Características
do Direito Internacional Humanitário
Além de ser
um Direito sui generis,
o DIH é igualmente um ramo do
Direito Internacional Público.
1.UM DIREITO SUI GENERIS
O DIH é
acima de tudo um direito autônomo, mesmo
que a priori pareça
paradoxal a existência de um direito
da guerra, já que por um lado a
guerra consiste, na maior parte dos
casos, numa violação do direito e por
outro, por ser esta mesma violação que vai
condicionar a aplicabilidade do Direito Humanitário.
O DIH
consiste efetivamente em querer
combinar a água e o fogo, mas como
refere o Professor Eric David , a guerra é
como o comércio ou o amor, trata-se de uma
atividade humana e, enquanto tal, pode
dar origem a uma regulamentação!
Consiste numa
disciplina autônoma da mesma forma
que o direito da família ou o direito
de expropriação por utilidade pública!
O DIH, sendo
acima de tudo um direito de conciliação e de persuasão, parte de uma concepção racional e
razoável das situações de
beligerância e dos comportamentos humanos.
A
Declaração de São Petersburgo de
1868 afirmava que o único fim legítimo da guerra consiste
no enfraquecimento das forças militares do inimigo. No seguimento
desta lógica, Jean Pictet identificou 2 os dois postulados da guerra que conduzem a um raciocínio
específico no plano humanitário.
O primeiro
postulado consiste no fato de a guerra não ser fim, mas antes
um meio. A guerra é uma situação contrária ao estado normal da sociedade que é a paz, só sendo
justificável pela sua necessidade na
medida em que se trata de um meio (do último meio) para que um Estado faça outro ceder à sua vontade. Freqüentemente
os meios diplomáticos
e as pressões econômicas são suficientes para alcançar este
fim. Mas por vezes tal não se passa assim. Desta forma, o recurso
à força consiste no emprego da pressão necessária para obter
esse mesmo resultado. Os meios militares devem ser proporcionais e qualquer tipo de violência que não seja
indispensável para fazer um Estado
ceder é desprovida de objeto. Ou, pior ainda, é
cruel e estúpida.
O segundo
postulado considera a guerra como o meio de destruição do
potencial de guerra do inimigo. Este potencial de guerra é
composto por dois elementos: os
recursos em material e os recursos em número
de homens. Tratando-se do potencial humano, isto é dos
indivíduos que contribuem diretamente
para o esforço de guerra, só existem três
meios para o diminuir: matar, ferir ou capturar. No entanto, no que diz respeito ao seu rendimento
militar, estes três processos são
(praticamente) equivalentes, já que todos eles eliminam as
forças vivas do adversário.
Porém, no
plano humanitário, identificam-se quatro
conseqüências fundamentais para as vítimas
de guerra: a humanidade exige que seja
dada preferência à captura sobre o feri-
Direito
Internacional humanitário
2 Pictet
(J.):«Le Droit humanitaire et la
protection des victimes de la guerre
»,A.W.Sijhoff –Leiden,1973, p.33 e
seguintes (em português: «O Direito
Humanitário e a proteção das
vítimas da guerra »)
..mento e ao
ferimento sobre a morte. A humanidade exige que se poupem, tanto quanto possível, os não combatentes
(os que não combate ou que já não combatem) já que estes são
desprovidos de qualquer interesse
militar. A humanidade exige ainda que se fira da forma
menos grave e menos dolorosa. Por fim, a humanidade requer que
a captura de guerra seja o mais suportável possível, já que
esta não equivale a um castigo, mas
simplesmente a um meio de impossibilitar o
adversário de ferir. Concretamente isto significa que, no caso
de ser possível colocar um combatente fora de combate fazendo-o prisioneiro, não se deve feri-lo. Se o
podemos colocar fora de combate ferindo-o,
não devemos matá-lo. E se um ferimento ligeiro é suficiente para o colocar fora de combate, não lhe
devem ser infligidos ferimentos
graves 3 .
Devemos assim
ter uma abordagem racional do DIH. Apesar de os princípios
por si estabelecidos não serem sempre respeitados, são geralmente
bem aceites pelos Estados e mesmo pelos estados-maiores.
