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Defesa dos Direitos Humanos: Sistemas Regionais
(Ensaio do Dr. Hélio Bicudo publicado na REVISTA ESTUDOS AVANÇADOS, nº 47, jan-abr.2003, publicação quadrimenstral do INSTITUTO DE ESTUDOS AVANÇADOS da USP.)


1. DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS. O MARCO ZERO E OS PACTOS SUBSEQÜENTES
Os sistemas de promoção e proteção dos Direitos Humanos se foram instituindo à medida que os Estados dos continentes europeu, americano e africano assumiam a relevância dos direitos humanos, como fundamento para a construção e sobrevivência de um Estado Democrático.

É o que se pode ler nas atas dos trabalhos que, na Europa, nas Américas ou na África, levaram à elaboração das chamadas Cartas de Direitos Humanos. Depois, vieram as Convenções especificamente dirigidas à proteção e defesa desses direitos, primeiro, mediante o funcionamento das instituições dos estados partes e, em seguida e subsidiariamente, falhando estas ou se tornando omissas, pelos sistemas regionais de defesa dos direitos humanos.

A Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10 de dezembro de 1948 – declaração de princípios em forma solene, estava destinada, desde a sua origem, a ser completada por outros textos. Assim se lhe seguiram, depois de difícil elaboração, os dois pactos relativos aos direitos do homem, adotados pela Assembléia Geral das Nações Unidas, em 16 de novembro de 1966. Posteriormente, tivemos o Pacto Internacional sobre direitos econômicos, sociais e culturais. O Pacto Internacional sobre direitos civis e políticos entrou em vigor em 23 de março de 1976. O Protocolo Facultativo, que se lhe seguiu, foi adotado no mesmo dia e nessa mesma data entrou, igualmente, em vigor. O Pacto foi ainda completado por um segundo Protocolo Facultativo, de 15 de novembro de 1989, visando a abolir a pena de morte, o qual entrou em vigor em 11 de junho de 1991. O conjunto desses textos forma o que costumamos chamar de “carta internacional dos direitos do homem”. Ela pressupõe uma unidade de inspiração e de conteúdo dos textos que, em realidade, não existiu.

Assim, os pactos de 1966 e dos anos seguintes traduzem outras preocupações além daquelas da Declaração Universal de 1948 e contêm uma inflexão da ideologia dos direitos do homem em busca de maiores espaços. Resta recordar que a Assembléia Geral das Nações Unidas contava, naquele ano, com 58 membros. Em 1966, esse número subiu para 122. A ideologia majoritária não se pode, portanto, considerar a mesma.

Enquanto a Declaração Universal se esforça por conciliar concepções liberais e marxistas entre liberdades formais e reais, “esquecendo que se o nazismo ignorou as primeiras, é em nome das segundas que o estalinismo suprimiu a todas”, os pactos consagraram um fenômeno de coletivização dos direitos do homem. A Declaração Universal é inteiramente voltada para a pessoa: os direitos humanos são, antes de tudo, os direitos do indivíduo e a Declaração é endereçada aos indivíduos e não aos Estados (“Todo o indivíduo, ou toda a pessoa, tem direito...”). Os pactos são dirigidos aos Estados e não aos indivíduos (“Os Estados se obrigam à ...”) e a dimensão social do indivíduo é a pedra de toque a ser considerada. O homem não pode encontrar a realização dos seus direitos senão no interior de uma sociedade livre de toda contenção externa ( colonização) ou interna (opressão): o interesse do indivíduo se confunde com aquele da sociedade onde vive.

