Os
regimes interno e internacional de promoção e
proteção de direitos humanos são complementares e
interdependentes. Cada um, em sua esfera própria,
enfrenta tensões na confrontação de realidades
que requerem o atendimento de um elevado número de
exigências algumas vezes conflitivas, pelo menos a
curto prazo, de que são exemplos a escassez de
recursos e os dilemas da governabilidade. As interações
entre os dois regimes figuram como elemento
importante para a compreensão do tema da
realizabilidade dos direitos humanos e das resistências
que a ele se opõem.
A
supervisão internacional dos direitos humanos é
objeto de forte polêmica e não se desenvolveu sem
grande resistência, e são imensos os hiatos entre
os padrões consagrados e a prática. Mas torna-se
cada vez mais difícil afastar do escrutínio
internacional, sob o argumento da soberania e da
jurisdição interna, práticas odiosas e
repressivas contra indivíduos e grupos, assim como
situações extremas de pobreza e marginalização.
No
Brasil, o fim do autoritarismo permitiu o retorno
pleno ao Estado de direito e a adoção de uma
Constituição que ampliou as garantias aos direitos
humanos e reforçou, de maneira inovadora, os
instrumentos para sua defesa. Essas garantias
assumiram o caráter de cláusulas pétreas,
insusceptíveis de alterações restritivas (art.4,
IV). Consagrou também a Constituição a incorporação
ao sistema jurídico das obrigações contraídas em
razão de tratados internacionais de direitos
humanos.
As
normas internacionais sobre direitos humanos
encontram-se em declarações, tratados e
instrumentos cujas origens remontam à Carta das Nações
Unidas (1945), à Declaração Universal (1948) e
aos Pactos Internacionais (adotados em 1966 e
vigentes a partir de 1976). Apesar de seu
significado inovador, essas normas surgiram e se
desenvolveram dentro do sistema jurídico e político
do imediato pós-guerra e do bipolarismo ideológico
e estratégico que congelou o mundo durante mais de
quarenta anos.
Desde
então aceleraram-se, sobretudo depois de 1989,
transformações que afetam, de maneira substancial,
o papel e as relações entre os atores
fundamentais: indivíduo, sociedade e Estado. O
processo de globalização, a que se contrapõem as
tendências de fragmentação, e o surgimento de
poderosos atores não estatais criam novos desafios,
que não substituem os anteriores e sim a eles veem
somar-se.
Não se
deve negar o considerável progresso alcançado nos
direitos humanos em várias regiões do mundo, e
especialmente no Brasil, em termos de normatividade,
de garantias e mesmo de efetivo exercício. A
consolidação da democracia e a maior consciência
dos direitos inerentes à pessoa se tornaram mais
vigorosos não apenas frente ao Estado, mas também
frente às tradicões sociais e culturais, algumas
vezes discriminatórias ou restritivas à liberdade
individual.
A
crescente universalização do acesso às fontes de
informação e a confrontação imediata com
acontecimentos em qualquer parte do mundo gerou um
adensamento da consciência individual e coletiva
sobre os direitos humanos, assim como a ampliação
das reivindicações de acesso aos valores por eles
proclamados. No plano dos indivíduos e dos grupos
sociais, tal como projetado pelas ONGs, os direitos
humanos se apresentam como objetivos de conteúdo
inexaurível.
A
inexauribilidade dos direitos humanos, como um
horizonte em permanente expansão, contrasta com a
realizabilidade necessariamente reduzida de tais
anseios, dada a limitação dos meios econômicos e
os constrangimentos políticos enfrentados pelos
Estados, gerando um descompasso que pode incidir
sobre a governabilidade, especialmente em países em
desenvolvimento.
As forças
da fragmentação (conflitos étnicos, separatismos,
nacionalismos exclusivistas, racismo, xenofobia)
geram problemas de dimensões mundiais (terrorismo,
fundamentalismo, fluxos maciços de refugiados,
genocídio, restrições aos fluxos migratórios,
etc.). O aprofundamento e a maior visibilidade das
diferenças econômicas agrava a marginalidade e
acentua o problema da violência, inclusive de
origem policial, como fonte de violações de
direitos humanos.
Geram-se
assim tensões, tanto no plano interno quanto no
internacional, que variam conforme a capacidade e
velocidade dos respectivos sistemas políticos, econômicos
e sociais para dar cumprimento às normas e
acompanhar as transformações, sem rompimento da
solidariedade social essencial à estabilidade e à
governabilidade.
A resolução
favorável destas tensões será indispensável para
resolver conflitos e consolidar a democracia como
sistema político capaz de, no limiar do século
XXI, atender às exigências de sociedades em
constante evolução. Para que este objetivo possa
ser alcançado, o Estado e as demais instituições
responsáveis, inclusive as organizações
internacionais, deverão dotar-se dos meios necessários
para assegurar o desenvolvimento sustentável e
promover a redução das desigualdades econômicas e
sociais.
Como
assinalou o Presidente Fernando Henrique Carodoso,
em entrevista à revista "Veja", torna-se
necessário "radicalizar a democracia",
isto é fortalecer, conjuntamente, as instituições
formais da democracia (poder legislativo, partidos
políticos) e aquelas, menos formais, que se nutrem
diretamente da inspiração da sociedade civil e de
seus agrupamentos. Lembra também Darcy Ribeiro (in
O Povo Brasileiro) a necessidade, para a
realização do conceito de cidadania, de que o povo
se apodere de seu destino e realize suas
potencialidades.