Em certas
hipóteses, o Direito Humanitário constitui mesmo o fundamento
ou objetivo das missões das forças armadas, uma prova
da crescente necessidade de estas terem em consideração aquele
ramo do direito. Existe, por outro lado, uma lógica militar intrínseca nas vantagens que cada
beligerante retira da redução da amplitude
e gravidade dos prejuízos e sofrimentos infligidos ao inimigo,
já que o conhecimento dos riscos corridos e a confiança nas regras aplicáveis melhoram a força de um
exército. O interesse das duas partes é similar, e o DIH surge então como
um direito do mal menor e não do bem
maior 4 . A aplicação dos seus
princípios por um militar, que não é
assimilada a uma lei do mal menor, não leva em
caso algum à renúncia do dever de patriotismo.
A própria
existência deste direito tem por conseqüência
que tendo certos Estados e certos atores
da guerra conhecimento do
Características do
Direito Internacional Humanitário 27
3 CICR:«Les
armes de nature à causer des maux
superflus ou à frapper sans
discrimination », Rapport,Genève,1973,p.27 (em português:«As armas
que
causam danos supérfluos ou que
atingem sem discriminação »).
4 David
(E.):«Evolution du Droit humanitaire
en un droit du moindre mal »,in:Le
Droit international humanitaire,Problèmes
actuel et perspectives d ’avenir,I.F.D.H., les Cahiers de Droit public,1987,
p.23
e seguintes (em português: «Evolução
do Direito Humanitário para um
direito do mal menor »)
..DIH, o
tentarão respeitar. Outros Estados e outros atores, de início largamente maioritários, irão ignorá-lo,
mas existirá então um fundamento indiscutível
para condenar moral e penalmente a sua atitude.
O DIH deve de
ora em diante ser integrado como uma componente
táctica e estratégica na condução das hostilidades.
2.UM RAMO DO
DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO
O DIH é
igualmente um ramo do Direito Internacional Público e, enquanto
tal, apresenta as características deste ramo do direito, encontrando-se
nomeadamente submetido à iniciativa dos Estados e
à sua boa vontade, sendo por isso um direito de coordenação e não de subordinação, e apresentando
naturalmente fraquezas no plano das
sanções. Mas os juristas sabem que o direito não é
obrigatório por ser impor penas, mas
antes que é impõe penas por ser obrigatório
…
Enquanto
divisão do Direito Internacional Público, o DIH tem fontes que se inscrevem nas fontes formais
enunciadas no artigo 38. o , n.o 1 do
Estatuto do TIJ: a par das Convenções humanitárias de 1949
e de 1977, convém sublinhar o papel do costume internacional e dos princípios gerais de direito
reconhecido pelas nações civilizadas, que
desempenham um papel essencial de complemento e de
colmatação das lacunas ou da não aplicação do direito
convencional. Convém acrescentar
ainda que o DIH tem um campo de aplicação
especial alargado por três mecanismos. Em primeiro, o DIH permite
que os beligerantes concluam acordos especiais sobre todas as
questões que possam ser reguladas de forma particular. Estes
acordos especiais 5 , que não devem
prejudicar ou limitar os direitos das
pessoas protegidas, permitem
implicitamente ir para além da proteção
convencional que consiste freqüentemente em
simples obrigações míni-mas a
cargo das Partes 6 . Em segundo lugar, o direito
de Genebra rejeita a cláusula si
omnes
28 Direito
Internacional humanitário
5 Artigo
comum 6.o /6.o /6.o /7.o . 6
Assim,durante o conflito das Malvinas/Falklands,o
Reino Unido e a Argentina criaram uma
zona neutra no mar (a «Red Cross Box
») com um diâmetro de cerca de 20 milhas marítimas que permitiu,
sem
criar entrave às operações militares,estacionar
os navios- -hospitais e efetuar trocas de feridos entre os dois
beligerantes..
e a exceptio
non ademppleti contractus: os
textos são assim aplicáveis em
qualquer circunstância desde que exista um conflito armado.