2. OS TRÊS SISTEMAS HODIERNOS
Contamos, hoje, com três sistemas distintos, com os mesmos objetivos, mas com práticas diversas. Todos eles, entretanto, buscando a preeminência dos Direitos Humanos, segundo as regras internacionalmente admitidas. Permitem, assim, que entidades instituídas pela vontade dos povos atuem para corrigir desvios no campo desses direitos, consentidos em ações ou omissões dos Estados, para restabelecer o Direito e a Justiça. A Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, que, aliás, precede a Declaração Universal, tem como sujeito a pessoa humana (“Todo ser humano tem direito...”). Por igual, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos e os pactos e protocolos que se lhe seguiram, são endereçados aos Estados e não aos indivíduos (“Os Estados partes nesta Convenção... Os Estados Americanos, conscientes do disposto na Convenção...).
Em verdade, a proclamação regional dos direitos do homem, circunscrita de início à Europa e à América, alcançando depois a África e até mesmo o mundo árabe-islâmico, é obra das organizações regionais concernentes: o Conselho da Europa, a Organização dos Estados Americanos, a Organização da Unidade Africana e a Liga dos Estados Árabes. Diga-se de passagem, que o continente asiático apresenta a particularidade, contrariamente às outras regiões, de não ter adotado nenhuma convenção regional e nenhum mecanismo institucional destinado a promover e a proteger os direitos humanos, sobre uma base regional ou sub-regional.

Se olharmos para o nosso hemisfério, o que aqui se elaborou em nada difere daquilo que se debateu nos países membros da União Africana. Esses países preocuparam-se com a concretização de um programa comum que obtivesse, no continente africano (respeitando, naturalmente, as grandes distâncias étnicas, ali existentes), a integração de seus povos na linha de um ideal comum de solidariedade. Destarte, erigiram a pessoa humana como a principal preocupação ética, acima dos governos ou das religiões ou mitos cultuados na região.

A. O SISTEMA EUROPEU
Do ponto de vista europeu, o Conselho da Europa e a Convenção Européia de salvaguarda dos direitos do homem e das liberdades fundamentais expressam a vontade de promover e defender a liberdade e a democracia, vontade essa que permeia o Estatuto do Conselho da Europa. Segundo preâmbulo desse Estatuto, os Estados signatários estão, sem dúvida, ligados aos valores morais e espirituais que são o patrimônio comum de seus povos e que estão na origem dos princípios de liberdade individual, de liberdade política e da preeminência do Direito, sobre os quais se funda a verdadeira Democracia. O artigo 3º do Estatuto precisa que todo membro do Conselho da Europa reconheça o princípio da preeminência do Direito e o princípio em virtude do qual toda a pessoa sob sua jurisdição deve gozar dos direitos do homem e das liberdades fundamentais. Esse liame estabelecido entre o respeito dos direitos do homem e regime democrático aparece reforçado pela Convenção Européia, que entrou em vigor em 3 de setembro de 1953 e que se constitui no primeiro tratado multilateral concluído no quadro do Conselho da Europa.

A adesão, após 1989 dos Estados “pós comunistas” ao Conselho da Europa traz sua subordinação à prevalência do Estado de Direito, ao regime democrático e parlamentar “verdadeiro” e à garantia dos direitos do homem.
Contudo, o alargamento do Conselho da Europa operado em benefício de Estados, como a Armênia, Azerbaijão, Bielo-Rússia, Bósnia-Herzegóvina e a Geórgia, que se mostram incapazes de respeitar o engajamento fundamental inscrito no aludido artigo 3º do Estatuto do Conselho da Europa, determina uma diminuição de seus padrões, circunstância que põe em causa a própria credibilidade do sistema europeu.

Anunciando que a União respeita os direitos fundamentais, como são garantidos pela Convenção Européia e que bem assim resultam das tradições constitucionais comuns aos Estados-membros, como dos princípios gerais do direito consuetudinário, o tratado sobre a União Européia, de 7 de fevereiro de 1992, nada mais faz do que constitucionalizar a construção pretoriana operada pela Corte de Justiça das Comunidades Européias, em matéria de respeito dos direitos do homem.
O tratado de Amsterdã, de 2 de outubro de 1997, que entrou em vigor em 1º de maio de 1999, traz uma revisão do Tratado da União Européia e do Tratado que institui a comunidade européia. Ele inscreve a questão dos direitos fundamentais em uma outra perspectiva. Em primeiro lugar, o Tratado da União Européia revisado, ao afirmar que a União está fundada sobre os princípios da liberdade, da democracia, do respeito aos direitos do homem e das liberdades fundamentais, como do Estado de Direito, princípios que são comuns aos Estados membros, erige os três princípios (respeito dos direitos do homem, democracia, preeminência dos direitos) que formam “o patrimônio comum” de valores, segundo o Estatuto do Conselho da Europa e a Convenção Européia, considerados verdadeiros princípios constitucionais da União Européia, do que resulta que seu respeito se torna uma condição estatutária de adesão à União. Em segundo lugar, o Tratado de Amsterdã contém uma garantia dos direitos fundamentais que, até esse instante, fazia falta: a garantia jurisdicional e política. Ademais, o Tratado de Amsterdã procede à consolidação normativa dos direitos fundamentais.

