
O Sistema Africana de
Proteção dos
Direitos Humanos e dos Povos
José H.
Fischel de Andrade
Resumo
O tema central
dos Direitos Humanos em África é tratado pelo autor através da
seguinte abordagem: Proteção dos Direitos Humanos e dos Povos na África;
os Direitos Humanos e dos Povos nos períodos pré-colonial e colonial;
os Direitos Humanos e dos Povos face à independência dos Estados
Africanos e o papel da O.U.A. e a promoção e proteção até meados
dos anos 70; a O.U.A. e a exegese da Carta Africana dos Direitos Humanos
e dos Povos (Carta de Banjul); o significado do preâmbulo da Carta de
Banjul; o caráter normativo da Carta de Banjul; composição, organização
e competência da Comissão Africana de Direitos Humanos e dos Povos.
A entrada em vigor da
Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos,
também conhecida como Carta de Banjul, aos 21
de outubro de 1986, consolidou o terceiro sistema
regional de proteção internacional dos direitos
humanos. Trata-se, sem lugar a dúvidas, de um
marco nos esforços que vêm sendo feitos, tanto
a nível global quanto regional, com vistas à promoção
e ao respeito dos direitos humanos. Não obstante,
o sistema africano encontra obstáculos de ordem
histórica, política, estrutural e jurídica que
podem comprometer sua eficácia.
A análise destes
fatores se mostra sobremaneira importante para a compreensão deste
sistema como um todo; o que deve ser feito respeitando-se suas
peculiaridades e se dando especial atenção às comparações com os
sistemas regionais e globais.
Isto posto, o objetivo
deste artigo é examinar a evolução da proteção dos direitos humanos
e dos povos na África, realçando-se suas particularidades –
especialmente as de cunho histórico-político -, assim como analisar a
Carta de Banjul, mormente sob o prisma de sua real eficácia jurídica.
1. Evolução da Proteção
dos Direitos Humanos e dos Povos na África
A)
Os direitos humanos e dos povos nos períodos pré-colonial e
colonial
A África durante seu
período pré-colonial era composta de cidades independentes
e principados, reinos e impérios, sendo suas relações
baseadas na soberania, independência e cooperação.
Apesar de não se homogênea, nem cultural nem politicamente,
havia uma série de características comuns que,
ainda hoje, se diferenciam de forma destacada
dos padrões ocidentais.
Essas características
podem ser resumidas, grosso modo, no conceito de ideal comunitário.
Este se distingue do mundo ocidental em função de três pontos
cruciais: a) as pessoas não se vêem como indivíduos, nem se preocupam
com seus direitos individuais, sendo a cidadania atingida em razão do
papel da pessoa na comunidade, estando todas preocupadas com o grupo,
com os direitos étnico-culturais; b) as decisões políticas são
tomadas através de consenso comunitário, devendo o chefe consultar os
mais velhos, que representam o povo – destaca-se a possibilidade de
“oposição leal”, isto é, os leais fazem parte do grupo e os
oponentes, por definição, não são leais; c) a riqueza é
automaticamente redistribuída, não havendo conceito de propriedade
privada – o que faz com que o homem reco seja respeitado somente se
ele divide seus pertences com seus familiares e príncipes de seu grupo
étnico-social. Nota-se, portanto, que o senso comunitário tinha como
contrapeso dos direitos e privilégios certos deveres, que poderiam ou não
se refletir na violação de outros direitos.
Outros fatores de
extrema importância em qualquer organização sócio-política pré-colonial
africana eram a família e a vila, ou a tribo. A terra contava pouco e
por essa razão, para os Estados africanos, fronteiras eram algo móvel,
flexível, indefinido.
Discutir se estes conceitos
são tipicamente africanos ou não, isto é, se são
eles encontráveis na maioria das sociedades tipicamente
agrárias, marcadas pelas relações pré-capitalistas
em estruturas não-estatais, não é importante.
Essencial, isto sim, é dar-se conta que estas
concepções mantiveram-se por séculos e que, ainda
hoje, influenciam a tomada de decisões – seja
política ou jurídica – das sociedades africanas.