O
enfoque dos problemas contemporâneos pelo prisma
dos direitos humanos tem a vantagem de permitir,
pelo seu caráter de conjunto de valores articulados
em torno dos eixos do indivíduo, da sociedade, e do
Estado, a busca de uma ordem complexa, capaz de
lidar com demandas muitas vezes contraditórias, ao
menos no curto prazo. O respeito das liberdades, as
aspirações de reforma e de redução das
desigualdades sociais precisam ser equilibradas com
as legítimas expectativas de defesa da segurança
individual e coletiva, em suma do império da lei e
da preservação da governabilidade. É preciso no
entanto não cair na falácia de encarar segurança
e direitos humanos como objetivos conflitantes. Pelo
contrário, a verdadeira segurança só se alcançará
mediante o respeito à lei e ao fortalecimento e
modernização dos instrumentos do Estado de
Direito.
As duas
conferências mundiais sobre direitos humanos, a de
Teerã em 1968, e a de Viena, em 1993, foram
oportunidade para uma reavaliação e um balanço do
caminho percorrido desde a Declaração Universal.
Teerã, em plena guerra fria, serviu para reafirmar
a indivisibilidade e interdependência dos direitos
humanos, a luta contra o apartheid, o racismo e os
resquícios de colonialismo, assim como pela
interrelação entre direitos humanos e os demais
objetivos da ONU, como a paz e o desenvolvimento.
A Conferência
de Viena permitiu a reafirmação, num foro de mais
de 170 países (em contraste com os pouco mais de 50
da Declaração Universal e os 84 de Teerã), da
universalidade dos direitos humanos e da
legitimidade da preocupação internacional com o
tema. A Declaração e o Programa de Ação de Viena
são o pronunciamento internacional mais atual e
completo sobre direitos humanos. Esse complexo
documento reflete a realidade contemporânea em toda
a sua complexidade e revela a natureza da imensa
tarefa de realizar os direitos humanos de maneira
universal em sociedades distintas em suas tradições
culturais e características econômicas e sociais.
O consenso obtido em Viena, em toda a sua
fragilidade, torna possível esperar a superação
das resistências e a afirmação da realizabilidade
dos direitos humanos.
Pretendo
apresentar a seguir uma exposição que visa, em
primeiro lugar, traçar as origens do sistema e
identificar as formas pelas quais veio o mesmo
integrar a agenda internacional. Veremos em seguida
como o Brasil participa de tal sistema, como evolui
em grandes linhas a sua posição, e qual tem sido a
nossa experiência na "prestação de
contas" a respeito de nossa situação neste
campo, com ênfase especial sobre os relatórios
recentemente apresentados ao Comitê de Direitos
Humanos e ao Comitê sobre Eliminação da
Discriminação Racial. Finalmente, examinaremos
como o Brasil contribui para a construção e o
funcionamento do sistema, através de sua presença
nos foros da ONU.
I-
Origens e características principais do sistema
Traçado
este rápido esboço que visou situar o tema no seu
contexto mais amplo, caberia menção às origens do
sistema internacional de proteção dos direitos
humanos, à sua estrutura normativa e de supervisão,
e seus principais componentes. Deixarei de lado, por
limitação de espaço, os importantes sistemas
regionais de direitos humanos, como o interamericano
e o europeu. Bastaria apenas assinalar que, apesar
de complementares, as normas e sistemas de verificação
regional e internacional são independentes, não
podendo invocar-se um em detrimento ou restrição
do outro.
Embora
instrumentos anteriores tenham contemplado certas
categorias de direitos humanos, foi a Carta da ONU
que consagrou, pela primeira vez, como norma de
direito internacional de caráter geral, a promoção
e proteção dos direitos humanos.
As bases
do sistema internacional sobre direitos humanos estão
principalmente assentadas no art.1, par. 3, da
Carta, que destaca os direitos humanos entre os propósitos
e princípios da organização e nos artigos 55 e
56, que estabelecem os compromissos assumidos
reciprocamente entre os membros para a realização
dos objetivos fundamentais no âmbito da cooperação
econômica e social.
A
leitura conjugada destes dispositivos permite
identificar o caráter articulado e interdependente
dos objetivos essenciais da ONU: paz e segurança
internacional, progresso econômico e social e
respeito aos direitos humanos. A promoção conjunta
e equilibrada de cada um destes objetivos é condição
para a harmonia do sistema como um todo.
A
Declaração Universal dos Direitos Humanos foi a
realização mais importante desta primeira fase de
construção do sistema. Associada aos dispositivos
jurídicos da Carta da ONU, a declaração, aprovada
em 1948 sem votos negativos (8 abstenções),
representava a tradução em termos concretos das
obrigações assumidas na Carta. Apesar do caráter
não diretamente vinculante da Declaração, o caráter
solene e quase unânime de sua aprovação e a
reiteração frequente e incontestada de seu valor
transformou-a em instrumento básico de referência
sobre os valores essenciais que todos os Estados estão
obrigados a respeitar. Por outro lado, ao aprovar a
declaração, as Nações Unidas proclamavam que os
direitos humanos eram matéria legítima de preocupação
internacional e, como tal, não podiam ser
considerados matéria de exclusiva competência
nacional, no sentido do art. 2 par. VII da Carta.
