurídico atingido. Esta chamada responsabilidade internacional penal do indivíduo originou-se no costume internacional de combate a pirataria marítima. Novos crimes foram sendo aceitos paulatinamente tanto pelo costume internacional quanto por normas convencionais específicas, tais como o crime de tráfico de escravos, tráfico de mulheres e outros.

 

Ocorre, todavia, que estes crimes tinham um ponto em comum: eram também considerados crimes do ponto-de-­vista do Direito local. Assim, o Estado, ao punir um pirata nacional de outro Estado, estaria somente substituindo, por motivo de conveniência, o outro Estado.

 

Entretanto, a partir da Segunda Guer­ra Mundial, adicionou-se um novo elemento a esta responsabilidade interna­cional penal do indivíduo: a persecução criminal de indivíduos agindo em nome de Estados (agentes públicos) e em conformidade com as leis locais. Até aquele momento com a exceção da fracassada tentativa dos vencedores da II Guerra Mundial de julgar o Kaiser Guilherme II por crimes cometidos enquanto Chefe de Estado, as condutas dos agentes públicos geravam apenas a responsabilidade do Estado.

 

Assim, os agentes públicos agiam como órgãos do Estado. Atuavam a título público e  não a título privado. Logo, era o Estado que agia, sendo o indivíduo mero representante do mesmo, devendo o Estado ser punido e obrigado a reparar os danos causados.

 

Com isso. o Acordo de Londres de 1945. que institui o Estatuto do Tribunal Militar de Nuremberg, inovou profundamente o tema, ao possibilitar o julgamento de agentes públicos agindo em nome do Estado e utilizando a torça material do mesmo. Um conceito revolucionário da responsabilidade individual foi introduzido: os sujeitos ativos da infração podem ser pessoas representan­do o Estado e agindo em seu nome. Esta novidade foi essencial para a punição de atos considerados bárbaros e odiosos, entre outros motivos, justamente por contar com o aparelho organizado do Estado para a realização dos mesmos.

 

Estes atos odiosos, consagrados Como tais pelo Estatuto do Tribunal Militar de Nuremberg, são os chamados crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crimes contra a paz. O Direito interna­cional, a partir daquele momento, nunca mais seria o mesmo em lace da respon­sabilidade internacional penal dos indivíduos. De acordo com as Resoluções 3 e 95 da Assembléia Geral da ONU, reco­nheceu-se como princípios de Direito Internacional os princípios ali firmados durante o processo de Nuremberg. Os Estados, então, reconheceram expressamente a possibilidade de afastar a tradi­cional imunidade dos agentes públicos (o que inclui, é óbvio, presidentes) para puni-los com severidade pelos crimes bárbaros e odiosos cometidos.

 

Deixando de lado os crimes contra a paz e os crimes de guerra, observo que a definição de “crimes contra a humanidade” foi consagrada no art. 6º do Esta­tuto do Tribunal Militar Internacional de Nuremberg.

 

Estabeleceu-se, neste art. 6.º, que são crimes contra a humanidade o homicídio, o extermínio, a escravidão, a deportação e outros atos desumanos efetuados con­tra a população civil, além de persegui­ções por razões políticas, raciais ou reli­giosas, quando tais atos ou perseguições sejam realizados na execução ou em conexão com qualquer crime contra a paz ou crime de guerra, previstos no mesmo Estatuto.

 

Note-se uma restrição à caracteriza­ção dou crimes contra a humanidade, já que se exigia uma conexão qualquer com os crimes de guerra ou contra a paz. Esta restrição foi sendo abandonada com o desenvolvimento do Direito Internacio­nal dos Direitos Humanos. quando se tornou clara a necessidade de proteger-se o ser humano mesmo contra o Estado de sua própria nacionalidade.