O sistema europeu sofreu profunda modificação. Funcionando, anteriormente, com uma Comissão e uma Corte, com a emenda adotada pelo protocolo de 11 de maio de 1994, que entrou em vigor em 1º de novembro de 1998, passou a contar com apenas uma Corte, reestruturando-se os mecanismos originários. O protocolo 11 jurisdicionaliza o sistema de proteção, permitindo o ingresso direto das vítimas à Corte.

Essa jurisdicionalização total do processo de proteção – necessariamente acompanhada pelo direito de qualquer indivíduo, que se encontre em um dos Estados parte, a demandar diretamente contra os Estados ante um Tribunal internacional – entrou em vigor na Europa, ao mesmo tempo em que ocorriam avanços substanciais no processo de unificação de alguns países, tais como a eliminação total de barreiras impositivas e a adoção de uma moeda única. Entretanto, a incorporação dos países do Este ao sistema europeu determinou grandes tensões como conseqüência da grande avalanche de casos, que passaram a ser apresentados, a tal ponto que o Secretário Geral da Corte Européia, falando por ocasião dos atos comemorativos dos 30 anos da Convenção Americana de Direitos Humanos, celebrados em Novembro de 1999, em São José da Costa Rica, assinalou que o sistema europeu de proteção e defesa dos Direitos Humanos, encontrava-se em crise. Em verdade, já no Seminário sobre o sistema interamericano de defesa e proteção dos Direitos Humanos, que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos fez realizar em Washington, em 1996, os participantes europeus questionavam a sabedoria de reduzir-se a flexibilidade do sistema europeu para abri-lo a tensões, até então, ignoradas. Valorizavam altamente o sistema dos órgãos em nosso hemisfério, que permite um filtro de petições, que de outro modo perturbariam o melhor funcionamento do sistema.
É certo que o mecanismo europeu de controle sofria, desde sua origem, de duas deficiências: sua complexidade tornava o procedimento de controle pouco visível para os peticionários; seu caráter híbrido, meio jurisdicional, meio político, afetava sua credibilidade.

A verdade, entretanto, é que o sistema inicial adotado (Comissão, Corte, Comitê de Ministros do Conselho da Europa) não se adaptou ao volume de denúncias individuais apresentadas.

Vejamos: de 1955 (data de entrada em funcionamento da Comissão) a 31 de Outubro de 1998, foram registrados 44.056 pedidos na Comissão, dos quais 5006 no ano de 1988. Se a média anual de pedidos registrados é de 444, de 1975 a 1984, ela atinge 3.102, de 1990 a 1998; o ano de 1988 vê o limite de 1000 petições anuais ser ultrapassado sucessivamente, nos anos de 1993, 1995, 1996 e 1998, com 2000, 3000, 4000 e 5000 petições, respectivamente.

Segundo informa o Prof. Cançado Trindade, presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos, a Corte Européia se vê, hoje em dia, às voltas com cerca de 26.000 demandas em diferentes níveis de processamento. O protocolo suprime as cláusulas facultativas de aceitação do direito de recurso individual e da jurisdição da Corte e abre, de pleno direito ao indivíduo, o acesso ao órgão judiciário de controle. Em seguida, procede a uma unificação orgânica ao substituir os três órgãos de decisões existentes (Comissão, Corte e Comitê de Ministros do Conselho da Europa) por um só órgão – permanente – a Corte Européia dos Direitos do Homem.