A
elaboração de um instrumento jurídico, que desse
caráter expressamente vinculante aos direitos
consagrados na declaração foi tarefa que
naturalmente se mostrou muito mais longa e
trabalhosa. Sua conclusão só se daria em 1966, com
a adoção dos dois pactos internacionais.
A decisão
de separar os pactos em dois instrumentos,
respectivamente sobre direitos civis e políticos e
sobre direitos econômicos, sociais e culturais,
refletia, entre outros fatores, as divergências
ideológicas entre os sistemas capitalista e
socialista, cada um privilegiando os aspectos de sua
preferência. O princípio da indivisibilidade e
interdependência dos direitos humanos seria uma
conquista posterior, promovida em grande parte pelos
países em desenvolvimento.
Qual a
posição do Brasil nesta fase inicial de elaboração
das normas sobre direitos humanos no campo
internacional? Na impossibilidade de realizar
pesquisa mais aprofundada, refiro-me ao Repertório
da Prática Brasileira do Direito Internacional,
de Antonio Augusto Cançado Trindade, e à coletânea
de discursos A palavra do Brasil nas Nações
Unidas, organizada pelo Embaixador Luiz
Felipe Seixas Corrêa, para estabelecer algumas
referências principais.
Segundo
essas fontes, verifica-se que nos pronunciamentos no
plenário da Assembléia Geral predominam, nesta
fase, os temas políticos e jurídicos: paz e
segurança, composição do Conselho de Segurança,
poder de veto dos membros permanentes, interpretação
dos dispositivos da Carta e conveniência de sua
futura reforma, sendo poucas e genéricas as referências
ao trabalho em curso.
O
Embaixador Freitas Valle, representante do Brasil na
IV sessão da Assembléia Geral da ONU (1949),
referiu-se positivamente, à aprovação, no ano
anterior, da Declaração Universal e da Convenção
contra o Genocídio, bem como à perspectiva de
conclusão de um tratado internacional sobre
direitos humanos. Em 1950, o mesmo representante
lamentava a inexistência de um "instrumento prático
que compelisse os Estados a respeitar ou restaurar,
quando violados de alguma forma, os direitos humanos
e as liberdades fundamentais para todos, sem distinção
de raça, sexo, língua e religião."
É nos
trabalhos da III Comissão, encarregada de examinar
os relatórios e projetos emananados da Comissão de
Direitos Humanos, que encontramos manifestações
mais específicas de posições brasileiras. Assim,
Austregésilo de Athayde afirma em 1948, naquele
foro: "Ao dar aos direitos do homem um caráter
internacional, a Carta das Nações Unidas
estabeleceu obrigações jurídicas positivas para
os Estados". "Embora a delegação
brasileira gostasse de ver discutidas e aprovadas
conjuntamente a declaração, o pacto, e as
propostas relativas à implementação, reconhece
ela que, no atual estágio dos trabalhos, somente a
declaração pode ser adotada(...)".
Bem
positiva é também a posição brasileira nestes
anos formadores, com relação ao processo de
instituição do sistema regional americano de
direitos humanos. Surpreendem ainda hoje os termos
da declaração proferida em Bogotá pelo Chanceler
João Neves da Fontoura em 1948, na IX Conferência
Internacional Americana. Não só saudou ele, em
termos inequívocos, a perspectiva de adoção
pioneira da Declaração dos Direitos e Deveres
Internacionais do Homem, como sublinhou que a mesma
equivalia a reconhecer os indivíduos o caráter de
sujeito de direito internacional público. E
acrescentou considerações favoráveis à pronta
criação de uma Corte Internacional de Proteção
aos Direitos Humanos.
Coube a
San Tiago Dantas, chanceler em 1959, propor à V
Reunião de Consulta dos Ministros de Relações
Exteriores da OEA, proposta de resolução sobre a
democracia no continente. O Brasil desejava uma
declaração de termos gerais, baseada em seis princípios:
-
superioridade
da lei sobre os governos;
-
os
governos devem ser o resultado de eleições
livres;
-
a
perpetuação no poder sem prazo determinado é
incompatível com a democracia;
-
os
direitos do indivíduo devem ser reconhecidos
pela lei e protegidos por meios judiciais
eficazes;
-
os
Estados americanos incorporarão ao seu direito
positivo a Declaração Americana dos Direitos e
Deveres do Homem;
-
os
povos do continente cooperarão de maneira solidária
para assegurar condições de progresso ao
regime democrático.
A
realidade política dos anos subsequentes modificou
tais posições . O mundo, o continente, e mesmo
nosso país ingressaram em conturbada fase de
antagonismos e divergências que muito retardaram o
progresso na implementação dos ideais lançados no
pós-guerra. Fortalecem-se as resistências à
realização dos direitos humanos como compromissos
firmes. Nesse clima, e mesmo antes dos anos de
autoritarismo, o Brasil se distancia do tema dos
direitos humanos e apenas se registra a preferência
pela elaboração de dois pactos distintos e a
resistência à incorporação do direito de petição
individual no pacto sobre direitos civis e políticos.