Mesmo quando
um dos beligerantes não seja Parte nas Convenções, as
Potências nelas Partes permanecerão a elas vinculadas nas suas relações recíprocas 7 . Para além de que
a obrigação de um beligerante respeitar
o DIH não depende do respeito deste ramo do direito pelo adversário,
justificando-se esta não reciprocidade pela primazia do princípio
de proteção das vítimas e pela igualdade dos beligeran-tes 8 , que determinam a igual submissão dos
beligerantes ao direito, independentemente
da legitimidade da causa pela qual lutam …
Em terceiro
lugar, os direitos conferidos às pessoas protegidas são
inalienáveis e ninguém pode ser
coagido a renunciar voluntariamente à
proteção convencional concedida. A adoção desta disposição
9 não foi evidente já que, para
proteger a pessoa humana, se lhe tem de
negar um atributo essencial: a liberdade. Mas os inconvenientes de uma regra absoluta de inalienabilidade
(isto é, uma regra sem exceção)
são menores em relação aos riscos gerados por uma regra menos
estrita: por um lado os indivíduos conservam contra a sua vontade
um estatuto convencional digno de um ser
humano e por outro, poderiam
renunciar à proteção convencional quando submetidos às
pressões da potência detentora 10 .
O Direito
Internacional Humanitário e o Direito
Internacional dos Direitos Humanos, que
têm ambos o indivíduo como o seu objeto,
desenvolveram-se inicialmente de forma
separada, já que os seus período e campo
de aplicação não eram coincidentes.
Mas foi
precisamente esta autonomia que conduziu
a uma complementaridade entre estes
dois ramos do direito 11 . Com efeito, se um
dos dois sistemas jurídicos não for aplicável, o
outro pode sê-lo de forma autônoma:
os direitos
humanos aplicam-se nas situa-
do Direito
Internacional Humanitário 29
7 Artigo 2.o §3
comum et 1.o do PI.
8 Artigo 5.o
preâmbulo e 96.o §3 PI.
9 Artigo comum 7.o
/7.o /7.o /8.o .
10 Deve ser
feita uma reserva a
propósito do
dos
prisioneiros de guerra contra a
sua vontade,vide capítulo 12 §2.
11
Calogeropoulos-Stratis (A.):«Droit humanitaire,droits
de l ’homme et victimes
des conflits armés »,Etudes et
essais sur le droit international humanitaire
et sur les principes de la
Croix-Rouge,en l ’honneur de
Jean Pictet,M.Nijhoff,1984, pp.655-662
(em português:«Direito Humanitário,Direitos
Humanos e vítimas de
conflitos armados »)
..ções em
que o direito humanitário não é aplicável. Por sua vez o DIH aplica-se quando o Estado interessado
invocou as cláusulas de derrogação à
aplicação dos direitos humanos, já que nessa hipótese existe normalmente um conflito armado 12 . Foram
assim surgindo, de forma progressiva,
uma certa convergência e complementaridade, inicial-mente com
a quarta Convenção 13 , e posteriormente com a adoção dos
Protocolos Adicionais, que contém inúmeras disposições visando
a proteção dos direitos humanos em
período e conflito armado 14 .
Hoje em dia
esta convergência exprime-se através de três princípios comuns aos dois ramos do direito: o
princípio da inviolabilidade,
que garante a
todo o indivíduo não combatente o direito de respeito pela
sua vida, integridade física e moral; o princípio da não
discriminação no acesso aos
direitos protegidos; e o princípio da segurança, que
implica nomeadamente o respeito pelas habituais
garantias judiciárias.
Apesar desta aproximação a um núcleo duro
irredutível, os dois ramos do
direito continuam a ter as suas especificidades
no conteúdo dos direitos enunciados,
na sua aplicação e também no fato de serem consagrados em instrumentos
jurídicos
distintos, nos quais nem todos os Estados
são Partes.
O Direito
Internacional Humanitário surge então
como um direito autônomo enunciado numa
multiplicidade de disposições e dotado de
uma prática infelizmente abundante.
12 exceção feita às tensões e distúrbios
internos que constituem um «no man
’s land »do Direito Humanitário,em
que mesmo o direito internacional dos
direitos humanos pode não ser
aplicável, vide capítulo 5.
13 Vide
nomeadamente artigo 27.o sobre o
respeito da pessoa humana e o caráter
inalienável dos seus direitos
fundamentais.
14 Vide
nomeadamente o artigo 75.o PI sobre
as garantias fundamentais e os
artigos 4.o ,5.o e 6.o do PII, respectivamente
sobre as garantias fundamentais das
pessoas que não participam ou que
já não participam nas
hostilidades,os direitos das pessoas
privadas de liberdade e as garantias
em matéria de ações e de infrações
penais.
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