 

Esta proteção internacional foi aceita pelos Estados através da adesão à própria ONU (cuja Carta fundamental prevê como objetivo da Organização a defesa dos direitos humanos) e a diversos textos internacionais de proteção de direitos humanos, voltados para o tratamento dado pelo Estado a seus próprios nacionais. Logo, em consequência disso, é natural a separação conceitual dos crimes contra a humanidade, ficando sem sentido atual a menção à conexão com crimes de guerra ou crimes contra a paz, já que os agentes públicos, em situação de paz Internacional, podem perseguir e come­ter atos bárbaros contra os próprios cidadãos de seu Estado.

 

Diversos textos e decisões internacionais recentes demonstram a nova configuração conceitual dos crimes contra a humanidade, desvinculada dos crimes de guerra e crimes contra a paz. O projete de Código de Crimes contra a paz e segurança da humanidade, aprovado em leitura na Comissão de Direito Interna­cional da Organização das Nações Unidas em 1996, definiu, em seu art. 18, que crimes contra a humanidade consistem em atos tais como o homicídio, a tortura, a escravidão, a perseguição baseada em motivos raciais, étnicos, religiosos ou políticos, o desaparecimento forçado de indivíduos, a detenção arbitrária, o extermínio, o estupro e outras formas de abuso sexual, e finalmente todos os outros atos desumanos e cruéis que aten­tem contra a integridade física e psíquica das pessoas, sendo estes atos listados acima cometidos de maneira sistemática ou cm larga escala, instigados ou dirigidos diretamente pelo Governo ou orga­nização ou grupo.

 

No mesmo sentido, o art. 7.º do projeto de Estatuto do Tribunal Penal Inter­nacional Permanente aprovado por con­senso em conferência internacional pro­movida pela Organização das Nações Unidas em Roma, em 1998, estabelece que são crimes contra a humanidade os atos listados acima cometidos como par­te de um ataque sistemático ou em larga escala dirigido contra a população civil.

 

Por seu turno, o art. 5.º do Estatuto do Tribunal Penal Internacional, para os crimes cometidos na ex-Iugoslávia, esti­pula ser considerado crime contra a humanidade os atos desumanos de extrema gravidade, tais como o homicídio, a tor­tura, o estupro e outros, cometidos no seio de um ataque generalizado ou sistemático contra uma população civil qualquer, por motivos políticos, de naciona­lidade, étnicos, religiosos ou raciais.

 

Com isso, os crimes contra a humani­dade são considerados crimes comuns, mas cometidos em tais circunstâncias e com determinada motivação, demons­trando tamanha barbárie, que exigem resposta punitiva por parte do Direito Internacional.

 

Esta resposta punitiva internacional foi aceita pelos Estados (inclusive o Brasil) desde o fim da 2’ Guerra Mundial. como provam as dezenas de textos Internacionais regulando o conceito) de “crime contra a humanidade” e seu especial e mais gravoso regime jurídico.

 

Assim, existe hoje, no Direito Internacional. um corpo de normas que visa à punição dos autores de crimes contra a humanidade. Resta saber quem deve punir tais crimes.

 

A resposta, contida neste corpo de normas, e simples: todos os Estados da comunidade internacional têm um direi­to-dever de punir aqueles que cometeram crimes contra a humanidade. De fato, a Resolução 3074 (XXVIII), de 03.12.1973, da Assembléia Geral da ONU, estabelecer os princípios internacionais de cooperação na detenção, extradição e punição dos acusados de crimes de guerra e crimes contra a humanidade e previu a persecução criminal no país da detenção do acusado ou a extradição) para países cujas leis permitam a punição.

 

A cooperação internacional prevê a proibição da concessão de asilo a acusa­dos de cometimentos de crimes contra a humanidade, bem como a impossibilida­de de caracterização destes crimes como cri me político para fins de concessão da extradição. E também prevista na Con­venção sobre a imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade (1973) a não-aplicação das chamadas “regras técnicas de extinção de punibilidade”. as chamadas “statutory limitations”, o que leva à imprescritibilidade destes crimes.

 

Finalmente, é bem estabelecido no Direito Internacional a não-aceitação da tradicional imunidade de Chefes de Es­tado e Chefes de Governo, prevista em normas internacionais, acusados do co­metimento destes crimes, o que decorre naturalmente da própria definição de crimes contra a humanidade, via de regra cometidos por agente públicos, que uti­lizam a máquina estatal (em geral o aparelho policial militar) para os seus uns odiosos.