A partir
dos anos setenta, o corpo de normas e declarações
sobre os quais se baseia o sistema mundial de
direitos humanos assume maior consistência. Em 1976
entram em vigor os dois pactos internacionais, que
também incorporam a importante inovação
introduzida pela Convenção sobre a Eliminação de
todas as formas de Discriminação Racial (adotada
em 1965 e em vigor desde 1969) que consiste na criação
de órgão (comitê de peritos independentes) para
monitorar, em todos os Estados partes, a implementação
das obrigações contraídas. A Comissão de
Direitos Humanos das Nações Unidas (CDH) e seu órgão
subsidiário, a Subcomissão de Prevenção da
Discriminação e Proteção das Minorias,
desenvolvem mecanismos extra-convencionais de
verificação da situação dos direitos humanos, e
vão sendo vencidos, na doutrina e na prática, as
interpretações restritivas que visavam, com base
nos argumentos da soberania dos Estados e da jurisdição
interna exclusiva, limitar as normas internacionais
sobre direitos humanos a meros objetivos éticos,
sem força de lei.
O Brasil
apoia e frequentemente estimula o desenvolvimento
destes mecanismos de supervisão dos direitos
humanos, por considerá-los uma forma eficiente de
promover e proteger direitos de forma universal. A
preferência brasileira se dirige particularmente
aos mecanismos temáticos, ou seja, os relatores ou
grupos de trabalho que se dedicam a um problema,
como a tortura, os desaparecimentos forçados ou as
formas contemporâneas de racismo. No tratamento
destes temas, os relatores especiais estabelecem diálogo
com os países, realizam visitas, e podem manifestar
preocupação com situações específicas em países,
recomendando medidas e trazendo o tema à atenção
da Comissão de Direitos Humanos. O caráter temático
dos mandatos, válido para o universo dos países,
assegura sua "não-seletividade".
O Brasil
reconhece a legitimidade de designação de
relatores por países, em casos mais graves. O
mecanismo é, porém, politicamente sensível, e a
CDH ainda não logrou equacionar o problema das
alegações de seletividade e falta de objetividade
na "seleção" dos países para os quais a
Comissão julga necessário designar relator
especial. Tampouco se conseguiu solução para o
obstáculo dos países que rejeitam qualquer
colaboração com o relator, tornando difícil a
obtenção de progressos .
A
escolha dos mecanismos para lidar com as violações
de direitos humanos requer, portanto, cuidadosa
avaliação, de forma a que os instrumentos
utilizados permitam a evolução favorável da situação.
Pesam aqui a análise sobre a realizabilidade
concreta dos direitos humanos numa dada situação e
a compreensão dos fatores que se opõem ou que
favorecem o progresso na direção almejada.
No que
diz respeito a questões referentes ao Brasil, é
denso o diálogo com os mecanismos não
convencionais da Comissão de Direitos Humanos. O
Governo brasileiro vem adotando política que,
partindo do princípio de que os objetivos do exercício
- aperfeiçoar o respeito aos direitos humanos -
coincidem com os do Governo, permite ampla transparência
no acesso a informações.
Deste diálogo,
caberia ressaltar alguns aspectos úteis para a
identificação de obstáculos à realizabilidade
dos direitos humanos no Brasil:
-
Grupo
de Trabalho sobre Desaparecimentos Forçados ou
Involuntários. Destinado a esclarecer, sob o
prisma humanitário, a sorte das vítimas deste
tipo de violação de direitos humanos, os casos
acumulados pelo Brasil diziam respeito, em
grande maioria, a ocorrências do período
autoritário. A adoção da lei 9.140, de
4/12/95, permitiu o encerramento dos casos
antigos. O Grupo de Trabalho considerou exemplar
a lei brasileira para indenização das famílias
das vítimas, não obstante a posição de
algumas ONGs, que mantiveram crítica à extensão
da lei de anistia com relação aos efeitos
penais dos fatos revelados.
-
Relator
sobre execuções sumárias ou arbitrárias. O
Governo brasileiro tem diálogo intenso com este
relator, que se debruça sobre comunicações
referentes a assassinatos ou ameaças ao direito
à vida em que há suspeita de participação,
cumplicidade ou acobertamento por parte de
autoridades policiais. Os casos de particular
gravidade, como os da Candelária, Carandiru,
Eldorado de Carajás, Vigário Geral e
Corumbiara ocasionaram extensa correspondência
com o relator, na qual transparece o empenho do
Governo brasileiro de prestar esclarecimentos
detalhados e precisos sobre as providências em
curso no terreno judiciário, bem como as
medidas tomadas pelo Governo federal - com
destaque para a iniciativa de adoção de leis
com vistas a assegurar a punição dos culpados,
a prevenção de novas ocorrências, a indenização
das vítimas ou de seus familiares e, a proteção
de testemunhas.
-
Relator
sobre a tortura. Com a redemocratização,
cessaram as queixas sobre a existência da
tortura com fins políticos, mas o relator
especial continua a receber alegações de que a
polícia usa a tortura com frequência. A aprovação
de lei que tipifica o crime de tortura e as
atitudes firmes do Presidente da República e do
Secretário Nacional de Direitos Humanos no
combate a essa prática odiosa são passos
importantes para o maior rigor na punição e
prevenção deste crime.
-
Visitaram
o Brasil os relatores sobre venda, prostituição
e pornografia infantil, sobre a violência
contra a mulher, e sobre formas contemporâneas
de racismo, realizando programação que lhes
permitiu amplo e irrestrito contato com
autoridades, ONGs, e diferentes setores de opinião.
