
Convenção
Sobre a Eliminação de todas as formas de discriminação contra a Mulher
e Convenção para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a
Mulher
Helena Omena
Lopes de Faria*
Mônica de Melo**
* Procuradora
do Estado Chefe da Procuradoria de Assistência Judiciária Criminal ,
membro do Grupo de Trabalho de Direitos Humanos da Procuradoria Geral do
Estado de São Paulo e membro do Instituto Brasileiro de Ciências
Criminais.
** Procuradora do
Estado, membro do Grupo de Trabalho de Direitos Humanos da Procuradoria
Geral do Estado de São Paulo, Mestre em Direito Constitucional,
Professora de Direito Constitucional da PUC/SP, Diretora do Instituto
Brasileiro de Advocacia Pública e Coordenadora da ONG "Oficina
1. Introdução
Gostaríamos de iniciar
este trabalho ressaltando o lema levado, pelo Movimento de Mulheres, à
Conferencia Mundial de Direitos Humanos de Viena (1993): "os direitos
da mulher também são direitos humanos".
É inegável,
historicamente, que a construção legal e conceitual dos direitos humanos
se deu, inicialmente, com a exclusão da mulher.
Embora os principais
documentos internacionais de direitos humanos e praticamente todas as
Constituições da era moderna proclamem a igualdade de todos, essa
igualdade, infelizmente, continua sendo compreendida em seu aspecto formal
e estamos ainda longe de alcançar a igualdade real, substancial entre
mulheres e homens.
A Convenção sobre a
Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher foi,
dentre as Convenções da ONU, a que mais recebeu reservas por parte dos
países que a ratificaram.
E em virtude da grande
pressão das entidades não governamentais é que houve o reconhecimento
de que os direitos da mulher também são direitos humanos ficando
consignado na Declaração e Programa de Ação de Viena (item 18) que:
"Os direitos humanos
das mulheres e das meninas são inalienáveis e constituem parte integral
e indivisível dos direitos humanos universais".
Também por essa razão é
que agora se renova essa reflexão por ocasião do quinquagésimo aniversário
da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948).
No plano jurídico nacional
a Constituição de 1988 significou um marco no tocante aos novos direitos
da mulher e à ampliação da cidadania. Fato este que se deveu,
principalmente, à articulação das próprias mulheres na Assembléia
Nacional Constituinte com a apresentação de emendas populares
garantidoras de seus direitos.
A Constituição como
documento jurídico e político das cidadãs e cidadãos brasileiros
buscou romper com um sistema legal fortemente discriminatório
negativamente em relação ao gênero feminino.
Foi assim
constitucionalizado como fundamento da República Federativa do Brasil a
dignidade da pessoa humana (não só do homem ou da mulher). Um dos
objetivos fundamentais em nosso país é a promoção do bem de todos, sem
preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas
de discriminação. Para reforçar ainda mais, a Constituição de 1988
prevê como direito constitucional a igualdade de todos perante a lei sem
distinção de qualquer natureza e a igualdade de homens e mulheres em
direitos e obrigações.
No tocante ao exercício do
trabalho ficou proibida a diferença de salários, de exercício de funções
e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado
civil.
No capítulo que trata da
família mais uma vez foi destacado que os direitos e deveres devem ser
exercidos igualmente pelo homem e pela mulher. O Estado deve criar
mecanismos para coibir a violência doméstica e propiciar recursos
educacionais e científicos para o exercício do direito do planejamento
familiar, que é de livre decisão do casal.
Finalmente no plano de
proteção internacional no qual o Brasil também se insere, uma vez que a
própria Constituição estabelece (§ 2o do art. 5º) que os direitos e
garantias nela expressos não excluem outros decorrentes do regime e princípios
por ela adotados e dos tratados internacionais de que o Brasil seja parte,
temos dois Tratados Internacionais ratificados pelo Brasil que tratam
especificamente dos direitos das mulheres: Convenção da Organização
das Nações Unidas sobre Eliminação de todas as Formas de Discriminação
contra a Mulher, ratificada em 1984 e a Convenção Interamericana para
Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, ratificada em
1995. Os Tratados Internacionais que o Brasil ratifica além de criarem
obrigações para o Brasil perante a Comunidade Internacional, também
criam obrigações internas gerando novos direitos para as mulheres que
passam a contar com uma última instância internacional de decisão
quando todos os recursos disponíveis no Brasil falharem na realização
da justiça.
