
TRIBUNAL/CORTE
PERMANENTE
Considerações
Iniciais
Corte Criminal
Internacional:
consagração da pessoa
humana como sujeito de direito internacional ou manutenção do status
quo das Nações Unidas?
Tarciso Dal Maso Jardim(1)
1. Considerações iniciais: lei do mais
forte ou justiça internacional?
A origem do que hoje compreendemos por
direito internacional possui data e local incertos, já que o devir
histórico apresentou diversa e constante relação entre sociedades
políticas, ao ponto de ter-se notícia de tratados celebrados há
milênios (como o realizado em torno de 3.010 a. C. na Mesopotâmia,
entre o vencedor Eanatum, líder da cidade de Lagash, e a agressora
cidade de Uma). Contudo, a contribuição de Roma, com o ius gentium,
foi basilar para o desenvolvimento do que seria chamado de direito
internacional. Curiosamente, o ius gentium é produto do direito interno
romano. Devidamente separado do ius civile, o ius gentium se destinava
ao estrangeiro desprovido do amparo jurídico dos tratados celebrados
com Roma e, mediante o acréscimo da figura do pretor dos estrangeiros
(praetor peregrinus), se tornou em um prático e amplamente aplicado
direito. Por vezes confundido com o direito natural, inicialmente versou
de forma especial sobre questões de comércio, mas em certo momento
dedicou-se a questões de paz e guerra, na lógica de vencedores,
vencidos e aliados, ou, se preferir, na lógica realista do mais forte,
apesar de serem encontrados em Roma cidadãos que se opunham aos
conflitos armados como meio de solução de controvérsias, como
Cícero(2).
Entretanto, com o advento do Estado
moderno, o direito das gentes transformou-se em um direito interestatal,
renegando suas origens ao consagrar somente os Estados soberanos como
detentores de personalidade jurídica internacional. Essa realidade,
como sabemos, foi profundamente alterada no século XX, com o advento ou
fortalecimento de novos atores internacionais, como organizações
intergovernamentais, organizações não-governamentais, empresas
transnacionais e indivíduos. A gradativa importância fáctica desses
entes lhes auferiram direitos e obrigações no plano internacional,
atributo nuclear da personalidade jurídica. No caso das pessoas
humanas, setores do direito internacional começaram a lhes destinar
normas diretamente (como o direito internacional dos direitos humanos, o
direito internacional humanitário e o direito dos refugiados),
incluindo o direito de petição e, em situações ad hoc, a
responsabilidade penal.
Com esse breve intróito, podemos mutatis
mutandis fixar o contraponto desse escrito: a Corte Criminal
Internacional, a ser consolidada em junho desse ano em Roma, será a
realização parcial do sonho de uma civitas maxima ou, em termos
atuais, de uma cidadania universal, não ditada por Romas
contemporâneas e alimentada por uma aperfeiçoada idéia da dignidade
do gênero humano (equivalente ao humanum genus de Sêneca)? Ou, ao
contrário, será a perpetuação de uma desigualdade de tratamento,
simbolizada na prática do Conselho de Segurança da ONU ou,
antigamente, na pax Romana e a astuta operação romana de arbitragem em
controvérsias entre terceiros (arbiter mundi)?
2. O indivíduo como sujeito do direito
internacional público
O conceito de personalidade jurídica é
uma construção teórica e prática que possui variação na história
do Direito, bem como amplitude diferenciada, em um tempo dado, para
categorias de sujeitos. Assim, não se pode estranhar a afirmação de
Max Weber de que personalidade jurídica é uma tautologia, já que o
conceito de pessoa sempre é jurídico no âmbito do Direito(3).
Torna-se evidente de que não há um quadro estático de pessoas no
plano jurídico, sendo o critério para a determinação da
personalidade de natureza pragmática e política, segundo os fins de
determinado Direito. Ser sujeito de direito é ser destinatário de
direitos e obrigações em um plano de igualdade, tendo desdobramentos
na exigibilidade de tais direitos ou na responsabilidade de tais
obrigações.
Destarte, não há dúvida de que as
pessoas humanas em si mesmas seriam destinatárias diretas de certas
normas internacionais, já mencionadas, perante às quais o clássico
princípio da reciprocidade não vigoraria. Assim, nenhum Estado pode
justificar a violação de uma norma de direito humano ou humanitário,
por exemplo, alegando que outro Estado também a estaria violando.