 

Os Estados, então, comprometeram­-se, costumeiramente ou por meio de con­venções internacionais, a cooperar entre si para punir aqueles que cometeram crimes contra a humanidade. Logo, a conduta da Espanha, retratada no segun­do pedido de detenção provisória e com o consequente pedido de extradição, é perfeitamente compatível com o estágio presente do Direito Internacional, não merecendo reprovação jurídica alguma.

 

A cooperação penal entre os Estados é, então, a principal arma contra a impu­nidade destes criminosos. Com isso, deve o país que deteve o acusado julgá-lo ou extraditá-lo para um país que possa puni-lo. Este princípio retratado pela expres­são latina aut dedere aut judicare tem como objetivo assegurar punição aos infratores destas normas internacionais de conduta, onde quer cine eles se encon­trem. Não estariam seguros, na expres­são inglesa, anywhere in the world.

 

Assim, é proibida, pelo Direito Inter­nacional atual, com base no Direito cos­tumeiro que as resoluções da ONU me­ramente espelham, a possibilidade de retorno destes criminosos a países cujas leis impeçam, ab initio, a punição dos criminosos, já que isso frustaria o direito de punir especialmente consagrado no Direito Internacional em lace dos crimes contra a humanidade.

 

Cite-se o princípio II da Resolução 95 da Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas relativa aos crimes de guerra, crimes contra a paz e crimes contra a humanidade, que expressamente determina que “o fato de a lei interna não estipular pena para um ato consistente em crime de Direito Internacional não exime o criminoso de sua responsabilida­de perante o Direito Internacional”.

 

Assim, não foi surpresa a decisão da House of Lords, que em 25 de novembro proferiu decisão não reconhecendo a imunidade do ex-Chefe de Estado para os atos praticados enquanto agente públi­co chileno, considerando que tais atos odiosos pelos quais e acusado não são suscetíveis de qualquer imunidade.

 

A imunidade diplomática, por não ter sido comprovada, nem foi apreciada, mas não há dúvida de que o regime de Direito Internacional dos crimes contra a huma­nidade implica na perda de qualquer imunidade internacional convencional ou costumeira. Assim, Lord Slynn of Hadlev. Lord Lloyd of Berwick, Lord Nicholís of Birkenhead, Lord Steyn e Lord Hoffmann reformaram, por votação da maioria, a decisão de 28 de outubro da High Court of Justice – Queen’s Bench Division - Divisional Court, que reconhecera a imu­nidade de ex-Chefe de Estado do Gene­ral Pinochet.

 

É importante salientar que a High Court of Justice, nos votos dos juízes designados para o caso, considerou não estar ainda perfeito e acabado o regime internacional de crimes contra a humani­dade, razão pela qual a imunidade de ex-Chefe de Estado prevaleceria, pois é fundada, entre outros, na Convenção de Viena de 1961, na lei britânica do State Immunity Act de 1978, além de forte base costumeira de Direito Internacional.

 

O Tribunal, então, em sua decisão de 28 de outubro, utilizou os institutos do ‘passado” tradicional, ainda existente, da persecução criminal internacional, aceitando a imunidade do ex-Chefe de Estado, tanto quanto poderia ter aceito outras statutory limitations, porventura previstas na legislação britânica (prescrição etc).

 

Por seu turno, a House of Lords, em 25 de novembro, reconheceu, pelo con­trario, o regime especial e mais gravoso ao acusado de cometimento de crimes contra a humanidade. Reconheceu o “pre­sente” do Direito Internacional. Para este acusado não cabe o reconhecimento de imunidade, sendo que os atos bárbaros praticados obviamente não são afeitos ao desempenho normal da função de qual­quer agente público.