Portanto, atualmente é
possível peticionar à Comissão Interamericana de Direitos Humanos,
apresentando denúncias e queixas no que se refere a prática de violência
contra a mulher. Para que possamos também recorrer à Corte
Interamericana de Direitos Humanos é necessário que se reconheça a sua
competência no Brasil, ato que até hoje não foi realizado, embora as
pressões de diversas ONGs sejam fortes neste sentido, tendo sido
realizada uma recente campanha com coleta de assinaturas em todo o Brasil
requerendo sua adesão.
A Convenção sobre a
Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, trouxe
de forma inovadora a possibilidade da existência da discriminação
positiva, ou seja, a possibilidade de adoção, nos países partes, de
medidas especiais de caráter temporário destinadas a acelerar a
igualdade de fato entre o homem e a mulher.
Nossa Constituição, neste
tema, prevê a proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante
incentivos específicos (art. 7º , XX) e há alguns projetos de lei
tramitando no Congresso Nacional objetivando a regulamentação desse
artigo. Com esse mesmo objetivo — de acelerar a igualdade de fato entre
homem e mulher — temos a recente aprovação da legislação
determinando que um determinado número de candidaturas sejam reservadas
às mulheres.
Como é possível observar
a partir de 1988 houve (e ainda está havendo) um grande avanço na
legislação protetiva dos direitos da mulher e ampliativa de sua
cidadania. Finalmente, de forma gradual, mas constante, a mulher vai
conquistando a almejada igualdade de direitos e a inclusão social.
Entretanto, não podemos
perder de vista que o avanço legislativo não é suficiente para a
transformação da realidade. Embora tenhamos uma das Constituições mais
avançadas do mundo relativamente à proteção dos direitos da mulher,
embora tenhamos ratificado os Tratados Internacionais de Proteção da
Mulher não podemos pensar que a lei é a única solução para todos os
problemas. A realidade é muito mais complexa e as soluções passam pelo
direito, pela política, pela educação, pela cultura, pela economia
etc., por mais avançada que seja uma legislação, sua aplicação
depende dos operadores do direito. A interpretação legislativa efetivada
pelo judiciário, pelos advogados e advogadas, procuradoras e
procuradores, promotoras e promotores é fundamental para a devida aplicação
dos novos direitos da mulher. A aplicação da lei ao caso concreto é
intermediada pela ação e interpretação de todos esses atores jurídicos.
Para estes atos concorrem necessariamente valores individuais e sociais. Não
há neutralidade. Portanto é absolutamente imprescindível que se
desenvolva capacidade crítica em relação à valores estratificados,
estereótipos, sexismos e preconceitos. A ideologia dominante é
patriarcal admitindo a subalternidade social e política das mulheres.
Romper com o conservadorismo jurídico reinante é um dos caminhos para
que os novos direitos da mulher possam ser aplicados.
Dentro deste quadro o
objetivo deste trabalho é modesto, pois objetivamos apenas realizar uma
abordagem jurídica dos dois tratados internacionais ratificados pelo
Brasil, de promoção e proteção dos direitos da mulher.
Nossa contribuição se
volta principalmente aos operadores do direito no sentido de trazer subsídios
para uma melhor compreensão desses textos normativos, para que possamos
colaborar na construção de uma sociedade mais igualitária, garantidora
da democracia e da paz.
2. CONVENÇÃO SOBRE A
ELIMINAÇÃO DE TODAS AS FORMAS DE DISCRIMINAÇÃO CONTRA A MULHER(1)
Antes de enfocarmos o tema
central, "Convenção sobre a Eliminação da Discriminação contra
a Mulher", cabe mencionar que a proteção internacional dos direitos
das mulheres situa-se no âmbito do chamado "Direito Internacional
dos Direitos Humanos" e por isto urge a necessidade de tecermos
breves comentários acerca destes direitos, bem como do impacto causado
por este movimento no cenário internacional.