Uma Câmara, constituída de 3 juizes, módulo ordinário de julgamento da Corte, passa a exercer as funções, precedentemente, atribuídas à Comissão: exame de admissibilidade, estabelecimento dos fatos, conciliação e decisão de mérito.
O procedimento, cuja transparência é, todavia, relativa, é o seguinte: filtrada por um Comitê de 3 juízes (que, por unanimidade, poderá declarar a petição inadmissível), a petição individual será encaminhada a uma Câmara de 7 juizes, que decidirá sobre sua admissibilidade e, depois de uma tentativa de conciliação, decidirá sobre o mérito. Essa decisão, porém, não é definitiva, pois uma das partes pode pedir que o processo seja enviado a uma grande Câmara, de 17 juízes. Esse reexame está, porém, subordinado à aceitação de um colégio de 5 juízes e só poderá ter lugar, excepcionalmente, quando se tratar, por exemplo, de uma questão grave de interpretação ou de aplicação da Convenção.

A reestruturação, como se vê, deixa que subsista a diversidade funcional que existia (admissibilidade, conciliação, duplo exame do mérito) e não muda, fundamentalmente, o procedimento.

Essas alterações tiveram por conseqüência principal a exclusão do Comitê de Ministros como órgão de decisão. Ele continua a fiscalizar a execução das decisões da Corte, mas deixa a jurisdição do sistema de controle. Extingue-se a Comissão, ou seja, o órgão que permitia uma filtragem dos procedimentos, antes de considerá-los ou de submetê-los à Corte.
A Corte Européia conta, na sua organização atual, com 41 juízes e cerca de 50 advogados. Uma estrutura que parecia atender aos reclamos de uma maior celeridade e eficiência está, entretanto, comprometida por um verdadeiro risco de explosão, acrescido pela extensão já mencionada da Convenção Européia aos países pós-comunistas, com a perspectiva de um formidável fluxo de novas demandas individuais, pois ela terá, doravante, cerca de 750 milhões de jurisdicionados virtuais.

B. O SISTEMA AMERICANO
O continente americano nos dá o segundo exemplo de regionalização dos direitos humanos, no âmbito da OEA e da cooperação interamericana, ao instituir um mecanismo de proteção sofisticado, fortemente inspirado no modelo europeu. A qualidade do discurso de proclamação contrasta – deve-se afirmar –singularmente, com a situação real dos direitos humanos na América Central ou na América do Sul.

A carta constitutiva da OEA foi adotada em Bogotá, em 30 de abril de 1948, pela IX Conferência Internacional Americana (depois emendada pelo Protocolo de Buenos Aires, de 27 de fevereiro de 1967). O preâmbulo da Carta afirma que “o verdadeiro sentido da solidariedade americana e de boa vizinhança não se pode conceber senão consolidando, no continente e no quadro das instituições democráticas, um regime de liberdade individual e de justiça social baseado no respeito aos direitos fundamentais do homem”. A carta prevê, por outro lado, a criação de uma Comissão Interamericana dos Direitos do Homem, órgão consultivo da OEA sobre a matéria.

A convenção americana relativa aos direitos do homem, de 22 de novembro de 1969, adotada pelos Estados membros da OEA em São José (Costa Rica), entrou em vigor em 18 de julho de 1978, com o depósito do 11º instrumento de ratificação. Vinte e cinco estados ratificaram a Convenção até 1º de julho de 1998. Hoje são 35 Estados. Convém ressaltar que os Estados Unidos e o Canadá não ratificaram até hoje a Convenção, questão que está na ordem do dia das reuniões, em sede das Américas, segundo o princípio da universalidade dos Direitos Humanos. É bem verdade que nos termos da Convenção de Viena sobre o direito dos tratados, os países signatários de um tratado, mesmo que não o tenham ratificado, devem abster-se de qualquer ato contrário a seu objeto e propósito, até que tenham decidido anunciar sua intenção de não tornar-se parte do tratado. No caso, apesar de os Estados Unidos da América não serem parte da convenção de Viena, o Departamento de Estado Americano a reconhece como texto básico, na área de tratados e atos processuais. Segundo a premissa de que a reserva é incompatível com o objeto e a finalidade de um tratado e que os Estados Unidos da América não são parte da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, o Departamento de Estado desse país entende que as normas da Convenção de Viena se constituem numa declaração do direito internacional costumeiro e, nesse caso, devem ser reconhecidas. Isto porque, segundo, ainda, a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, deve-se reconhecer a importância progressiva dos tratados como fonte do direito internacional e como meio do desenvolvimento pacífico e cooperativo entre as nações, quaisquer que sejam suas Constituições e sistemas sociais. Não é o caso, porém, do Canadá, que sequer firmou a Convenção Americana.
A convenção Americana reflete a mesma inspiração ideológica da Convenção Européia, quando afirma, em seu preâmbulo, que os direitos fundamentais do homem, não obstante o fato de pertencer a um dado Estado, repousam sobre os atributos da pessoa humana e que um regime de liberdade individual e de justiça social não pode ser estabelecido senão no quadro das instituições democráticas.