A dominação e influência
estrangeiras – consolidadas através da colonização – tiveram
impacto imensurável no continente africano. Um ex-Ministro da Educação
da República de Cameroun, e conceituado jurista, define bem algumas das
consequências do período colonial: a participação do continente na
vida internacional foi reduzida abruptamente, extinguindo-se
praticamente o desenvolvimento de idéias, conceitos e princípios políticos;
o conceito tradicional de que a vida humana era sagrada foi
ridicularizado; o novo sistema social mostrou uma face diferente,
distante do indivíduo e do espírito familiar; o respeito pela
dignidade humana passou a significar respeito pelo homem branco, posto
que os valores dominantes passaram a ser ocidentais; foi, por fim, o término
da crença nos valores humanos.
O período colonial
significou a diminuição, senão a extinção por completo, do exercício
dos direitos humanos. Não havia respeito nem aos direitos civis e políticos,
nem tão pouco aos econômicos, sociais e culturais. Não houve, no
geral, preocupação por parte dos Estados Colonizadores quanto ao
desenvolvimento econômico de suas colônias – pelo menos até o início
da segunda Guerra, quando as exigências de estado de beligerância forçaram
uma consideração mais racional de seus recursos.
Não obstante, apesar
de as potências colonizadoras não estarem preocupadas
em conceder aos cidadãos das terras colonizadas
os mesmos direitos facultados aos de seus territórios,
e até mesmo levando-se em consideração todas as
atrocidades cometidas, não se pode negar certos
aspectos positivos que tiveram lugar durante a
época da colonização. Dentre eles, pode-se mencionar
a eliminação de diversos conflitos inter-étnicos;
a abolição, onde existia, da escravidão doméstica
africana; e a detenção da expansão dos impérios
africanos.
Após a Segunda Guerra
Mundial, a situação política no continente africano mudou
consideravelmente, haja vista a aquisição da independência de seus
Estados – processo ocorrido, principalmente, durante as décadas de 60
e 70. A influência destes Estados deu oportunidade ao estabelecimento
de uma organização regional nos moldes já existentes em outros
continentes; e que, como suas análogas, teve papel fundamental no
desenvolvimento da proteção dos direitos humanos – apesar da
diversidade, muitas vezes, de objetivos e métodos utilizados.
B) Os Direitos Humanos
e dos Povos face à independência dos estados africanos e o papel da
Organização da Unidade Africana na sua promoção e proteção até
meados dos anos 70.
Quando a Carta
das Nações Unidas foi adotada e aberta à assinatura,
em 1945, somente quatro Estados africanos eram
independentes, quais seriam, Egito, Libéria, Etiópia
e África do Sul. À medida que os novos Estados
africanos adquiriam sua independência, era natural
que fossem manifestando sua adesão a todos os
instrumentos globais – não só para afirmarem sua
posição de Estados soberanos, como também para
se inserirem no cenário mundial. Entretanto, existia
uma certa artificialidade quanto ao real grau
de comprometimento destes novos Estados com certos
instrumentos concertados no plano global. Exemplo
pertinente é a Declaração Universal dos Direitos
Humanos, de 1948, à qual os Estados Africanos
sempre manifestaram sua adesão, tendo-a respeitado
raramente.
Os motivos que
ensejam este comportamento são de fundamentação ora histórico-política,
ora econômica. A alegação sempre feita é a de que os Estados
africanos não estavam presentes quando da redação destes documentos,
e que, consequentemente, faz com que estes não tenham sua legitimidade
global que têm como resultado a não observância destes instrumentos,
como o desmantelamento dos sistemas políticos multipartidários
herdados da época colonial e a sua substituição por sistemas
unipartidários ou regidos por ditaduras militares; a impossibilidade,
em função dos sistemas políticos mencionados, do respeito aos
direitos civis e políticos, tais como liberdade de associação, de
imprensa, eleições regulares, direito à vida, propriedade, etc.;
violações massivas de direitos em razão de golpes de estado e de
situações de emergência; não reconhecimento de realidades étnicas e
religiosas distintas da adotada oficialmente, só para mencionar alguns.