O Direito Internacional dos
Direitos Humanos constitui um movimento bastante recente na história
mundial, surgindo à partir do Pós Guerra, em decorrência das terríveis
violações cometidas durante o nazismo e a crença de que, ao menos parte
dessas violações poderiam ter sido evitadas se um efetivo sistema de
proteção internacional de direitos humanos existisse. Surge a certeza de
que a proteção dos direitos humanos não deve se reduzir ao âmbito
reservado de um Estado, não mais ser concebida como uma questão de
jurisdição doméstica, porque revela tema de legítimo interesse
internacional.
Neste cenário, o Tribunal
de Nuremberg, de 1945-1946, significou um poderoso impulso ao movimento de
internacionalização dos direitos humanos, pois reconheceu a idéia da
necessária limitação da soberania nacional, eis que os indivíduos têm
direitos protegidos pelo Direito Internacional., na condição de sujeitos
de direito. A Declaração de 1948 vem a inovar, quando em seu § 5º,
afirma que : "Todos os direitos humanos são universais,
interdependentes e inter-relacionados. A comunidade internacional deve
tratar os direitos humanos globalmente de forma justa e equitativa, em pé
de igualdade e com a mesma ênfase".
A concepção universal dos
direitos humanos, demarcada pela Declaração sofreu e sofre fortes resistências
dos adeptos do movimento do relativismo cultural, no qual a noção de
direitos está estritamente relacionada ao sistema político, econômico,
cultural, social e moral vigente em determinada sociedade, o que impede a
formação de uma moral universal, sendo necessário que se respeitem as
diferenças culturais apresentadas por cada sociedade. Entretanto, a
contingência histórica e a particularidade de direitos humanos é
perfeitamente compatível com a concepção de direitos humanos como
direitos morais universais, de modo que não se permite aceitar fortes
reivindicações do relativismo cultural.
Pode-se citar as diferenças
de padrões morais e culturais entre o islamismo e o hinduísmo e o mundo
ocidental , no que tange ao movimento de direitos humanos;
exemplificando-se com a prática da clitorectomia e mutilação feminina
por muitas sociedades da cultura não ocidental. Entretanto, não se pode
tolerar atos de violência, tortura e mutilações, em nome da diversidade
ou respeito a tradições culturais ou religiosas que regem o ordenamento
secular dessas sociedades. Não se admite nenhuma concessão que implique
em violação de direitos humanos, ainda que acobertada pela diversidade
cultural. A posição relativista revela o esforço em justificar graves
casos de violação dos direitos humanos, que ficariam imunes ao controle
da comunidade internacional. Independentemente do sistema político, econômico
e cultural, é obrigação dos Estados promover e proteger todos os
direitos humanos e liberdades fundamentais. A universalidade é
enriquecida pela diversidade cultural, a qual jamais pode ser invocada
para justificar a denegação ou violação dos direitos humanos.
A partir da Declaração
Universal de 1948, o Direito Internacional dos Direitos Humanos começou a
desenvolver-se, implicando nos processos de universalização e
internacionalização desses mesmos direitos, adotando-se inúmeros
tratados internacionais voltados a proteção de direitos fundamentais.
Forma-se assim um sistema normativo internacional de proteção dos
direitos humanos, no âmbito das Nações Unidas.
Esse sistema normativo é
integrado por instrumentos de alcance geral, como os Pactos Internacionais
de Direitos Civis e Políticos e de Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais de 1966 e por instrumentos de alcance específico, as Convenções
Internacionais que visam responder a determinadas violações de direitos
humanos, como por exemplo a discriminação racial, a discriminação
contra as mulheres, a tortura e a violação dos direitos da criança.
O sistema geral de proteção
tem por endereçado toda e qualquer pessoa, concebida em sua abstração e
generalidade. Por sua vez, o sistema especial de proteção realça o
processo de especificação do sujeito de direito, que passa a ser visto
de forma concreta e específica, pois determinados sujeitos de direitos,
ou certas violações de direitos exigem uma resposta diferenciada.
Importa o respeito à diversidade e a diferença, assegurando-se um
tratamento especial.
