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O Objeto da Corte

Tarciso Dal Maso Jardim(1)

A base material prevista no projeto da CDI (Art. 20) divide-se em duas: a. jurisdição própria, composta por quatro categorias de crimes ("four cove crimes"), e b. jurisdição suplementar, oriunda de tratados que estabeleçam a CCI como competente para julgar os possíveis violadores desses ("treaty crime"). Os quatro crimes internacionais são normas imperativas (ius cogens): a. genocídio; b. agressão; c. crimes contra a humanidade e d. crimes de guerra, os quais trataremos isoladamente.

A. Genocídio — o genocídio foi uma das principais preocupações do pós-guerra, sendo tal animus convertido em instrumento internacional já em 9 de dezembro de 1948: a "Convenção para a Prevenção e a Sanção do Delito de Genocídio" — Assembléia Geral, res. 260 A (III). Essa Convenção, em seu Art. 2º, identifica o genocídio em qualquer ato, em tempo de paz ou guerra (Art. 1º), com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, tal como assassinato ou dano grave à integridade física ou mental de membros do grupo; subjugação intencional do grupo a condições de existência que lhe ocasione a destruição física total ou parcial; medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo e transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo.

Acreditamos que a definição desse crime não será a mais controversa, embora levante-se algumas limitações do conceito, como não incluir a proteção de grupos sociais e políticos, ou de grupos destacados de um grupo, em que não há homogeneidade (por exemplo, as elites culturais). Outra falha seria exigir, como elemento de caracterização, a intenção específica, o que dificulta a prova e concede argumento a dirigentes ou a quem obedece ordens. Admitido como norma costumeira (idéia consolidada na Corte Internacional de Justiça), o crime de genocídio foi discutido por representações governamentais com base na referida Convenção. Sobre esse tópico, as principais considerações das delegações foram ligadas a clarificações de termos, como o significado de destruição "em parte" de um grupo, de lesões mentais ("mental harm") e de medidas destinadas a impedir nascimentos (sugeriu-se os termos "preventing births within the group"). Outras observações foram a respeito de estender a alínea sobre transferência de crianças também para membros de um grupo particular, além da inclusão do genocídio de grupos sociais e políticos, embora houve o reconhecimento da conexão desse com crimes contra a humanidade.

Dentro dessa concepção, não somente os responsáveis diretos pelo genocídio serão punidos, mas também quem conspirar, incitar direta e publicamente ou tentar cometer o genocídio, assim como aqueles que manterem cumplicidade.

B. Agressão — o crime de agressão sempre causou polêmica na doutrina e prática internacionais. Primeiro, a discussão girava em torno da licitude da guerra como meio de solução de controvérsias internacionais. A concepção de "guerra justa" de Santo Agostinho, em que seria melhor os justos subjugarem os malfeitores do que o contrário, influenciou muito o pensamento ocidental, ao ponto de os humanistas "cívicos" (como Patrizi e Maquiavel) defenderem a guerra como uma opção política a ser protagonizada pelos cidadãos, enquanto dever cívico. Essa ragione di stato seria, entretanto, contestada pelos humanistas do norte, como Erasmo, para quem toda a guerra é fraticida. Segundo, no plano internacional, em tom de inspiração kantiana, a guerra fora considerada universalmente como um meio ilícito de solução de controvérsia pelo Art. 2º, §4º, da Carta das Nações Unidas, embora temos que recordar o precedente do "Pacto de Briand-Kellog" (1928), de menor alcance.

A discussão da abrangência da abstenção de recorrer à ameaça e ao uso da força, estabelecida pelo referido artigo, rendeu várias correntes doutrinárias, como a do direito de ingerência por razões humanitárias. A confusão se dá porque essa abstenção deve ser, segundo o Art. 2º, §4º, contra a integridade territorial ou a independência política de um Estado ou outro modo incompatível com os objetivos das Nações Unidas. Discute-se, então, exceções à regra, embora entendemos que o Art. 2º, §3º, resolve a questão ao determinar que as controvérsias devem ser resolvidas por meios pacíficos, não ameaçando a paz, a segurança e a justiça. Dessa forma, não haveria possibilidade de uso unilateral da força por um Estado, resguardando a legítima defesa e o direito de autodeterminação dos povos, assim como as faculdades do Conselho de Segurança sob a égide do cap. VII da Carta.

Dentro desse contexto, há duas propostas de definição de agressão enquanto crime sob jurisdição da futura CCI. Uma das alternativas define agressão como os atos cometidos por um indivíduo que, como líder ou organizador, é envolvido no uso de força armada por um Estado contra a integridade territorial ou independência política de outro Estado ou em outro modo incompatível com a Carta das Nações Unidas. A segunda alternativa define o crime de agressão como o cometido por uma pessoa que está em posição de controle ou é capaz de dirigir ações políticas ou militares em seu Estado, contra outro Estado, em infração à Carta das Nações Unidas, recorrendo à força armada e ameaçando ou violando a soberania estatal, integridade territorial ou independência política. Sobre essa última definição, houve a proposta de acréscimo de infração ao direito internacional costumeiro. Ademais, discute-se o rol de atos que, a princípio, caracterizaria a agressão. Entre outros, estão as invasões, ataques, ocupações, bloqueios, permitir acesso para agressão a um terceiro Estado ou enviar bandos, grupos, mercenários.

