O controlo do
respeito pelo Direito Internacional Humanitário
Os mecanismos de controlo visam
exacta-mente o cumprimento da obrigação de fazer respeitar o
Direito Humanitário e fazer cessar as suas violações. Intervêm
neste sistema de controlo os Estados, as Potências protectoras e
o CICV.
1.O PAPEL DOS ESTADOS
De uma forma geral, os Estados
(Altas Partes Contratantes e Partes num conflito) têm a
obrigação de zelar colectivamente pelo res-peito das
Convenções e Protocolos. Para este fim, dispõem de três meios.
A convocação de reuniões
A pedido de uma ou de várias Altas
Partes Contratantes, e com a aprovação da maioria destas, as
autoridades suíças podem convo-car uma reunião de cuja ordem do
dia cons-tará a análise de um ou vários problemas gerais –
assim se excluindo situações parti-culares
– relativos à aplicação das
Convenções.e Protocolos . O alcance de semelhante procedimento
parece, pois, bastante limitado. Nos dias 30 de Agosto e 1 de
Setembro de 1993, foi convocada uma conferência sobre a
protecção das vítimas, con-juntamente pelo CICV e pelo Governo
suíço: à época, 181 Estados haviam aderido às Convenções de
Genebra, mas apenas 159 parti-ciparam na Conferência, na
sequência da qual os Estados se compro-meteram a respeitar as
Convenções … que se haviam já comprometido a respeitar
aquando da ratificação, adesão ou sucessão. Alguns Esta-dos
(nomeadamente a Indonésia, o Paquistão, o Sudão e o Sri Lanka),
invocando o princípio da soberania nacional, opuseram-se mesmo a
que se examinasse o problema dos conflitos armados não
inter-nacionais.
As medidas adoptadas por Estados
terceiros
Os Estados que não são partes num
conflito armado, internacional ou não, podem tomar diversas
medidas para fazer respeitar o Direito Humanitário caso ele seja
violado 2 . Podem tratar-se, entre outras, medidas destinadas a
exercer pressão diplomática (protesto diplo-mático, denúncia
pública, recurso à Comissão internacional para o apuramento dos
factos), de medidas coercivas (medidas de retorsão ou
represálias não armadas que podem ir da expulsão de diploma-tas
à interdição total das relações comerciais) ou de medidas
toma-das no âmbito das organizações internacionais.
Relativamente a este último ponto, as Nações Unidas podem ter,
como é óbvio, um importante papel a desempenhar.
A actuação das APC em
cooperação com as Nações
Unidas
O artigo 89. o do Primeiro
Protocolo prevê que, em caso de violação grave do Direito
Humanitário, as Partes contratantes se com-prometem a agir, tanto
conjunta como sepa-radamente, em cooperação com as Nações
136 Direito
Internacional umanitário
Artigo 7.o P I.
2 Para uma análise destas medidas,
Palwanskar,U.,«Mesures auxquelles peuvent recourir les Etats pour
emplir leurs obligations de faire respecter le Droit international
humanitaire »(em português: «Medidas às quais podem recorrer
os Estados para cumprir as suas obrigações de fazer respeitar o
Direito internacional humanitário »),RICR,1994,pp.11-27
..Unidas
e em conformidade com a Carta desta organização. Este artigo
aparece de certa forma como uma legítima mitigação do
prin-cípio da interdição de represálias. Redigido de forma
bastante impre-cisa (a «violação grave» corresponde, ao que
parece 3 , à «infracção grave»), ele não cria, todavia,
qualquer nova norma, uma vez que se limita a confirmar o
Preâmbulo da Carta e os seus artigos 1. o e 56. o , o último dos
quais obriga todos os Estados Membros a cooperarem com a
organização para a realização do respeito universal e efectivo
dos direitos do Homem e das liberdades fundamentais. O artigo 89.
o apenas se refere a tal respeito no contexto das situações de
conflito armado.
