O direito
ao estatuto de prisioneiro de guerra
A sorte dos combatentes capturados
pelo inimigo esteve durante muito tempo sujeita à regra vae
victis, uma vez que eram conside-rados responsáveis pelos
sofrimentos infli-gidos às populações por terem servido uma
causa injusta. Os soldados vencidos eram, na pior das hipóteses,
mortos e, na melhor, reduzidos à escravatura ou, durante a Idade
Média, sob a influência da cavalaria, por eles era pedido um
resgate. O desaparecimento do conceito medieval de guerra justa e
o apare-cimento de Estados independentes transfor-maram o
significado e o alcance da guerra, que se tornou numa prerrogativa
dos Estados.
Correlativamente, a captura de
guerra dei-xou de ser entendida como um castigo – capi-tis
diminutio – passando a ser vista como uma privação de
liberdade, necessária a fim de diminuir o potencial de guerra do
ini-migo, de carácter temporário, dado que os motivos que
legitimam a detenção apenas existem no decorrer do
conflito..Mas, durante muito tempo, os Estados recusaram-se a
limitar os seus direitos sobre os prisioneiros de guerra e apenas
alguns textos nacio-nais tentavam suavizar a sua situação. Foi
necessário esperar pelas Conferências de paz de Haia de 1899 e
1907 para assistir ao início da consagração convencional
internacional do estatuto de prisioneiro de guerra 2 . Os
diferentes tratados afirmaram, mediante contributos sucessivos,
que a captura de guerra não deve ser infamante, porque o
combatente não é encarcerado a título de sanção por ter sido
vencido 3 e que convém conciliar unicamente um imperativo de
segurança (a necessária neutralização do inimigo) com um
impera-tivo de humanidade (a assistência e protecção de uma
pessoa pri-vada da protecção do seu Estado).
A admissão ao estatuto de
prisioneiro de guerra está condicionada pela natureza do conflito
e pela situação da pessoa caída em poder do inimigo.
1.SEGUNDO A NATUREZA DO CONFLITO
É conveniente considerar, por um
lado, as situações de CAI e dos GLN, relativamente às quais o
estatuto de prisioneiro de guerra se encontra expressamente
previsto e, por outro, as hipóteses de CANI e de tensões e
distúrbios internos, onde as pessoas priva-das de liberdade não
podem beneficiar desse estatuto.
Os CAI e GLN
A terceira Convenção aplica-se ipso
facto a partir do momento em que as pessoas que pro-tege caem
em poder do inimigo, no quadro de uma guerra declarada, de
qualquer outro con-flito que surja entre dois ou mais Estados
Partes na Convenção – mesmo se o estado de
102 Direito Internacional umanitário
À semelhança do Decreto revolucionário francês de 4 e 20 de
Junho de 1792 (artigos 1.o e 2.o ) e das instruções de 1863
(Código de Lieber)destinadas às forças armadas dos Estados
Unidos em campanha.
2 Desde logo com o Regulamento
relativo às leis e costumes da guerra em terra,adoptado em Haia,a
18 de Outubro de 1907 (artigos 4.o a 20.o );depois com as
Convenções de Genebra de 27 de Julho de 1929 e de 12 de Agosto
de 1949 relativas ao tratamento dos prisioneiros de guerra;por
fim,com o primeiro Protocolo adicional.
3 Pilloud (Claude):«Prisonniers de
guerre »(em português: «Prisioneiros de guerra »),in Les
dimensions internationales du Droit humanitaire,Institut
Henry-Dunant, 1986,p.202.Cuvelier (Benoît):
«Le régime juridique des
prisonniers de guerre »(em português:O regime jurídico dos
prisioneiros de guerra »), Etudes internationales,número
especial,Dezembro de 1992
..guerra não for reconhecido por
um deles – e em qualquer situação de ocupação da totalidade
ou parte do território de um Estado Parte, ainda que esta
ocupação não encontre nenhuma resistência militar 4 .
Os CANI e as tensões e distúrbios
internos
Nenhuma disposição regula o
destino dos combatentes caídos em poder do inimigo, não podendo
eles ser assimilados a prisioneiros de guerra. No caso dos CANI, a
única protecção de que podem bene-ficiar é a que consta do
artigo 3. o comum (interdição do homicídio, das mutilações,
dos tratamentos cruéis, da tortura, das ofensas à dig-nidade, de
violações de determinadas garantias processuais) e, se for caso
disso, do artigo 5. o do segundo Protocolo sobre as garantias
con-cedidas às pessoas privadas de liberdade. Assim, com base nas
dis-posições do artigo 3. o comum e no seu direito de iniciativa
humanitária, o CICV ofereceu os seus serviços e os da Agência
Central de Pesqui-sas tendo em vista facilitar o registo das
pessoas sob captura e a trans-missão de mensagens entre
familiares por ocasião dos conflitos do Chade, Nicarágua, El
Salvador e, mais recentemente, no Ruanda e na Bósnia. Mas, em
todas as hipóteses, está apenas em causa um mínimo humanitário
e a ausência de disposições relativas ao estatuto dos
com-batentes capturados no decorrer de um conflito armado não
inter-nacional é uma das mais gritantes lacunas do DIH. Resulta,
pois, que, em certos conflitos, se opera uma extensão do direito
aplicável: assim, em 1992, na Bósnia-Herzegovina, as três
partes no conflito, sér-vios, croatas e bósnios decidiram
respeitar determinadas disposições e princípios aplicáveis ao
direito dos conflitos armados internacio-nais, nomeadamente os
princípios da terceira Convenção.