A diferença básica entre os dois conceitos de agressão concentra-se na vinculação estrita aos termos do Art. 2º, §4º, da Carta (primeira alternativa) ou o acréscimo da violação à "soberania estatal" a esses termos, que se funda na definição de agressão dada pela Resolução nº 3314 (XXIX) de 14 de dezembro de 1974. Se, de um lado, cremos ser insuficiente esse conceito quando as relações internacionais são pautadas por coerções econômicas; de outro lado, várias delegações governamentais sugestionaram não incluir o crime de agressão, por vários motivos. Destacamos o argumento de imprecisão da responsabilidade individual criminal nessa seara. E, também, o argumento de possíveis confusões entre as funções da futura CCI e do Conselho de Segurança. Acreditamos que, por esses fatores, será grande a polêmica sobre a definição de agressão e, independente da alternativa aceita, a adoção do crime de agressão inibirá muitos Estados de ratificarem a Convenção de Roma.

C. Sérias violações dos direitos e costumes aplicáveis em conflitos armados — os crimes aqui mencionados são, primeiro, as chamadas "infrações graves" ("graves breaches") consagradas nas quatro Convenções de Genebra de 12 de agosto de 1949 e o Protocolo Adicional I, de 8 de junho de 1977; segundo, sérias violações ao direito costumeiro internacional pertinente a conflitos armados, à Convenção de Haia nº IV (1907), ao Art. 3º comum às quatro Convenções de Genebra e ao Protocolo Adicional II, de 8 de junho de 1977.

As infrações graves seriam: a. homicídio intencional; b. tortura ou tratamento desumano, inclusive as experiências biológicas; c. provocar grandes sofrimentos ou atentar gravemente contra a integridade física ou a saúde; d. a destruição e a apropriação de bens, não justificadas por necessidades militares e executadas de maneira ilícita e arbitrária; e. compelir um prisioneiro de guerra ou civil a servir em forças inimigas; f. desprover um prisioneiro de guerra ou civil dos direitos de um imparcial e regular julgamento; g. deportação, transferência ou prisão ilegal de civis; h. tomar civis como reféns; i. fazer a população ou indivíduos civis de objeto de ataque; j. pérfido uso de sinais reconhecidos pelo direito internacional, como a cruz vermelha, a meia lua vermelha ou do leão e sol vermelhos; k. lançar ataque contra obras ou instalações que contenham forças perigosas, cônscio que cada ataque causará excessiva perda de vida, ferimentos a civis ou danos a bens de civis; l. prática de apartheid e demais práticas desumanas e degradantes, fundadas na discriminação racial, que acarretem um ultraje contra a dignidade pessoal; m. fazer ataque a monumentos históricos, obras de arte ou locais de culto que constituem patrimônio cultural ou espiritual dos povos e que, sob proteção especial de um acordo (por exemplo, ligado a uma organização internacional), não sejam usados para esforços militares, tampouco estejam próximos de objetivos militares; n. transferência pela Potência ocupante de parte de sua população para o território que ela ocupa, ou a deportação ou transferência de toda ou parte da população do território ocupado; o. atacar localidades não defendidas e zonas desmilitarizadas; p. demora injustificável na repatriação de prisioneiros de guerra ou civis.

Os crimes de guerra entendidos como infrações graves, quando intencionalmente cometidos contra pessoas ou bens protegidos, são fundados nas quatro Convenções de Genebra, principalmente no Art. 50 da Convenção para a Melhoria da Sorte dos Feridos e Enfermos dos Exércitos em Campanha, no Art. 51 da Convenção para a Melhoria da Sorte dos Feridos, Enfermos e Náufragos das Forças Armadas no Mar, no Art. 130 da Convenção Sobre o Tratamento aos Prisioneiros de Guerra e no Art. 147 da Convenção Sobre a Proteção das Pessoas Civis em Tempos de Guerra. E, também, no Art. 85 do Protocolo Adicional I às Convenções de Genebra.