Os direitos proclamados são similares e, sobretudo, o mecanismo institucional de proteção estava decalcado no então sistema europeu: a Comissão e a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, na forma do que dispõe a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, é um órgão autônomo da OEA, que tem como função principal promover a observância, a defesa e a promoção dos Direitos Humanos e servir como órgão consultivo da OEA sobre a matéria. Ela se compõe de sete membros, eleitos a título pessoal, para um mandato de quatro anos, renovável por mais quatro, pela Assembléia Geral da Organização, dentre pessoas de alta autoridade moral, que se tenham destacado na área do conhecimento dos direitos humanos.
A Corte é composta também por sete membros com as mesmas qualificações, com um mandato de seis anos (renovável por mais seis).

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos tem uma função quase jurisdicional, pois é ela que recebe as denúncias de violações que lhe são apresentadas pelas vítimas ou por quaisquer pessoas ou organizações não-governamentais, contra atos violatórios de direitos fundamentais por parte dos estados ou que não tenham encontrado reconhecimento ou proteção por parte dos mesmos Estados. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos processa essas denúncias, procede ao seu exame e, depois de admiti-las, faz recomendações aos Estados e, ao final, decide se apresenta ou não o caso à Corte. Assim, a Corte só passa a decidir sobre os casos que lhe são apresentados pela Comissão ou por um Estado Parte.
A Comissão de Direitos Humanos da OEA é, ao mesmo tempo, um órgão ou etapa “processual” no sistema de petições individuais estabelecido sob a Declaração e a Convenção Americanas e um órgão de “vocação geral” na região americana, em matéria de direitos humanos. Nesse sentido, ela é uma mescla de Comitê de direitos civis e políticos do Pacto Internacional de 1966 e de Comissão de Direitos Humanos da Nações Unidas. Sua riqueza vem justamente do caráter parcialmente público e parcialmente judicial. A salvaguarda de sua imparcialidade e da correção de seu funcionamento é o caráter “supervisor” da Corte Interamericana.

Para os Estados que não aceitaram a cláusula de jurisdição obrigatória da Corte Interamericana, a Comissão é o órgão único de solução de litígios do sistema e deriva sua competência da carta da OEA e do estatuto da Comissão, além da Convenção Americana (para os estados que a ratificaram). Ela concentra, em um único órgão, a investigação dos fatos, a apreciação dos argumentos jurídicos e a imposição de sanções.

Assim, é fundamental para a vitalidade do sistema interamericano de Direitos Humanos, como a Comissão de Direitos Humanos asseverou na Assembléia Geral da OEA, que teve lugar na Guatemala, no mês de junho de 1999, e reiterou, ante a mesma Assembléia, realizada em Windsor (Canadá), em junho de 2000, o cumprimento pelos Estados partes das sentenças da Corte e recomendações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Os órgãos políticos da Organização devem cumprir com o objetivo central de assegurar o cumprimento das decisões dos órgãos de proteção. O fortalecimento do sistema não depende, pois, unicamente e nem se esgota no funcionamento dos órgãos de supervisão.