No caso de tensões e distúrbios
internos, os instrumentos conven-cionais de DIH não se aplicam,
mas o CICV interessa-se pela cate-goria de pessoas privadas de
liberdade que são os presos políticos e as pessoas detidas por
razões de segurança. Os delegados do CICV podem assim visitar
qualquer pessoa que lute para fazer valer as suas opiniões ou
cumprir
O direito ao estatuto de
prisioneiro de guerra 103
4 Artigo 2.o comum
.. aquilo que considera ser
o seu dever e que, uma vez capturada e detida nestas
circunstâncias, se encontra nas mãos de um poder que a trata
como um inimigo 5
.
2.SEGUNDO A SITUAÇÃO DA PESSOA
Com a terceira Convenção, a
noção de prisioneiro de guerra passou a ficar ligada à de
«pessoa caída em poder do inimigo» e não mais à de «pessoa
capturada». Trata-se de um progresso, pois esta nova abordagem
permite a atribuição do estatuto a todos aqueles que são feitos
prisioneiros fora de combate, nomeadamente em caso de ren-dição
ou capitulação em massa. É ainda fundamental fazer a
distinção entre combatentes regulares e irregulares, uma vez que
apenas os pri-meiros têm direito ao estatuto e tratamento
privilegiado de prisio-neiro de guerra, ficando os segundos
sujeitos a penas, por vezes bastante duras, apenas pelo facto de
terem armas em seu poder.
Os beneficiários
O estatuto de prisioneiro de guerra
é concedido às pessoas que cabem na definição de combatentes 6
. Por outro lado, têm direito ao tratamento de prisioneiro de
guerra, mas não ao estatuto: os parlamentares detidos
temporariamente, os militares internados em território ocupado ou
neutro, o pessoal sanitário e religioso em poder da Potência
detentora, bem como as crianças soldados 7 . Em caso de dúvida,
todas as pes-soas que tenham participado nas hostilidades e caído
em poder do inimigo se presumem prisioneiros de guerra enquanto o
seu estatuto não for determinado por um tribunal com-petente 8 .
Os excluídos
As categorias de pessoas que hajam
tomado parte nas hostilidades e fiquem excluídas da
104 Direito Internacional umanitário
5 Nos nossos dias,a grande maioria
das visitas efectuadas pelo delegados realiza-se no contexto
de situações de tensão e distúrbios internos (vide,por
exemplo,ao Ruanda após 14 de Julho de 1994, à Guatemala,a
Caxemira e ao Peru).
6 Vide definição de combatente,
capítulo 6.
7 Respectivamente,artigo 33.o do
Regulamento de Haia;artigo 4.o , parágrafo B,n.o s 1 e 2
CIII;artigo 28.o §2 CI e 33.o §1 CIII;artigo 77.o §3 PI.
8 Artigos 5.o §2 Convenção III e
45.o §1 PI
..possibilidade de beneficiar do
estatuto são, de facto, pouco nume-rosas. Em primeiro lugar,
temos o combatente irregular, isto é, aquele que não transporta
armas abertamente (mesmo no caso de guerri-lheiros) e que pode
assim, em caso de captura, ver instaurada acção penal contra si
pelo simples facto de haver transportado tais armas.
Existem depois o espião, o
mercenário 9 e o desertor caso a deserção se registe antes da
captura – ela é ipso jure impossível durante o
cati-veiro, tendo em conta a intangibilidade do estatuto do
prisioneiro de guerra – pois assim a pessoa se transforma num
não combatente e, a fortiori, o fugitivo. Recordemos, por
último, o caso particular das pessoas que, tendo cometido crimes
de guerra antes de serem cap-turadas e mesmo sendo condenadas,
permanecem sob protecção da terceira Convenção 10 . Se pode
parecer chocante que um tratado de vocação humanitária exclua
determinadas categorias de pessoas da protecção estabelecida 11
, há que reconhecer que, de qualquer forma, as hipóteses de
exclusão são bastante raras e não esquecer que, caso as pessoas
detidas não estejam sob a pro-tecção concedida pela terceira
Convenção (prisioneiro de guerra) ou da quarta Conven-ção
(detidos civis), beneficiam, pelo menos, das garantias
fundamentais do artigo 75. o do primeiro Protocolo ou, no mínimo,
dos prin-cípios de Direito das gentes tal como resultam da
aplicação da cláusula de Martens.
9 Vide capítulo 6 §1.
10 Com as reservas feitas na época
pelos Estados da Europa de Leste, Vietname,República Popular da
China e Coreia do Norte,reservas pelas quais o estatuto de
prisioneiro de guerra é recusado aos combatentes condenados por
crimes de guerra ou crimes contra a Humanidade.
11 Bugnion (Fr.),op.cit.,pág.733.
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