 

Lord Nicholis. em seu voto, afirmou que o Direito Internacional atual não aceita a legalidade de todo e qualquer ato somente por ter sido cometido de acordo com as leis internas de um país ou por determinadas pessoas, que seriam imunes a qualquer persecução judicial. Pelo contrario, a gravidade dos crimes contra a humanidade exigem um regime especi­al e mais gravoso, tal qual o já existente no Direito Internacional.

 

Este é o “presente” da responsabilidade internacional penal do indivíduo em face dos crimes contra a humanidade. Entretanto, é necessária reflexão sobre as críticas a este atual estagio da evolução do Direito Internacional e sobre as pers­pectivas futuras.

 

A grande objeção a esta universalização da persecução dos crimes contra a humanidade é a ameaça da imposição da lei do mais forte no campo internacional.

 

Na medida cm que se autoriza Estados terceiros a deter, processar e julgar pessoas por crimes cometidos em outros Estados, sem qualquer conexão tradicio­nal com o Estado processante, ventila-se a possibilidade do abuso por parte dos Estados mais poderosos, que julgariam determinados indivíduos, enquanto ou­tros ficariam impunes, dependendo dos interesses dos Estados fortes.

Assim, aponta-se a existência de seletividade e de double standards, o que possibilita questionamentos sobre os objetivos políticos paralelos de determi­nados Estados, quando assumem o papel de defensores de direitos humanos em terceiros países, através da persecução criminal universal daqueles que comete­ram crimes contra a humanidade.

 

A neutralidade e a imparcialidade, próprias do Ministério Público e da Magistratura, não são elementos deste estágio “presente” do Direito Internacio­nal, no qual cabe a cada Estado, em seu juízo próprio de valor, considerar este ou aquele agente público um criminoso e, então, alvo do severo regime punitivo dos crimes contra a humanidade.

 

Além disso, o que lazer quando há divergência entre o Estado da nacionali­dade do acusado e o Estado da detenção sobre a correta caracterização dos crimes contra a humanidade? O que fazer com as tradicionais leis de anistia e demais normas de extinção de punibilidade, con­sideradas como necessárias para a corre­ta implementação do Estado de Direito e muitas vezes aprovadas por plebiscito popular? A Corte Internacional de Justi­ça, possível receptáculo destas deman­das, não tem sua jurisdição reconhecida por vários países e mesmo se o litígio for a ela submetido, não será preenchida a necessidade de existência de um Minis­tério Público e de uma Magistratura desvinculada deste ou daquele Estado.

 

O regime jurídico atual dos chamados crimes contra a humanidade é manco. Ao mesmo tempo em que corretamente estipula-se um regime de Direito mate­rial internacional mais gravoso aos acu­sados, evitando-se a impunidade, permi­te-se que. através da persecução unilate­ral e não-institucional, haja abusos e seletividade, já que inexiste um regime instrumental internacional apto a aplicar este Direito material. Este regime instru­mental seria composto por órgãos de acusação e julgamento internacionais independentes e Imparciais, capazes de aferir a existência ou não dos crimes contra a humanidade. sem que haja e possibilidade de interferência direta dos órgãos internos de um Estado.

 

Os defensores da proteção internacional dos direitos humanos devem ficar atentos a esta situação, já que uma onda de ações penais nacionais em fase de líderes de outros Estados pode fazer que o discurso de direitos humanos seja denegrido como sendo um discurso intervencionista e seletivo, incapaz de atingir os violadores de direitos humanos cm países desenvolvidos.

 

Por outro lado, não é possível também alegar “seletividade” ou “intervencionismo” como escusas para conseguir impu­nidade de indivíduos acusados de come­ter crimes bárbaros e odiosos, O fato de que nem todos cometeram crimes contra a humanidade sejam punidos não pode acarretar em uma ilógica e imoral impunidade de todos os que tenham sido acusados no atual estágio do Direito Internacional.

 

Pelo contrario, o Direito Internacio­nal deve evoluir para uma sistemática imparcial e institucional de acusação, julgamento e punição, de modo a evitar que alguns criminosos, em face de inte­resses políticos de Estados mais podero­sos, fiquem impunes. Assim, chegamos ao “futuro” da persecução criminal inter­nacional em face dos crimes contra a humanidade.