Os respectivos relatórios contêm avaliação
da situação brasileira, do ponto de vista do
mandato do relator, dos problemas enfrentados e
das soluções em curso. O exercício tem saldo
positivo, como demonstração da transparência
e do desejo do Brasil de contribuir para um
exame coletivo, a nível internacional, destas
questões. É claro que uma curta viagem
dificilmente permite aos relatores a análise
aprofundada e precisa de problemas tão
complexos, em sociedade que pouco conhecem, o
que às vezes resulta em certas conclusões ou
recomendações superficiais e pouco ajustadas
à realidade. O Brasil não tem deixado de fazer
tais observações aos relatores quando do
debate de seus relatórios durante a CDH.
II-
O Brasil e os mecanismos de controle dos tratados
internacionais
Com a
redemocratização, entre 1989 e 1992, o Brasil
aderiu aos principais tratados internacionais de
proteção dos direitos humanos - os dois pactos
internacionais sobre direitos humanos, a convenção
contra a tortura, a convenção dos direitos da
criança - e à Convenção Americana de Direitos
Humanos e à Convenção Interamericana para
prevenir e punir a Tortura. Estes instrumentos
vieram somar-se aos tratados de que o Brasil se
tornara parte anteriormente, tais como a convenção
contra a discriminação racial, a convenção
contra a discriminação contra mulher, a convenção
sobre o estatuto dos refugiados e seu protocolo
adicional, numerosas convenções da OIT, algumas
das quais versam sobre matéria afim aos direitos
humanos. O Brasil tornou-se um país plenamente
inserido nos sistemas internacional e interamericano
de proteção e promoção dos direitos humanos. O
processo é continuado, e o Brasil não só aderiu
recentemente a outros instrumentos jurídicos de
proteção dos direitos humanos no âmbito
interamericano, como tem emprestado seu apoio à
negociação de novos instrumentos (protocolo
facultativo à convenção contra a tortura,
protocolos adicionais à convenção sobre os
direitos da criança).
As
obrigações resultantes destas convenções
comportam medidas na área legislativa,
administrativa e política de considerável importância.
O Ministério das Relações Exteriores é o
interlocutor oficial dos órgãos de supervisão das
convenções de direitos humanos, e lhe compete a
apresentação dos relatórios a esses comitês.
Trata-se
de tarefa complexa, dada estrutura federativa
descentralizada, a extensão e população do país,
a natureza das questões a serem retratadas e a
multiplicidade dos órgãos envolvidos, além das
mudanças políticas ocorridas. Essas dificuldades
geraram atrasos na preparação dos relatórios. O
relatório inicial referente ao Pacto sobre direitos
civis e políticos, concluído em 1994, foi produto
de colaboração entre o Governo e uma importante
instituição acadêmica, o Núcleo de Estudos da
Violência da Universidade de São Paulo. Logrou-se
assim que o relatório produzisse um retrato fiel da
situação brasileira, visto não apenas do ângulo
do Governo mas também daquele da sociedade civil. O
relatório foi publicado pela Fundação Alexandre
de Gusmão.
Foi possível,
igualmente, apresentar, em 1996, o décimo relatório
periódico ao Comitê sobre a Eliminação da
Discriminação Racial. Trata-se também de fato
marcante, pois o Brasil havia deixado de apresentar
os relatórios devidos por vários anos
consecutivos. O novo relatório se produziu sob a
influência de respeitável revisão da postura
brasileira sobre o problema da discriminação
racial, promovida, entre outros, pelo próprio
Presidente Fernando Henrique Cardoso, ao admitir que
a realidade brasileira neste campo não correspondia
à imagem de perfeita harmonia com que gerações de
brasileiros nos haviamos comprazido. O relatório
mostra que é necessário, também em nosso país, e
apesar dos inúmeros aspectos positivos de nossa
situação, cuidar para que o fenômeno da
discriminação e do racismo sejam combatidos com
determinação.
A
consideração dos dois relatórios pelos
respectivos comitês, em 1996, assinalou a
definitiva incorporação do Brasil ao conjunto de
países que mantém com a comunidade internacional
um diálogo sereno, franco e objetivo sobre seus
problemas de direitos humanos. É com este espírito
que considero relevante resumir alguns aspectos do
exercício deste diálogo.
O Relatório
inicial do Brasil referente ao Pacto sobre Direitos
Civis e Políticos foi examinado pelo Comitê de
Direitos Humanos nos dias 10 e 11 de julho de 1996.
A delegação brasileira, cuja chefia tive a honra
de compartilhar com o Dr. José Gregori, fez extensa
declaração inicial, aduzindo informações sobre
as medidas adicionais tomadas pelo Governo
brasileiro desde a data da elaboração do relatório
(1994) para dar cumprimento aos dispositivos do
pacto. Dentre essas medidas cabe ressaltar: a lei de
reconhecimento dos desaparecidos, o então projeto
de lei sobre a transferência para a justiça civil
da competência para julgar policiais militares
acusados de violações de direitos humanos, o
projeto de lei (sancionado) sobre a tipificação
penal da tortura, a reestruturação do Conselho de
Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (órgão paritário
governo-sociedade para a proteção dos direitos
humanos), a criação de GERTRAF (Grupo executivo
para repressão do trabalho forçado) e, em
especial, o lançamento do Programa Nacional de
Direitos Humanos, pelo qual o Brasil dá cumprimento
pioneiro a uma das recomendações da Conferência
de Viena.