Depararam, pois,
os Estados africanos, no período pós-guerra, com
duas realidade difíceis de serem conciliadas;
a mundial, de (re)construção, de (re)estruturação
de esforços com vistas, inter alia, à proteção,
nos mais diversos aspectos, dos direitos humanos;
e a continental, de paulatina libertação das metrópoles,
que comportava uma construção, uma estruturação
completa, iniciada quase do nada, tanto política,
quanto econômica e jurídica (se comparadas com
padrões ocidentais). Houve, portanto, um momento
no qual os valores e realidade ocidentais iam
de encontro aos africanos.
Foi tendo como
pano de fundo esse contexto conturbado, de emancipação e afirmação
políticas, que tomou força, principalmente por volta de 1958, o
movimento pan-africano. Este culminou com a adesão da Carta da Organização
da Unidade Africana em 1963, quando 32 Estados africanos já eram
membros da Organização das Nações Unidas. Hoje em dia são 53 os
Estados membros da OUA, com a adesão da África do Sul.
A Carta da OUA
tem sido defendida como “uma Carta para a Libertação”, visto que
verdadeiras preocupações dos Estados africanos, nela contidas, serem
relativas à unidade africana, à não-interferência nos assuntos
internos dos países – tomados individualmente -, e à libertação, não
só do sistema colonial como também do neocolonial. Esta perspectiva
fez com que a Carta da OUA fosse constantemente criticada como sendo
nada mais que uma formulação de direitos dos Chefes de Estado, uma
institucionalização de um sindicato de Presidentes africanos, cuja
tarefa principal seria a normalização das relações de seus
“membros feudais”.
Um eminente
jurista afirma que a alta qualidade de vida prometida
pelos líderes africanos, antes e durante a criação
da OUA, não somente fracassou em sua totalidade,
como também encontram-se em rápido declínio as
características africanas de vida e cultura. Sustenta
ele, igualmente, que os padrões mínimos que antes
existiam – como inter alia a disponibilidade à
água, a um lugar para morar, o direito à vida
familiar e a um emprego – não são mais encontráveis
para a maioria dos africanos, estando estes sob
constrangimento tanto interno quanto externo,
o que não deixa muito espaço para o desenvolvimento.
A falta de
afinidade entre a OUA e os direitos humanos deve ser analisado tanto
histórica quanto politicamente. A expressão “Direitos Humanos” não
figurava no projeto etíope, de 17 de maio de 1963, que serviu como base
de discussão, e que é preferido em relação ao projeto apresentado
por Ghana. O máximo que se conseguiu inserir na Carta da OUA a seguinte
cláusula preambular:
“Persuadidos
de que a Carta das Nações Unidas e a Declaração Universal dos
Direitos do Homem, a cujos princípios reafirmamos nossa adesão,
oferecem uma base sólida para uma cooperação pacífica e frutuosa
entre nossos Estados”.
A referência
feita à Carta das Nações Unidas e à Declaração
Universal dos Direitos Humanos, em disposição
preambular, teve como escopo não comprometer os
Estados membros quanto à observância daqueles
direitos, haja vista quedarem-se sob a rubrica
de “desejos”, não havendo, pois, obrigação jurídica
de os efetivar. Não obstante, a menção feita na
Carta constitutiva da OUA aos princípios de instrumentos
concentrados em fórum global, não qual não houve
participação de grande maioria dos estados africanos,
impossibilita todo e qualquer rechaço, por parte
dos membros da OUA, dos direitos lá enunciados,
sob o argumento de que estes mesmos Estados africanos
não participaram na sua elaboração (supra); o
que, consequentemente, solidifica o princípio
da universidade dos direitos humanos.
As esperanças
de respeito aos direitos humanos, baseado na disposição preambular
mencionada, não encontraram respaldo na realidade, principalmente em
razão dos princípios enunciados do Artigo III da Carta da OUA, que
destacam inter alia a não ingerência nos assuntos internos dos Estados
e o respeito pela soberania.