Devido à qualidade de inerência à pessoa humana, que essas normas
possuem, seria possível, com tranqüilidade, afirmar que o indivíduo
é sujeito de direito. Entretanto, a consagração dessa personalidade
só se dará com a capacidade processual e a possibilidade de
responsabilidade internacional dos indivíduos.
Se, de um lado, sabe-se que os
indivíduos não podem celebrar tratados, de outro lado, nota-se a
afirmação da capacidade processual dos indivíduos desde o sistema de
navegação do rio Reno no final do século XIX, passando, entre outros,
pela Corte Centro-Americana de Justiça (1907-1917) e pelos sistemas
modernos de proteção dos direitos humanos (como, só a título de
exemplo, a possibilidade de petição individual ao Comitê de Direitos
Humanos, instituído pelo Protocolo Facultativo de Direitos Civis e
Políticos, e junto aos sistemas interamericano e europeu de direitos
humanos)(4).
Os direitos podem, então, serem exigidos
pelos indivíduos em várias esferas do direito internacional,
especialmente no âmbito da proteção da pessoa humana. As razões para
esse desenvolvimento processual ser destacado na área de direitos
humanos não é por acaso, mas por um interesse público das sociedades
políticas. Justamente por se tratar de ordre public, de interesse comum
da humanidade, não causa espanto os exemplos de responsabilidade
internacional penal dos indivíduos terem sido por razões
humanitárias. Assim, tivemos os Tribunais de Nuremberg e do Japão para
condenarem alguns criminosos de guerra da Segunda Guerra Mundial, porém
somente do lado dos vencidos. E, recentemente, o Conselho de Segurança
criou dois tribunais criminais ad hoc, quais sejam: o "Tribunal
Internacional para a Investigação de Pessoas Responsáveis por Sérias
Violações do Direito Internacional Humanitário Cometidos no
Território da Ex-Iugoslávia Desde 1991" (doravante ICTFY)(5) e o
"Tribunal Criminal Internacional para a Investigação de Pessoas
Responsáveis por Genocídio e Outras Sérias Violações do Direito
Internacional Humanitário Cometidos no Território de Ruanda e de
Cidadãos Ruandeses Responsáveis por Genocídio e Outras Violações
Cometidas no Território de Estados Vizinhos entre 1º de Janeiro de
1994 e 31 de Dezembro de 1994" (doravante ICTR)(6).
Com os exemplos referidos, de direitos e
obrigações diretamente destinados aos indivíduos e, por via de
conseqüência, da ampliação de sua capacidade processual e
responsabilidade penal, pode-se afirmar que a personalidade jurídica
internacional do indivíduo já é realidade. Contudo, o projeto da
Corte Criminal Internacional Permanente pode significar a consagração
dessa personalidade, já que, ao contrário dos demais tribunais
criminais internacionais, esse será uma instituição permanente com
pretensões de universalizar a responsabilidade penal.
Elaborado pela Comissão de Direito
Internacional (doravante CDI) das Nações Unidas, o projeto da Corte
será transformado em tratado em junho de 1998 (Roma), embora certamente
com muitas alterações do original. São precisamente sobre essas
possíveis alterações que será analisado o perfil da futura Corte, em
contraste com experiências passadas.
1)Professor de Direito Internacional na
Universidade de Brasília. Mestre em Relações Internacionais.
Coordenador-Geral do Centro de Proteção Internacional dos Direitos
Humanos (CPIDH).
2)Ver SERRA, Antonio Truyol y. História
do Direito Internacional Público. Lisboa: Instituto Superior de Novas
Profissões, 1996.
3)WEBER, Max. Economia y Sociedad.
México, D. F.: Fondo de Cultura Económica, 1992, p. 566.
4) As possibilidades de petições ou
reclamações individuais são múltiplas. Sobre esse assunto, ver
TRINDADE, A. A. Cançado. Tratado de Direito Internacional dos Direitos
Humanos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1997, v. I.
5) International Criminal Tribunal for
Former Yugoslavia. Foi criado em maio de 1993, pela resolução 827 do
Conselho de Segurança.
6) International Criminal Tribunal for
Rwanda. Foi criado em 1994, pela resolução 955 do Conselho de
Segurança. |