Ao lado do sistema
normativo global, surge o sistema normativo regional de proteção, que
busca internacionalizar os direitos humanos no plano regional,
particularmente na Europa, América e África. Ambos os sistemas são
complementares e diante deste complexo universo de instrumentos
internacionais, cabe a vítima a escolha do aparato mais favorável, pois
eventualmente direitos idênticos são tutelados por dois ou mais
instrumentos de alcance global ou regional, ou ainda de alcance especial.
É certo que ao adotar-se o
valor da primazia da pessoa humana, esses sistemas se complementam,
visando a maior efetividade possível na tutela e promoção de direitos
fundamentais, constituindo a sistemática internacional como garantia
adicional de proteção, instituindo mecanismos de responsabilização e
controle internacional, acionáveis quando o Estado se mostra falho ou
omisso na tarefa de implementar direitos e liberdades fundamentais.
Ao acolher o aparato
internacional de proteção, bem como as obrigações internacionais dela
decorrentes, o Estado passa a aceitar o monitoramento internacional no que
se refere ao modo pelo qual os direitos fundamentais são respeitados em
seu território. Como já mencionado, a ação internacional é sempre uma
ação suplementar, constituindo uma garantia adicional de proteção aos
direitos humanos.
Essas transformações
decorrentes do movimento de internacionalização dos direitos humanos
contribuíram para o processo de democratização do próprio cenário
internacional, eis que novos sujeitos de direito passaram a participar do
cenário internacional. É patente a relação entre democracia e direitos
humanos, pois estes inovam a ordem jurídica e reforçam a sistemática de
proteção de direitos, permitindo o aperfeiçoamento do próprio regime
democrático.
Foi neste cenário que as
Nações Unidas aprovaram em 1979 a Convenção sobre a Eliminação de
todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, ratificada pelo
Brasil em 1984.
A Convenção fundamenta-se
na dupla obrigação de eliminar/erradicar a discriminação e a de
assegurar/garantir a igualdade. Trata do princípio da igualdade, seja
como uma obrigação vinculante, seja como um objetivo.
Para a Convenção, a
discriminação contra a mulher significa "toda distinção, exclusão
ou restrição baseada no sexo e que tenha por objetivo ou resultado,
prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo, exercício pela mulher,
independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da
mulher, dos direitos humanos e das liberdades fundamentais nos campos político,
econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo"(art.
1º).
Diversas previsões da
Convenção também incorporam a preocupação de que os direitos
reprodutivos das mulheres devem estar sob seus próprios controles,
assegurando que suas decisões sejam livres e benéficas no tocante ao
acesso às oportunidades sociais e econômicas. Reconhece-se que mulheres
são submetidas a abusos, que precisam ser eliminados (estupro, assédio
sexual, exploração sexual...).
Dentre suas previsões, está
a urgência em se erradicar todas as formas de discriminação contra as
mulheres, a fim de que se garanta o pleno exercício de seus direitos
civis , políticos, econômicos e culturais.
Ao ratificar a Convenção,
os Estados-partes assumem o compromisso de, progressivamente, eliminar
todas as formas de discriminação no tange ao gênero, assegurando
efetiva igualdade entre eles. Trata-se de obrigação internacional
assumida pelo Estado, ao ratificar, dentre outras, a necessidade de adoção
de políticas e legislação igualitária.
A Convenção reflete a visão
de que habilidades e necessidades que decorrem de diferenças biológicas
entre os gêneros devem também ser reconhecidas e ajustadas , mas sem
eliminar a titularidade das mulheres à igualdade de direitos e
oportunidades.
Para tanto, a Convenção
prevê a possibilidade de adoção de medidas afirmativas ("ações
afirmativas"), como importantes medidas a serem adotadas pelos
Estados para acelerar o processo de obtenção da igualdade. Permite-se a
"discriminação positiva", pela qual os Estados podem adotar
medidas especiais temporárias, visando acelerar o processo de igualização
de status entre homens e mulheres. Tais medidas cessarão quando alcançado
o seu objetivo. São medidas compensatórias que visam remediar as
desvantagens históricas, consequências de um passado discriminatório,
buscando a pluralidade e diversidade social.
Existe a previsão de
instituição de determinado órgão, denominado "Comitê", que
é responsável pelo monitoramento dos direitos constantes na Convenção.