O segundo grupo de crimes de guerra seriam ligados a sérias violações de normas e costumes aplicáveis em conflitos armados, de caráter internacional ou não: a. emprego de armas tóxicas ou outras armas calculadas para causar sofrimentos desnecessários; b. arbitrária destruição de cidades, vilarejos ou devastação não justificada por necessidades militares; c. ataque, bombardeamento, ou qualquer meio, de indefesas cidades, vilarejos, habitações ou construções; d. roubo, destruição ou dano intencional a instituições dedicadas a religião, caridade, educação, artes e ciências, a monumentos históricos e obras de arte e científicas; e. saque de propriedades públicas ou privadas; f. violência à vida, saúde e bem-estar físico e mental, em particular assassinato, homicídio culposo ("manslaughter"), estupro e violência sexual, assim como tratamentos cruéis como a tortura, mutilação ou alguma forma de punição corporal e experiências com pessoas humanas; g. punições coletivas; h. detenção de reféns; i. atos de terrorismo; j. atentados à dignidade das pessoas, especialmente os tratamentos humilhantes e degradantes; k. qualquer forma de escravidão; l. pilhagem; m. uso de pessoas como escudo; n. atos de violência feitos para inspirar ou instigar terror no total ou em parte de uma população; o. condenações pronunciadas e as execuções efetuadas sem julgamento prévio por tribunal regularmente constituído, que conceda garantias judiciárias reconhecidas como indispensáveis pelos princípios gerais do direito internacional; p. forçosamente usar membros da população civil, inclusive crianças, para participar em hostilidades ou esforço de guerra; q. impedir de remover ou proteger civis, particularmente crianças, de áreas hostis para outras áreas dentro de seu Estado, em que possam ficar a salvo e, no caso das crianças, acompanhada pelos responsáveis; r. submeter à fome as populações civis e impedir a respectiva assistência humanitária; s. intencionalmente separar crianças dos pais ou pessoas responsáveis por sua segurança e bem-estar; t. impedir tratamento médico aos feridos, doentes, náufragos e pessoas desprovida de sua liberdade por razões ligadas aos conflitos armados; u. maus-tratos de pessoas detidas ou internadas.

As divergências em torno dos crimes de guerra são várias, mas cremos que a principal concentra-se em incluir ou não na competência da CCI as sérias violações do direito humanitário em conflitos internos. O perfil de vários conflitos contemporâneos, como o da Ex-Iugoslávia e de Ruanda, são internos e revelam toda sorte de sérias violações ao direito humanitário, além de apresentar uma administração de justiça totalmente ineficaz e indisponível. Do ponto de vista da proteção da pessoa humana, o Art. 3º comum das Convenções de Genebra é o elo de ligação entre o direito humanitário e os direitos humanos, já que, por um lado, obrigam as facções em conflito a respeitar o núcleo de direitos inderrogáveis do direito humanitário e, de outro lado, em guerra civil deve-se proteger também o núcleo de direitos inderrogáveis dos tratados de direitos humanos em que o Estado seja parte, conforme salienta o prof. Cançado Trindade.

D. Crimes contra a Humanidade — a concepção de crimes contra a humanidade envolve a dimensão de larga escala. Assim, caracterizariam esse tipo de crime as violações maciças e sistemáticas contra um segmento da população civil. Os tipos de crimes seriam: a. assassinato; b. extermínio; c. escravidão; d. deportações arbitrárias e discriminatórias; e. prisão arbitrária; f. tortura e outros tratamentos cruéis; g. estupro e agressão sexual;

h. perseguição por motivos políticos, étnicos, culturais ou religiosos; i. outros atos desumanos.

Os crimes contra a humanidade podem ser cometidos em tempo de paz ou de guerra, quando o criminoso está em posição de autoridade, de ordem, comando e provoca ou não previne a violação sistemática contra um segmento da população. Também quando participa na elaboração de políticas violentadoras. As opções e definições sobre quem pode cometer os atos de violação maciça ("widespread") e sistemática são várias e, por via de conseqüência, a formulação não é pacífica. Aliás, cumpre salientar que por "widespread" entende-se a agressão que é maciça em natureza e é dirigida contra grande número de indivíduos, e sistemática a agressão que constitua, faça parte ou fomente políticas, planos combinados ou prática repetida em certo período de tempo.

Outros crimes são discutidos nesse seara e cremos que, ao menos, o crime de desaparecimento forçado de pessoas deveria ser incluído nessa lista, que pode não ser fechada. Entretanto, não podemos confundir a amplitude dos crimes contra a humanidade, similares aos descritos, com os "treaty-based crimes". Esses últimos seriam fundados em outros tratados que delegassem competência à CCI, como os ligados a terrorismo internacional, tráfico ilícito de entorpecentes ou crimes ambientais.

Por todo o exposto, pertinente ao assunto objeto da CCI, sinceramente preferimos que os plenipotenciários em Roma se concentrassem nos crimes de genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade. A preferência se deve ao fato de a Conferência de Roma precisar de um número considerável de ratificações, a fim de ter a eficácia pretendida e corresponder à importância de sua instalação. O excesso de tipos criminais prejudicará a aceitação universal da Corte, bem como poderá levá-la ao descrédito, devido ao grande número de casos a serem resolvidos e a conseqüente perda de qualidade em temas sensíveis, que envolvem muitos problemas operacionais, conforme veremos. O crime de agressão, por exemplo, deveria constar na lista definitiva dos "cove crimes". Entretanto, se houver muita divergência quanto à sua definição, seria melhor esperar uma oportunidade futura mais favorável e emendar o estatuto da CCI. Destarte, crimes que não possuem respaldo nos costumes internacionais, ou possuem fontes em tratados suplementares ("treaty-based crimes"), ou servem de escusas por parte de autoridades militares ou governamentais (como o terrorismo internacional e o tráfico ilícito de entorpecentes), não deveriam constar na competência da CCI, sob pena do inchaço, da inoperância e da carência de ratificações.

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