Em última instância, sua efetividade está vinculada à ação que os órgãos políticos estejam dispostos a empreender ante quantos ignoram suas obrigações internacionais. Os Estados e os órgãos apontados constituem-se na garantia coletiva do cumprimento das normas de direitos humanos. Passados, ainda, poucos dias da Assembléia de Windsor, em resposta a colocações feitas pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos perante o Comitê de Direitos Políticos e Sociais da OEA, o representante dos Estados Unidos assinalou a conveniência de estabelecer-se um órgão encarregado de acompanhar o cumprimento das decisões e das recomendações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

C. O SISTEMA AFRICANO

Vejamos, em seguida, o sistema africano de proteção dos direitos humanos. A Carta Africana sobre Direitos Humanos e dos Povos foi adotada pela Assembléia dos representantes da Organização da Unidade Africana (OUA), em 27 de junho de 1981, em Nairobi, Quênia, tendo em vista a decisão 115 (inciso XVI) da Assembléia dos representantes, adotada em sessão ordinária, que teve lugar em Monróvia, de 17 a 20 de julho de 1979. A iniciativa visava preparar um um draft preliminar para a elaboração de uma Carta Africana sobre os direitos do homem e dos povos, estabelecendo instrumentos para a luta contra o colonialismo e o racismo.

A Carta constitui um aporte importante ao desenvolvimento do direito regional africano e cobre uma lacuna essencial em matéria de direitos humanos. Ela entrou em vigor, somente, em 21 de outubro de 1996 com o objetivo de priorizar os direitos dos povos. Tais direitos são concebidos como um direito à independência e não como um direito à secessão, ao qual a prática da União Africana é totalmente contrária, em nome do princípio da intangibilidade das fronteiras da integridade territorial. As disposições da Carta relativas ao direito dos povos são também a expressão, a mais clara, da tendência moderna à coletivização dos direitos do homem. Sob esse aspecto, a Carta apresenta a singularidade de fazer coabitar conceitos aparentemente antagônicos: indivíduo e povo, direitos individuais e direitos coletivos, direitos da chamada “terceira geração” (direitos sociais, econômicos e culturais) e direitos clássicos (civis e políticos). A Carta Africana criou, em seu artigo 30, uma Comissão africana do homem e dos povos. Trata-se de um órgão técnico independente, composto por 14 membros escolhidos por suas qualidades pessoais, encarregado da promoção e da proteção dos direitos do homem. Para esse efeito, a Comissão pode ser solicitada pelas faltas de um Estado às disposições convencionais, provocada por outro Estado ou por particulares.

No plano regional, a Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos põe em prática um procedimento sumário e comunicações estatais que permitem a um Estado parte a denúncia de violações da carta cometidas por outro Estado parte.
O regimento interno da Comissão, adotado em 13 de fevereiro de 1988, distingue dois tipos de comunicação individual: a apresentada por um indivíduo que se pretende vítima de uma violação de um dos direitos enunciados pela Carta e aquela apresentada por um indivíduo da “Organização da Unidade Africana”, alegando uma situação de violação grave ou massiva dos direitos do homem e dos povos. Esse sistema de comunicação não tem realmente por objeto remediar violações individuais dos direitos do homem. A carta (art. 55) estabelece, nesse caso, que a denúncia constará de uma lista de comunicações similares, que é transmitida aos membros da Comissão, que indicarão quais deles deverão ser considerados. Ademais, a carta não prevê o tratamento individual de petições admissíveis.

Nos termos de seu artigo 58, a Comissão como o acordo da Assembléia dos Chefes de Estado e da direção da Organização da União Africana, poderá promover estudos aprofundados, em decorrência de comunicações relativas a situações reveladoras da existência de violações graves ou massivas dos direitos do homem e dos povos. De outro lado, a Comissão poderá afirmar essa vocação de órgão protetor dos direitos individuais, à semelhança da evolução constatada na Comissão Interamericana de Direitos Humanos. O mecanismo, entretanto, é fortemente restritivo. Assim, as recomendações da Comissão não podem ser dirigidas diretamente aos Estados concernentes, mas devem ser feitas ao órgão supremo da Organização da União Africana, que decide da oportunidade de publicar as recomendações da Comissão (art. 59, § 3º). O órgão intergovernamental da Organização da União Africana joga, portanto, o papel de intermediário obrigatório e protetor da soberania estatal: a eficácia do sistema parece, assim, bastante duvidosa.