Foram
precisamente estes dois princípios que fizeram com que os direitos
humanos não fossem objeto de discussão por quase duas décadas nos órgãos
da OUA. Dessa forma, a OUA manteve-se indiferente frente a constantes e
massivas violações de direitos humanos, enfatizando sempre que se
tratava de assuntos internos dos Estados em questão, que o princípio
da não-interferência era um óbice para qualquer ação por parte da
Organização, e que a OUA não era um tribunal que pudesse julgar seus
membros por suas políticas internas.
A importância
dada aos princípios da soberania e da não interferência revela que na
prática da OUA houve constante ausência de interesse por parte da
maioria dos governos africanos em seu conjunto ou individualidade com
vistas a assegurar o efetivo respeito aos direitos humanos e às
liberdades fundamentais. Na verdade, ao se abrigarem sob o princípio da
não-interferência nos assuntos domésticos dos outros Estados, os
governos africanos não observavam o princípio básico de
responsabilidade coletiva que existe no campo da proteção dos direitos
humanos.
Este tipo de
atitude por parte dos Estados africanos começou a entrar em contradição
com os próprios objetivos da OUA. Isto porque os direitos humanos, que
eram utilizados como o punctum saliens da luta contra o colonialismo e o
apartheid, quando violados pelos Estados membros da OUA não encontram
proteção – podendo-se considerar como única exceção a tutela do
direito à autodeterminação.
A frequência
com que estas contradições ocorriam era preocupante. Os líderes
africanos usavam o slogan “Respeito pela dignidade humana” para
fortalecer a luta pela independência, mas ouvidavam tão logo assumiam
o poder.
A década de setenta
testemunhou violações condenadas por governos de países de distintos
continentes, como a expulsão das Uganda, pelo General Idi Amim Dada, de
britânicos de origem asiática, ou então a expulsão do Gabão, pelo
Presidente Oman Bongo, de cidadãos de Benin. Apesar da reprovação da
comunidade internacional, a OUA não se manifestou em nenhum destes episódios
– o que, naturalmente, teve como resultado uma gradual neutralização
de qualquer simpatia que existisse com relação a causas como o
anti-racismo e anti-colonialismo -, tendo sempre como motivo para este
procedimento o respeito pelo princípio da não-interferência.
Apesar do extremado
sentimento de ciúmes por parte dos governos africanos
com relação à sua soberania – então recém-adquirida
– alguns acontecimentos, tanto de ordem interna
quanto externa, ensejaram uma séria reflexão e
avaliação do seu papel – assim como do princípio
da não-interferência – no contexto político africano.
Internamente, afora as próprias violações cometidas
pelos Estados, que por si só já chamavam a atenção
mundial, teve fundamental importância a queda,
em 1978, de três ditaduras; quais sejam, a do
Imperador Jean Bokassa, da República Centro-Africana,
a do Presidente Nguéma Macias, da Guiné Equatorial,
e a do General Idi Amin Dada, da Uganda. Como
fator externo deveras importante, teve-se a “cruzada
pelos direitos humanos” iniciada, em 1979, pelo
então Presidente Jimmy Carter, como parte da política
externa norte-americana. Os Estados Unidos, assim
como diversos países ocidentais, começaram a condicionar
seus programas de assistência ao efetivo respeito
dos direitos humanos nos países beneficiários.
Ainda em nível externo, as Nações Unidas tiveram
papel sobremaneira importante, principalmente
através da promoção de eventos que chamaram a
atenção para a necessidade de se concertar um
sistema regional próprio para a proteção dos direitos
humanos na África (infra).
Estes acontecimentos
levaram os Estados africanos à ponderada conclusão de que somente com
a erosão (pelo menos parcial) do princípio da não-interferência e
soberania é que se tornaria viável falar-se de um eficaz sistema de
promoção e proteção de direitos humanos.
Foram estas as
principais barreiras superadas, no contexto da OUA, para o surgimento da
Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos.