Nas
conclusões e recomendações adotadas (doc. CCPR/C/79/Add.66,
de 24/7/96), o Comitê elogiou o relatório,
destacando sua elaboração aberta a consultas com
órgãos da sociedade, e a franqueza e abrangência
do conteúdo. O Comitê agradeceu também a
detalhada declaração introdutória, e reconheceu o
engajamento do Governo federal em adotar medidas
para assegurar o respeito às obrigações contraídas.
O Comitê acolheu favoravelmente as medidas
legislativas adotadas recentemente, em particular o
lançamento do Programa Nacional de Direitos
Humanos, a reestruturação do CDDPH, a criação da
Defensoria Pública e as medidas tendentes a
permitir que o Ministério Público Federal avoque
à Justiça federal casos de violações de direitos
humanos.
As
preocupações manifestadas pelo Comitê e as
recomendações formuladas ao Governo brasileiro
coincidem, em muitos aspectos, com os diagnósticos
feitos pelas próprias autoridades federais, e estão
refletidas também no Programa Nacional de Direitos
Humanos.
Caberia
uma referência sintética ao resultado das deliberações
do Comitê. Um dos aspectos mais significativos foi
a da relação entre o sistema federativo da
Constituição brasileira e o cumprimento das normas
do pacto. A autonomia dos Estados no que diz
respeito à organização da polícia e ao sistema
judicial, segundo o Comitê, é um fator que conduz
a deficiências e falta de uniformidade na aplicação
dos dispositivos do pacto no Brasil. Apesar de seus
esforços, o Governo federal não tem conseguido,
segundo a análise do Comitê, vencer esse obstáculo.
Algumas unidades da Federação não têm exercido
com o rigor desejável suas atribuições de
prevenir as violações de direitos humanos e punir
os autores destes crimes. O Comitê dedicou grande
atenção aos possíveis meios para superar tais
obstáculos. Os peritos interessaram-se pelas
medidas relatadas pela delegação brasileira
tendentes a reforçar os poderes do Ministério Público
e do CDDPH, bem como pelo projeto de emenda
constitucional relativo à federalização dos
crimes contra direitos humanos, assim como pela
transferência para a justiça ordinária do
julgamento dos crimes cometidos por policiais
militares. É significativa a coincidência entre os
pontos assinalados pelo Comitê e aqueles que estão
sendo objeto de iniciativas governamentais e de
amplo debate nacional, entre os quais se destaca a
questão da reforma do sistema policial brasileiro.
O 10º
Relatório Periódico referente ao ICERD foi
examinado pelo Comitê sobre a Eliminação da
Discriminação Racial (CERD) em agosto de 1996. Os
membros do CERD saudaram a retomada do diálogo com
o Governo brasileiro após mais de nove anos de
interrupção e também elogiaram a franqueza e
objetividade do relatório.
Também
neste caso a delegação brasileira, de que fazia
parte o Professor Helio Santos, coordenador do grupo
interministerial para a valorização da população
negra, forneceu informações adicionais, entre as
quais a referente aos objetivos e trabalhos
desenvolvidos por aquele órgão que, entre outras
políticas, examina a possibilidade de adoção de
medidas afirmativas para a promoção daquela população.
Com a
apresentação e sustentação destes dois relatórios
o Governo brasileiro demonstrou cabalmente sua
determinação de dar cumprimento aos compromissos
assumidos ao aderir aos respectivos instrumentos
internacionais.
III-
O Brasil nos foros internacionais sobre direitos
humanos. Comissão de Direitos Humanos. Assembléia
Geral das N.U. Conferência de Viena
A volta
ao regime democrático e a adesão aos instrumentos
internacionais de direitos humanos completaram as
condições para que o Brasil dos anos 90
reconhecesse explícitamente os direitos humanos
como tema legítimo de preocupação internacional,
consoante os termos da Declaração de Viena, e
atuasse com plenitude e de maneira construtiva nos
foros internacionais e regional de direitos humanos.
A
participação do Governo brasileiro se dá,
primordialmente, através de nossa presença nos
foros internacionais e regionais que tratam da matéria,
onde advogamos o respeito a normas substantivas e
processuais capazes de garantir a objetividade e
imparcialidade dos procedimentos de verificação. O
Brasil atribui importância fundamental à defesa da
democracia e dos direitos humanos no quadro
regional, contribuindo para fortalecer aqueles
valores no âmbito das instituições
interamericanas, e nos grupos de concertação, como
o Grupo do Rio, e mecanismos de integração como o
Mercosul.
Na
Comissão de Direitos Humanos da ONU, que tive o
privilégio de presidir em 1996, o Brasil desempenha
papel de destaque, graças ao apoio que empresta ao
desenvolvimento das normas e dos mecanismos sobre
direitos humanos. A sensibilidade do Brasil para os
problemas e dificuldades específicos dos países em
desenvolvimento qualificam-no para operar, com frequência,
como ponte entre estes e os países ocidentais.
O
Brasil, e em grande medida a América Latina em seu
conjunto, se apresenta assim como elemento
moderador, capaz de contribuir, sem paternalismo ou
condescendência, para a busca de soluções que
propiciem o progresso dos direitos humanos, sem
confrontações desnecessárias.