Esta ainda estabelece, como mecanismo de implementação dos direitos que
enuncia, a sistemática dos relatórios. Os Estados-partes têm que
encaminhar relatórios ao Comitê das Nações Unidas para a Eliminação
de todas as formas de Discriminação contra a Mulher. Nestes relatórios
devem evidenciar o modo pelo qual estão implementando a Convenção e
quais as medidas legislativas, administrativas e judiciárias adotadas
para este fim. É a primeira vez que os Estados têm que prestar contas a
organismos internacionais da forma pela qual protegem os direitos das
mulheres, permitindo o monitoramento e fiscalização internacional.
Em que pese o Comitê não
ter quase poderes judiciais que o habilitem a sancionar um Estado-parte
responsável por violação à Convenção, nem tampouco deter poderes
para prever um remédio apropriado em caso de violação, pode oferecer
recomendações a Estados específicos, ou a Estados-partes em geral, no
sentido de indicar as medidas apropriadas para o cumprimento da Convenção.
Entretanto, o meio mais eficaz de exercer pressão em Estados, para que
cumpram com suas obrigações, se atém à revisão pública de relatórios
específicos submetidos por Estados. Muitos governos se preocupam com a
publicidade positiva ou negativa acerca de suas políticas de direitos
humanos.
Novos procedimentos devem
ser adotados para fortalecer a implementação da igualdade das mulheres,
bem como de seus direitos humanos. O comitê deve examinar a possibilidade
de introduzir o direito de petição mediante a elaboração de um
Protocolo Optativo à Convenção, na medida em que tal mecanismo
constitui o sistema mais eficiente de monitoramento dos direitos humanos
internacionalmente enunciados. Importante também a introdução de
comunicação interestadual que permitiria a um Estado-parte denunciar
outro Estado-parte quando este violasse dispositivos da Convenção.
Cabe ressaltar que em que
pese diversos Estados terem ratificado esta Convenção, o alcance e a
extensão da ratificação são comprometidos em face das reservas, que
atingem a essência de seus valores. Esta Convenção é o instrumento
internacional que mais fortemente recebeu reservas, dentre as Convenções
Internacionais de Direitos Humanos, considerando que ao menos 23 dos 100
Estados-partes, fizeram no total 88 reservas substanciais. Vale dizer que
esta Convenção maximizou sua aplicação universal ao custo de ter
comprometido sua integridade.
No cenário internacional,
a Conferência de Viena, em 1993, reafirmou a importância do
reconhecimento universal do direito à igualdade relativa ao gênero,
clamando, nos termos do artigo 39, pela ratificação universal da Convenção
sobre a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres, que visa a
erradicação de todas as formas de discriminação contra a mulher, tanto
implícitas como explícitas, bem como o encorajamento de ações e
medidas para reduzir o amplo número de reservas à Convenção. Preceitua
ainda no artigo 40 que "os órgãos de monitoramento devem disseminar
informações necessárias que permitam às mulheres fazerem um uso mais
efetivo dos procedimentos de implementação existentes, com o objetivo do
pleno e equânime exercício dos direitos humanos e da não discriminação.
Novos procedimentos devem também ser adotados para fortalecer a
implementação da igualdade das mulheres, bem como de seus direitos
humanos. A Comissão relativa ao Status da Mulher e o Comitê de Eliminação
da Discriminação contra as Mulheres devem rapidamente examinar a
possibilidade de introduzir o direito de petição mediante a preparação
de um Protocolo Optativo à Convenção sobre a Eliminação de todas as
formas de Discriminação contra as Mulheres".
Cabe acrescentar que a
plataforma mundial dos direitos humanos das mulheres foi reforçada com a
Declaração e Plataforma de Ação de Pequim, de 1995, que enfatizou que
os direitos das mulheres são parte inalienável, integral e indivisível
dos direitos humanos universais.
No cenário nacional, a
Constituição brasileira de 1988, constitui um marco jurídico de
institucionalização dos direitos humanos e da transição democrática
no país, ineditamente consagrando o primado do respeito aos direitos
humanos como paradigma propugnado para a ordem internacional.