C) A Organização da
Unidade Africana e a Exegese da Carta Africana dos Direitos Humanos e
dos Povos
Evento desuma importância
na história da OUA, e igualmente na da proteção
dos direitos humanos, a Conferência de Lagoa,
Nigéria, de 1961, deve ser destacada principalmente
pelo caráter precursor. Desta Conferência, na
qual participaram 194 países, advogados e professores
de Direito de 23 países africanos, assim como
de 9 países de fora do continente, uma das declarações
de maior importância é a que afirma:
“b) que, com o
objetivo de dar total efeito à Declaração Universal dos Direitos
Humanos de 1948, esta Conferência convida os governos africanos a
estudarem a possibilidade de se adotar uma Convenção Africana de
Direitos Humanos, de tal sorte que as Conclusões desta conferência
sejam salvaguardadas pela criação de uma Corte de jurisdição
apropriada, à qual todas as pessoas sob a jurisdição dos países
signatários terão recursos”.
Só após duas décadas
é que se implementou, apesar de parcialmente, este dispositivo.
Em maio de 1963, na
Conferência dos Chefes de Estado e de Governo Africanos, quando trinta
Estados Africanos assinavam a Carta constitutiva da OUA, a proposta de
uma Convenção Africana de Direitos Humanos foi novamente discutida.
Entretanto, os governos africanos preferiram desviar seus esforços para
outros assuntos, considerados prioritários”.
Da institucionalização
da OUA até a segunda metade de década de setenta,
todas as moções dirigidas com vistas à proteção
dos direitos humanos ficaram restritas a seminários,
conferências, simpósios, haja vista os princípios
da não-interferência e da soberania obstaculizarem
toda e qualquer tentativa de operalização protetora.
O pensamento de vários intelectuais era o de que
mesmo estes eventos de cunho acadêmico não geravam
os resultados positivos esperados, tornando-se
pouco provável uma mudança de perspectivas – prevalecia,
pois, o pessimismo.
Não obstante, em 1978,
uma Revolução movida pela Nigéria foi adotada na Sessão da Comissão
de Direitos Humanos da ONU, cujo escopo era precisamente requerer às Nações
Unidas assistência para o estabelecimento de instituições regionais
de direitos humanos.
Após quase um ano,
durante a 16ª Conferência dos Chefes de Estado e de Governo Africanos,
realizada em Monrávia, Libéria, de 17 a 20 de julho de 1979, o
Presidente Leopold Sedar Senghor, do Senegal, propôs uma Resolução
que levou à Decisão 115/XVI (1979). Esta versava sobre a preposição
de um esboço preliminar, por um grupo de peritos, de uma Carta Africana
dos Direitos Humanos e dos Povos, a qual vislumbraria, inter alia, o
estabelecimento de órgãos para a promoção e proteção destes
direitos.
Logo em seguida, entre
10 e 21 de setembro de 1979, a pedido da Assembléia
Geral e da Comissão de Direitos Humanos da ONU,
e a convite do governo da Libéria, o Secretário-Geral
das Nações Unidas organizou em Monróvia um seminário
sobre o estabelecimento de comissões de direitos
humanos, com especial referência à África. Uma
de suas mais importantes conclusões sustenta que
o princípio da não-interferência nos assuntos
internos de um Estado soberano não deveria excluir
a ação internacional quando da violação dos direitos
humanos. Não obstante, considerou-se que a função
principal da Comissão Africana de Direitos Humanos
deveria ser primariamente promocional, posto que
se constituiria na informação à população dos
seus direitos.
Foi em Dakar, de 28 de
novembro a 8 de dezembro de 1979, que o grupo de peritos, mencionados na
Decisão 115/XVI (1979) (supra), se reuniu com o objetivo de preparar um
esboço preliminar da Carta Africana. Eles se surpreenderam ao se
deparar com um esboço preliminar da Carta Africana pelo secretariado da
OUA, o qual era bastante semelhante com os dispositivos das Convenções
Européias e Americana de Direitos Humanos. Ao rever a situação, a
Consultoria Jurídica da OUA e o grupo de peritos chegaram à conclusão
que a OUA necessita de um instrumento de direitos humanos diferente e
especial, o qual lidasse especificamente com problemas africanos:
devendo então ser dada ênfase aos direitos dos povos, aos deveres dos
indivíduos, ao órgão que promoveria e protegeria os direitos
constantes na Carta, à criação de obrigações pertinentes à segurança
do Estado, e aos métodos de aplicação dos dispositivos da Carta.