Temos
buscado contribuir para o aperfeiçoamento e a
racionalização dos trabalhos da Comissão de
Direitos Humanos. Participamos da apresentação de
importantes iniciativas na Comissão, como a que
resultou na aprovação de resolução sobre a abolição
gradual da pena de morte e o respeito às normas que
limitam a sua aplicação, a de criação de
mecanismo para a proteção dos direitos dos
trabalhos migrantes, e a que criou o relator
especial sobre formas contemporâneas de racismo e
xenofobia. O Brasil foi o promotor da resolução
sobre o fortalecimento do Estado de direito,
iniciativa recolhida na Declaração e Programa de Ação
de Viena, e que busca criar formas mais eficazes de
apoio aos países em desenvolvimento em seus esforços
para garantirem os direitos humanos. A delegação
brasileira tem contribuído também ao avanço para
a elaboração de uma estratégia para a implementação
do direito ao desenvolvimento, tema ao qual
dedicamos especial atenção.
Dentro
desse espírito foi possível à delegação
brasileira ocupar lugar de destaque na Conferência
Mundial sobre Direitos Humanos (Viena, 1993), na
qual o Brasil exerceu a presidência do Comitê de
Redação e contribuiu, de maneira decisiva, para
desbloquear as quase intransponíveis dificuldades
políticas que pareciam inviabilizar o documento
final. O Brasil também deu grande contribuição,
no ano seguinte, à negociação na Assembléia-Geral
das N.U. que resultou na criação do cargo de Alto
Comissário para Direitos Humanos, dando seguimento
ao Programa de Ação de Viena.
IV.
Conclusões
Plenamente
inserido no sistema internacional dos direitos
humanos, o Brasil contribui para a sua evolução e
aperfeiçoamento, ao mesmo tempo em que o sistema
internacional, através de suas normas e mecanismos
de controle, favorece o aprimoramento das normas e
instituições nacionais neste domínio - há uma
relação interativa e construtiva. A primazia cabe,
sem dúvida, ao processo interno e é no âmbito da
sociedade brasileira e de suas instituições políticas
que devemos buscar compreender e vencer resistências
e encontrar os caminhos que permitam realizar os
direitos humanos de forma duradoura no Brasil. Nossa
bússola é a compreensão da inextricável
interdependência entre desenvolvimento, democracia
e respeito aos direitos humanos.
Bem
positiva é também a posição brasileira nestes
anos formadores, com relação ao processo de
instituição do sistema regional americano de
direitos humanos. Surpreendem ainda hoje os termos
da declaração proferida em Bogotá pelo Chanceler
João Neves da Fontoura em 1948, na IX Conferência
Internacional Americana. Não só saudou ele, em
termos inequívocos, a perspectiva de adoção
pioneira da Declaração dos Direitos e Deveres
Internacionais do Homem, como sublinhou que a mesma
equivalia a reconhecer os indivíduos o caráter de
sujeito de direito internacional público. E
acrescentou considerações favoráveis à pronta
criação de uma Corte Internacional de Proteção
aos Direitos Humanos.
Coube a
San Tiago Dantas, chanceler em 1959, propor à V
Reunião de Consulta dos Ministros de Relações
Exteriores da OEA, proposta de resolução sobre a
democracia no continente. O Brasil desejava uma
declaração de termos gerais, baseada em seis princípios:
-
superioridade
da lei sobre os governos;
-
os
governos devem ser o resultado de eleições
livres;
-
a
perpetuação no poder sem prazo determinado é
incompatível com a democracia;
-
os
direitos do indivíduo devem ser reconhecidos
pela lei e protegidos por meios judiciais
eficazes;
-
os
Estados americanos incorporarão ao seu direito
positivo a Declaração Americana dos Direitos e
Deveres do Homem;
-
os
povos do continente cooperarão de maneira solidária
para assegurar condições de progresso ao
regime democrático.
A
realidade política dos anos subsequentes modificou
tais posições . O mundo, o continente, e mesmo
nosso país ingressaram em conturbada fase de
antagonismos e divergências que muito retardaram o
progresso na implementação dos ideais lançados no
pós-guerra. Fortalecem-se as resistências à
realização dos direitos humanos como compromissos
firmes. Nesse clima, e mesmo antes dos anos de
autoritarismo, o Brasil se distancia do tema dos
direitos humanos e apenas se registra a preferência
pela elaboração de dois pactos distintos e a
resistência à incorporação do direito de petição
individual no pacto sobre direitos civis e políticos.
A partir
dos anos setenta, o corpo de normas e declarações
sobre os quais se baseia o sistema mundial de
direitos humanos assume maior consistência. Em 1976
entram em vigor os dois pactos internacionais, que
também incorporam a importante inovação
introduzida pela Convenção sobre a Eliminação de
todas as formas de Discriminação Racial (adotada
em 1965 e em vigor desde 1969) que consiste na criação
de órgão (comitê de peritos independentes) para
monitorar, em todos os Estados partes, a implementação
das obrigações contraídas. A Comissão de
Direitos Humanos das Nações Unidas (CDH) e seu órgão
subsidiário, a Subcomissão de Prevenção da
Discriminação e Proteção das Minorias,
desenvolvem mecanismos extra-convencionais de
verificação da situação dos direitos humanos, e
vão sendo vencidos, na doutrina e na prática, as
interpretações restritivas que visavam, com base
nos argumentos da soberania dos Estados e da jurisdição
interna exclusiva, limitar as normas internacionais
sobre direitos humanos a meros objetivos éticos,
sem força de lei.