A Constituição Federal de
1988 estabelece ao fim da extensa Declaração de Direitos por ela
prevista, que os direitos e garantias expressos na Constituição não
excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados ou
dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja
parte" (art. 5º, § 2º). Inova ao incluir dentre os direitos
constitucionalmente protegidos, os direitos enunciados nos tratados
internacionais de que o Brasil seja signatário, atribuindo aos direitos
internacionais, uma natureza especial e diferenciada, qual seja, de norma
constitucional.
Como consequência do
processo de democratização iniciado em 1985, o país procurou alinhar-se
ao sistema internacional de proteção dos direitos humanos, o que exige
uma nova interpretação de princípios tradicionais, como a soberania
nacional e a não intervenção, impondo a flexibilização e relativação
destes valores. É sem dúvida o documento mais avançado sobre a matéria,
na história constitucional do país.
Quanto ao impacto jurídico
do Direito Internacional dos Direitos Humanos no direito brasileiro, é
certo que este tem como inspiração, paradigma e referência o direito
Internacional dos Direitos Humanos. O legislador nacional busca orientação
e inspiração neste instrumental, equacionando o direito interno às
obrigações internacionalmente assumidas. Seja em face da sistemática de
monitoramento internacional, seja em face do extenso universo de direitos
que assegura, o Direito Internacional dos Direitos Humanos vem a instaurar
o processo de redefinição do próprio conceito de cidadania, no âmbito
brasileiro. O conceito de cidadania se vê ampliado e alargado na medida
em que passa a incluir não apenas direitos e garantias previstos no plano
nacional, mas também direitos internacionalmente enunciados e garantias
de natureza internacional.
Observa-se que, ao longo do
processo de democratização, o Estado brasileiro passou a aderir a
importantes instrumentos internacionais de direitos humanos, integrantes
dos sistemas global e regional, aceitando expressamente a legitimidade das
instâncias internacionais quanto ao cumprimento conferido pelo país às
obrigações internacionais assumidas concernentes aos direitos humanos.
O marco inicial do processo
de incorporação de tratados internacionais de direitos humanos pelo
direito brasileiro foi a ratificação, em 1º de fevereiro de 1984, da
Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação
contra a Mulher.
Insta mencionar que, quando
da ratificação da Convenção, em 1984, o Brasil apresentou reservas ao
artigo 15, § 4º e ao artigo 16, § 1º, a, c, g e h da Convenção. O
artigo 15 assegura a homens e mulheres o direito de livremente escolher
seu domicílio e residência. O artigo 16 estabelece a igualdade de
direitos entre homens e mulheres no casamento e nas relações familiares.
Em 20 de dezembro de 1994, o Governo brasileiro notificou o Secretário
Geral das Nações Unidas acerca da eliminação das aludidas reservas.
A partir dessa ratificação
a supra referida Convenção, inúmeros outros relevantes instrumentos
internacionais de proteção dos direitos humanos foram também
incorporados pelo direito brasileiro, sob a égide da Constituição
Federal de 1988, dentre eles a Convenção Interamericana para Prevenir,
Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, em 27 de novembro de 1995.
Urge, porém, que o Brasil
não mais se recuse a aceitar procedimentos que permitam acionar de forma
direta e eficaz a international accountability,
reconhecendo-se a competência jurisdicional da Corte Interamericana de
Direitos Humanos, os mecanismos de petição individual e comunicação
interestadual previstos nos tratados já ratificados, além de adotar
medidas que efetivamente assegurem eficácia aos direitos constantes dos
instrumentos internacionais de proteção, em especial no tocante a obrigação
de eliminar a discriminação contra as mulheres, assegurando o pleno
exercício de todos os seus direitos, adotando para tanto política,
legislação e educação igualitárias, não descartando "ações
afirmativas", para acelerar o processo de obtenção da igualdade,
como por exemplo a Lei de Cotas, aprovada em 1995, que reserva, 20% dos
cargos para eleições municipais às mulheres.
Cumpre por derradeiro
observar que, a Plataforma de Ação de Beijing reconhece que embora as
mulheres representem ao menos metade da população mundial, representam
apenas 10% do total de legisladores no âmbito mundial e no órgãos
administrativos representam menos que 10%.
É de suma importância a
participação das mulheres nos Poderes Públicos, o que facilitaria a
incorporação da ótica de gênero na formulação e execução de políticas
públicas.
|