Pensando apenas nas medidas
adoptadas pelo Conselho de Segurança as Nações Unidas, elas
podem apresentar os diversos níveis de res-posta gradual
aplicáveis pelos mecanismos de resposta colectiva: san-ções
não militares previstas no artigo 41. o ou utilização da força
armada nos termos do artigo 42. o da Carta. Convém ainda
sublinhar que o emprego da força armada decidido pelo Conselho de
Segurança com o objectivo de fazer respeitar o DIH encontra o seu
fundamento no capítulo VII da Carta que tem como único objectivo
o restabelecimento da paz e da segurança internacionais. Nenhuma
intervenção armada se pode, com efeito, basear no Direito
Internacional Humanitário.
2.AS POTÊNCIAS PROTECTORAS
As Convenções de Genebra 4 ,
tendo em conta as insuficiências que se revelaram durante a
Segunda Guerra Mundial, regulamentaram a instituição da
Potência protectora. Cada uma das Partes num con-flito armado
internacional tem, por um lado, a obrigação de desig-nar um
Estado neutro (designado de Potência protectora) encarregado de
salvaguardar os interesses do Estado e dos seus cidadãos junto da
Potência adversária (designada de Potência detentora ou de
residência) e, por outro, a obrigação de ofe-recer à Potência
protectora da Parte adversá-ria as facilidades necessárias ao
desempenho
O controlo do respeito pelo
Direito Internacional Humanitário 137
3 Com.,Protocolo I,p.1057.
4 Artigos comuns 8.o /8.o /8.o /9.oe
10.o /10.o /10.o /11.o ..
da sua função. Mas os textos não
regulam a forma de designação das Potências protectoras e o
costume necessita de obter o consentimento de todas as partes. Por
esta razão, desde que o sistema foi instituído, funcionou apenas
cinco vezes, a última das quais durante o (exem-plar?) conflito
das Malvinas – Falklands, durante o qual a Argentina e o Reino
Unido designaram, respectivamente, o Brasil e a Suíça como
Potências protectoras. O insucesso destes mecanismos explica-se
por vezes pela recusa em admitir a existência de um conflito
armado ou por uma oposição quanto à qualificação do conflito;
mas, mais fre-quentemente, torna-se impossível encontrar Estados
neutros ou não beligerantes, aceitáveis pelas partes no
conflito, que tenham a capa-cidade e a vontade de desempenhar as
funções exigidas pelos tex-tos.
Com efeito, tem cabido ao CICV
desempenhar o papel das Potências protectoras e, mesmo nos
conflitos onde estas são designadas, desenvolver o essencial das
tarefas humanitárias.
O primeiro Protocolo tentou pois
aperfeiçoar o sistema, permitindo ao CICV oferecer os seus bons
ofícios para a designação sem demora de uma Potência
protectora com o acordo das partes no conflito 5 e, em caso de
insucesso deste procedimento, autorizando-o (ou a qual-quer outro
organismo imparcial) a agir na qualidade de substituto da
Potência protectora. Este papel, que traduz uma extensão das
com-petências do CICV uma vez que não o limita ao desempenho de
meras funções humanitárias, apenas pode ser exercido com o
consentimento das partes beligerantes.
O controlo exercido pela Potência
protectora ou, na sua falta, pelo CICV, diz respeito ao tratamento
garantido às pessoas caídas em poder do inimigo (feridos,
doentes, náufragos, prisioneiros de guerra, civis, estrangeiros,
pessoas internadas ou em território ocupado). Este controlo da
aplicação do direito humanitário implica logicamente o direito
de pedir que cessem as violações ou que, uma vez verifi-cadas,
elas possam dar lugar à reparação. Mas a Potência protectora
não dispõe de competência para instaurar inquéritos nem para
apresentar queixas
Direito Internacional umanitário
5 Artigo 5.o §§3 e 4
..tivamente a eventuais
violações, sendo estes poderes confiados a outras instituições
6 .