O Brasil
apoia e frequentemente estimula o desenvolvimento
destes mecanismos de supervisão dos direitos
humanos, por considerá-los uma forma eficiente de
promover e proteger direitos de forma universal. A
preferência brasileira se dirige particularmente
aos mecanismos temáticos, ou seja, os relatores ou
grupos de trabalho que se dedicam a um problema,
como a tortura, os desaparecimentos forçados ou as
formas contemporâneas de racismo. No tratamento
destes temas, os relatores especiais estabelecem diálogo
com os países, realizam visitas, e podem manifestar
preocupação com situações específicas em países,
recomendando medidas e trazendo o tema à atenção
da Comissão de Direitos Humanos. O caráter temático
dos mandatos, válido para o universo dos países,
assegura sua "não-seletividade".
O Brasil
reconhece a legitimidade de designação de
relatores por países, em casos mais graves. O
mecanismo é, porém, politicamente sensível, e a
CDH ainda não logrou equacionar o problema das
alegações de seletividade e falta de objetividade
na "seleção" dos países para os quais a
Comissão julga necessário designar relator
especial. Tampouco se conseguiu solução para o
obstáculo dos países que rejeitam qualquer
colaboração com o relator, tornando difícil a
obtenção de progressos .
A
escolha dos mecanismos para lidar com as violações
de direitos humanos requer, portanto, cuidadosa
avaliação, de forma a que os instrumentos
utilizados permitam a evolução favorável da situação.
Pesam aqui a análise sobre a realizabilidade
concreta dos direitos humanos numa dada situação e
a compreensão dos fatores que se opõem ou que
favorecem o progresso na direção almejada.
No que
diz respeito a questões referentes ao Brasil, é
denso o diálogo com os mecanismos não
convencionais da Comissão de Direitos Humanos. O
Governo brasileiro vem adotando política que,
partindo do princípio de que os objetivos do exercício
- aperfeiçoar o respeito aos direitos humanos -
coincidem com os do Governo, permite ampla transparência
no acesso a informações.
Deste diálogo,
caberia ressaltar alguns aspectos úteis para a
identificação de obstáculos à realizabilidade
dos direitos humanos no Brasil:
-
Grupo
de Trabalho sobre Desaparecimentos Forçados ou
Involuntários. Destinado a esclarecer, sob o
prisma humanitário, a sorte das vítimas deste
tipo de violação de direitos humanos, os casos
acumulados pelo Brasil diziam respeito, em
grande maioria, a ocorrências do período
autoritário. A adoção da lei 9.140, de
4/12/95, permitiu o encerramento dos casos
antigos. O Grupo de Trabalho considerou exemplar
a lei brasileira para indenização das famílias
das vítimas, não obstante a posição de
algumas ONGs, que mantiveram crítica à extensão
da lei de anistia com relação aos efeitos
penais dos fatos revelados.
-
Relator
sobre execuções sumárias ou arbitrárias. O
Governo brasileiro tem diálogo intenso com este
relator, que se debruça sobre comunicações
referentes a assassinatos ou ameaças ao direito
à vida em que há suspeita de participação,
cumplicidade ou acobertamento por parte de
autoridades policiais. Os casos de particular
gravidade, como os da Candelária, Carandiru,
Eldorado de Carajás, Vigário Geral e
Corumbiara ocasionaram extensa correspondência
com o relator, na qual transparece o empenho do
Governo brasileiro de prestar esclarecimentos
detalhados e precisos sobre as providências em
curso no terreno judiciário, bem como as
medidas tomadas pelo Governo federal - com
destaque para a iniciativa de adoção de leis
com vistas a assegurar a punição dos culpados,
a prevenção de novas ocorrências, a indenização
das vítimas ou de seus familiares e, a proteção
de testemunhas.
-
Relator
sobre a tortura. Com a redemocratização,
cessaram as queixas sobre a existência da
tortura com fins políticos, mas o relator
especial continua a receber alegações de que a
polícia usa a tortura com frequência. A aprovação
de lei que tipifica o crime de tortura e as
atitudes firmes do Presidente da República e do
Secretário Nacional de Direitos Humanos no
combate a essa prática odiosa são passos
importantes para o maior rigor na punição e
prevenção deste crime.
-
Visitaram
o Brasil os relatores sobre venda, prostituição
e pornografia infantil, sobre a violência
contra a mulher, e sobre formas contemporâneas
de racismo, realizando programação que lhes
permitiu amplo e irrestrito contato com
autoridades, ONGs, e diferentes setores de opinião.
Os respectivos relatórios contêm avaliação
da situação brasileira, do ponto de vista do
mandato do relator, dos problemas enfrentados e
das soluções em curso. O exercício tem saldo
positivo, como demonstração da transparência
e do desejo do Brasil de contribuir para um
exame coletivo, a nível internacional, destas
questões. É claro que uma curta viagem
dificilmente permite aos relatores a análise
aprofundada e precisa de problemas tão
complexos, em sociedade que pouco conhecem, o
que às vezes resulta em certas conclusões ou
recomendações superficiais e pouco ajustadas
à realidade. O Brasil não tem deixado de fazer
tais observações aos relatores quando do
debate de seus relatórios durante a CDH.
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