O protocolo adotado em Ovagadongou, em 09 de junho de 1998, já em vigor, trata da criação de uma Corte Africana dos Direitos do Homem e dos Povos, cuja intervenção pode ser solicitada pelos indivíduos e pelas organizações não- governamentais, sob a reserva da aceitação prévia de sua competência pelo Estado parte. A decisão da corte é revestida da autoridade de coisa julgada definitiva (artigo 30, do Protocolo sobre a criação de um Tribunal Africano dos Direitos do Homem e dos Povos); o acompanhamento de sua execução é confiada ao Comitê de Ministros da Organização da União Africana (artigo 29, n. 2, do mesmo Protocolo).

3. TRÊS SISTEMAS E UM OBJETIVO COMUM
Como se vê, os três sistemas têm um objetivo comum – a proteção e defesa dos Direitos Humanos – que é alcançado segundo as peculiaridades de cada um. Não se trata aqui, de concluirmos qual seja o melhor, mas de encontrarmos em todos eles a maior eficiência segundo o mandato que lhes é determinado.

A plena jurisdicionalização do sistema será a solução?
Se o objetivo, buscado pelo Conselho da Europa, está encontrando dificuldades, dada a avalanche de solicitações que acorrem à Corte Européia, no nosso hemisfério, o sistema se ressente da imprescindível universalização e de um mecanismo que imponha, aos Estados partes, o cumprimento das decisões da Corte e das recomendações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

Por outra parte, o sistema africano, implantado faz pouco tempo, terá sua eficiência comprovada no correr dos próximos anos.
Mas o que me parece fundamental é que, a par da universalização dos sistemas – o que ainda não aconteceu no caso das Américas e do Caribe – aperfeiçoando-se, com a experiência já acumulada as práticas na apuração das violações e responsabilização dos Estados e do cumprimento obrigatório das decisões e recomendações dos órgãos, guardando sempre o princípio de que o primeiro combate pela implementação dos Direitos Humanos deve ocorrer nos Estados partes, mediante sua própria atuação, segundo os princípios que conformam o Estado de Direito Democrático, tenha-se em consideração que os sistemas assinalados são subsidiários e só atuam quando os Estados negam esses direitos fundamentais, que qualificam a cidadania de nossas mulheres, homens e crianças.

4. TPI – SOB A ESPADA DE DÂMOCLES
Para completar o exame sucinto ora feito, dos sistemas regionais de defesa e proteção dos Direitos Humanos, valeria, ainda, menção ao Tribunal Penal Internacional. Ele foi criado pelo Estatuto de Roma, em julho de 1998, e entrou em vigor no dia 1º de julho deste ano.
O Tribunal em questão, com competência para julgar pessoas pelos crimes mais graves de transcendência internacional, tem caráter complementar das jurisdições penais nacionais.

Ele vem depois das experiências dos Tribunais de Nuremberg e de Tóquio, adequadamente denominados tribunais dos vencedores e mais prosaicamente dos Tribunais instituídos para julgar os crimes praticados em Ruanda e nos territórios da antiga Iugoslávia.
Trata-se, sem dúvida, de um relevante marco no progresso do estabelecimento de uma justiça mundial. Nada menos do que 76 países o subscreveram e ratificaram e se empenham, agora, na sua instalação.
O Brasil já ratificou o Estatuto e depositou o instrumento de ratificação na Secretaria das Nações Unidas.
O Tribunal Penal Internacional encerra promessa de um mundo no qual os responsáveis por genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade não mais restarão impunes. Seus autores serão submetidos à Corte Internacional, nos casos em que os Estados-Partes não conseguiram ou não se dispuserem a submetê-los à Justiça.
Cumpre assinalar, entretanto, que os Estados Unidos da América, por decisão de 6 de maio passado, anunciaram oficialmente que não pretendem ratificar o estatuto da Corte Penal Internacional e se consideram desobrigados de todos os ônus decorrentes de sua anterior adesão.
A esse respeito, a União Européia observou que esse ato unilateral poderá ter conseqüências lastimáveis sobre a conclusão multilateral dos tratados e, de uma maneira geral, sobre o princípio da preeminência do direito nas relações internacionais.
Com esta consideração, de relevante oportunidade, a comunidade internacional tem a esperança de, num futuro próximo, segundo diálogo a ser aberto com os Estados Unidos, encontrar o caminho para abrigar a cooperação americana na inteira aplicação da justiça, alcançando a abrangência do Estatuto de Roma
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