3.O PAPEL DO CICV
Face às imperfeições dos
mecanismos internacionais de aplicação do DIH, o papel do CICV
aparece como primordial. Desde a sua ori-gem, cabe-lhe promover,
explicar, divulgar e fazer aplicar o Direito Humanitário.
Mandatado como guardião deste direito, o CICV é citado mais de
uma centena de vezes nas Convenções de Genebra e seus Protocolos
adicionais. A maioria destas referências impõe-lhe a obrigação
de agir, nomeadamente na designação das Potências protectoras,
nos trabalhos da Agência Central de Pesquisas, na difu-são do
DIH e no repatriamento de feridos. As missões do CICV podem
dividir-se em dois grandes grupos.
As actividades operacionais
Através das suas actividades, o
CICV procura, em primeiro lugar, fazer com que as vítimas dos
conflitos armados beneficiem de um trata-mento conforme às normas
humanitárias.
a)A protecção e assistência
Graças à presença dos delegados
no terreno e ao seu acesso às vítimas 7 , o CICV intervém junto
das partes no conflito a fim de que elas respeitem as obrigações
decorrentes do Direito Humanitário: visitas aos prisio-neiros de
guerra e aos internados civis, diligências em caso de viola-ção
das regras relativas à condução das hostilidades, acções em
prol dos feridos ou doentes, das famílias dispersas … Quanto à
assistên-cia, ela pode revestir diferentes modalidades, consoante
as necessidades das vítimas e ser de natureza médica,
nutricional, material ou moral.
b)A actuação como intermediário
neutro
O acesso às autoridades civis e
militares permite ao CICV desempenhar o seu papel de interme-
controlo do respeito pelo
Direito Internacional Humanitário 139
6 Vide capítulo 16,§2.
7 Vide capítulo 10,§3
..diário neutro para solucionar os
problemas humanitários que exijam negociações entre
beligerantes. É o caso, desde a sua criação, das zonas
sanitárias e de segurança, da organização de comboios de
socorro atra-vés das linhas da frente, da reinstalação de
pessoas deslocadas, da decla-ração de um cessar-fogo temporário
para fins de evacuação de feridos. Em tais situações, a
intervenção do CICV deverá permitir um mais rigoroso respeito
do direito desde que as Partes beligerantes tenham idênticas
exigências e se prestem mutuamente um tratamento paritário.
c)A Agência Central de Pesquisas
Departamento permanente do CICV, a
Agência Central de Pesquisas recolhe, centraliza e, se for caso
disso, transmite todas as informa-ções que permitam identificar
as pessoas em prol das quais intervém, a saber: as que se
encontram privadas de liberdade, os feridos e mor-tos, as
famílias dispersas e crianças não acompanhadas, os refugia-dos
e pessoas deslocadas. As missões da ACP consistem, assim, na
busca de pessoas desaparecidas no decurso de um conflito, em
colaboração com os departamentos nacionais de informações dos
Esta-dos beligerantes, na obtenção de informações sobre as
pessoas pri-vadas de liberdade, na transmissão de mensagens entre
familiares, e na promoção da reunificação familiar, das
transferências ou do repa-triamento dos prisioneiros de guerra.
O respeito do Direito Humanitário
Mesmo se as guerras já não se
declaram formalmente, elas são a maio-ria das vezes previsíveis,
pelo que alguns dias antes do início de um conflito, o CICV tem
por hábito recordar aos beligerantes os direi-tos e obrigações
a que se encontram sujeitos, sob a forma de reco-mendações.
Estes memoranda limitam-se a
relembrar as normas essenciais de Direito Humanitário 8 ,
evitando qualificar juridica-mente o conflito, sob pena de
prejudicar certos aspectos do mandato do CICV (inter-
Direito Internacional umanitário
8 Assim aconteceu no conflito entre
o Chade e o Líbano (1987) e na Guerra do Golfo (vide a nota
verbal e memorandum anexo de 14 de Dezembro de 1990 dirigidos a
todos os Estados,in RICR, 1991,pp.24-27)
.. mediário neutro, assistência).