 

Este futuro deverá ser o estabelecimento de Cortes internacionais e de órgãos internacionais de acusação, capazes de substituir a acusação e o julgamento unilateral existente nos dias de hoje. Os Tribunais penais atualmente existentes (o relativo a fatos ocorridos no território de Ruanda) e o projeto de convenção internacional instituindo o primeiro Tribunal Penal Internacional permanente são amostras de um futuro possível.

 

Como exemplo acabado deste futuro, cite-se o projeto do Estatuto do Tribunal Penal Internacional de Roma (1998), que expressamente estabelece a competência de um juízo internacional, do Seu órgão de acusação e ainda de que maneira seriam analisadas eventuais decisões lo­cais em conflito com a vontade de punir do Ministério Público do Tribunal (referido simplesmente como Prosecutor).

 

O grande avanço do Estatuto é a previsão da existência de um órgão imparcial de acusação capaz de, motu proprio (art. 15 do Estatuto), iniciar um procedimento penal contra agentes públicos, superando as tradicionais alega­ções de seletividade e direcionamento político das acusações de crimes contra a humanidade. Ainda de acordo com o art. 17 do Estatuto e com seu Preâmbulo, a jurisdição local prevalece, sendo a jurisdição internacional subsidiaria e aci­onada quando  impossível, por motivos de direito material ou processual local, o justo processamento e punição dos acu­sados de crimes contra a humanidade.

 

Assim, é possível a não-admissão de um caso perante o Tribunal Penal Internacional quando à existir decisão local sobre o mesmo. Por outro lado, caso a decisão local tenha sido obtida por coação ou com base em leis de favorecimento à impunidade (como, por exemplo, leis de anistia...), estipula o art. 20 a possibilidade de nova persecução criminal, agora perante o Direito Internacional.

 

O Tribunal Penal Internacional seria a sede ideal para a solução de controvérsi­as existentes porventura entre dois ou mais Estados, como a atual ventilada pelo Chile em face de seu ex-Chefe de Estado, no qual é alegada a imunidade do atual Senador chileno e a impossibilidade de seu julgamento por crimes contra a humanidade.

 

Com isso, observo que O Tribunal Internacional Penal serve como substituto da atual situação de jurisdição penal universal, na qual os Estados arvoram-se em titulares de uma actio popularis penal, aptos a processar e julgar um acusado de crime contra a humanidade, mes­mo sem qualquer elemento de Conexão tradicionalmente aceito pelo Direito Internacional (nacionalidade da vítima, nacional idade do autor e tipo de bem jurídico lesado) ou mesmo contra a Von­tade do Estado no qual foram cometidos os citados crimes.

 

Cumpre assinalar que o ethos de promoção e defesa de direitos humanos é preservado com a existência de imparci­alidade e independência tanto dos ór­gãos acusadores quanto dos órgãos julgadores. O Tribunal Penal Internacio­nal permanente, além de imunizar a persecução criminal de Direito Interna­cional das críticas já mencionadas, pos­sibilita tanto o fim da impunidade quanto estimula a prevenção destes crimes em todo o globo.

 

Assim, urge o estabelecimento de um Tribunal Penal Internacional capaz de processar todo e qualquer agente acusado de cometer crimes contra a humanidade, permitindo ainda clarifi­car este conceito através da jurispru­dência do Tribunal e evitar que o cita­do conceito seja utilizado apenas quando convém.

 

O caso do General Pinochet serve, qualquer que seja a decisão final do Reino Unido, para uma maior reflexão sobre a necessidade e utilidade de uma Corto e um Ministério Público permanente como já proposto pelo Estatuto do Roma do Tribunal Penal Internacional aprovado em 1998. S6 assim supera­mos as críticas ao atual estágio de com­bate unilateral e não-institucional aos crimes contra a humanidade sem retroce­der e aceitar, sem reação, a impunidade, obtida muitas vezes pela ameaça ou pela força das armas, por estes criminosos no âmbito de seus países.

 

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