O mesmo procedimento é desde logo adoptado quando o CICV oferece
os seus serviços, quer como subs-tituto ou quasi-substituto da
Potência protectora, quer como orga-nismo humanitário imparcial,
ou com base no seu direito de iniciativa estatutário. O CICV teve
sempre como preocupação prioritária a actua-ção em favor das
vítimas, antes de proceder à estrita qualificação da sua
intervenção no plano jurídico.
No desenrolar de um conflito,
sempre que o CICV constata a ocor-rência de acções ou omissões
contrárias ao DIH, a sua actuação obe-dece às seguintes
directivas:
a)O apuramento dos factos
Compete aos delegados presentes nos
campos de batalha apurar os factos eventualmente susceptíveis de
constituir violações das Con-venções e Protocolos. Mas eles
apenas podem participar num pro-cesso de inquérito na sequência
de um acordo ad hoc entre todas as Partes interessadas e
caso o processo ofereça todas as garantias de imparcialidade, a
fim de não comprometer as suas actividades ope-racionais em
benefício das vítimas.
b)A recepção e transmissão de
queixas
O CICV está habilitado a receber
todas as queixas por alegadas vio-lações das convenções
humanitárias. Estas queixas podem ser pro-venientes quer das
Partes no conflito quer das suas sociedades nacionais. Elas serão
transmitidas à outra Parte desde que não exista qualquer outra
via de encaminhamento e caso o interesse das vítimas o exija. As
queixas podem igualmente ser provenientes de terceiros (governo,
sociedades nacionais, ONGs, organizações internacionais) e,
nesse caso, não serão transmitidas, mas sim estudadas.
c)As diligências apropriadas
O CICV pode empreender todas as
diligências para fazer cessar as violações do DIH ou impedir
que elas sejam cometidas. Estas dili-
controlo do respeito pelo
Direito Internacional Humanitário 141.
gências têm, em princípio,
carácter confidencial, já que a discrição parece ser o método
de trabalho mais adequado para garantir pro-tecção:
o que conta, antes do mais, é não
prejudicar o interesse das vítimas. Estas diligências
confidenciais – que levam o CICV a dizer o que faz, mas não o
que vê – podem variar de nível e de forma segundo a gravidade
das violações; vão da simples admoestação verbal ao
relatório detalhado do Presidente do CICV às autoridades do
Estado interessado.
Quando, não obstante a
realização de diligências confidenciais, ocorram violações
graves e reiteradas, e desde que o interesse das pessoas afectadas
ou ameaçadas o exija, o CICV reserva-se o direito de tomar
posição pública a partir do momento em que a ocorrência de
tais violações seja apurada de forma segura e possa ser
compro-vada.
Estes comunicados ou apelos
públicos são muito mais fre-quentes do que o que se poderia
supor. O CICV recorreu a eles em 1967 aquando da utilização de
gases tóxicos no Iémen, em 1973 para denunciar as violações
dos diferentes beligerantes após o cessar-fogo na Guerra de
Kippur, em 1979 no conflito entre a Rodésia e o Zim-babwe,
em 1982 aquando dos massacres no
Líbano nos campos de Sabra e Chatila, em 1983 e 1985 para
recordar a todos os Estados a sua obrigação de respeitar e de
fazer respei-tar o Direito Humanitário no decorrer do con-flito
Irão-Iraque; e nos anos 90 estes apelos multiplicaram-se 9 ,
nomeadamente a propósito da Somália, do Rwanda e da
ex-Jugoslávia.
9 Sobre estes diversos apelos,vide
Sandoz,Y.,«Appels du CICR dans le cadre du conflit entre l ’Irak
e l ’Iran » (em português:«Apelos do CICV no quadro do
conflito entre o Iraque e o Irão »),AFDI,1983,pp.161-173; e
Russbach,O.,op.cit.,pp.47 ss.
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