Outros fatores que influenciam na relação da Carta foram inter alia a
necessidade de se dar importância ao princípio da não-discriminação,
de se enfatizar os princípios e objetivos da OUA, de se mostrar que a
moral e os valores africanos ainda têm significância na sociedade
africana, assim como de se dar o merecido destaque aos direitos econômicos,
sociais e culturais.
Uma vez concluído o esboço
preliminar da Carta Africana, o Secretário-Geral
da OUA convocou uma reunião ministerial para aprová-la.
Esta realizou-se em Banjul, Gâmbia, de 9 a 15
de junho de 1980. Neste período apenas 11 artigos
foram revistos e adotados. Isto se deu, como bem
explica Emmanuel G. Bello, em função de dificuldades
mormente psicológicas, podendo-se mencionar a
falta de consenso, entre as delegações, no que
tangia à conceituação política de direitos humanos;
a atmosfera de suspeita entre as delegações; e
a postura cautelosa, que preferia manter o status
quo e não avançar progressivamente.
Frente ao relativo
fracasso desta primeira reunião ministerial, outra foi convocada para
se realizar entre 7 e 19 de janeiro de 1981, também em Banjul. Quarenta
dos então 50 Estados membros da OUA participaram nesta segunda reunião,
quando todos os artigos remanescentes foram revistos e aprovados.
A 18ª Conferência dos
Chefes de Estado e Governo da OUA, realizada de 17 a 26 de junho de 1981
em Nairóbi, Quênia, procedeu à aprovação in toto da Carta Africana,
que a partir de então ficou aberta à assinatura, adesão e ratificação
dos Estados membros da OUA.
II) Análise da Carta
Africana dos Direitos Humanos e dos Povos
Pouco mais de cinco
anos após a abertura à assinatura, entrava em vigor, aos 21 de outubro
de 1986, a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos. Este lapso
de tempo foi muito menor do que o esperado por muitos estudiosos, que
através de seus escritos se mostravam céticos quanto à sua pronta vigência.
A Carta Africana é dividida,
após seu preâmbulo, em três partes. Tratam estas,
respectivamente, dos Direitos e Deveres; das Medidas
de salvaguarda; e das Disposições Diversas. A
análise que se segue respeitará, por opção didática,
a mesma ordem encontrada na instrumento em estudo.
A) O significado do preâmbulo
da carta Africana
O preâmbulo da Carta
de Banjul merece destaque especial quando da análise desta. Ele serve
como um guia para os temas que são tratados na Carta, posto que foi
concebido como um dispositivo norteador da especificidade dos problemas
africanos pertinentes aos direitos humanos. Todavia, apesar de constarem
no preâmbulo os conceitos africanos atinentes aos direitos humanos e
dos povos, deve-se salientar que a prudência faz com que estas noções
não se desviassem muito das normas solenemente adotadas em vários
instrumentos internacionais, com os quais diversos Estados africanos já
haviam se comprometido. Desta forma, pode-se afirmar que a carta
Africana, como consequência, foi estruturada dentro de um esforço em
se combinar valores universais com preocupações, tradições e condições
africanas.
Apesar destes esforços,
não se pode negar que, mesmo comportando a maioria
das normas dos direitos humanos, certos valores
africanos servem como um obstáculo a alguns direitos
contemporâneos. Exemplo pertinente é o que respeita
a democracia. O então Secretário-Geral da OUA,
quando da criação da carta Africana, afirmava
que esta rejeitava o argumento de que a experiência
democrática fosse incompatível com a história
dos povos africanos, uma vez que seu preâmbulo
reconhecia a dimensão universal dos direitos humanos,
tanto os civis e políticos, quanto os econômicos,
sociais e culturais. A despeito disso, quando
se coteja a Carta de Banjul com os outros instrumentos
regionais, nota-se que ela é o único que não faz
alusão à democracia representativa e pluralista
como sendo o único sistema político que viabiliza
a efetivação dos direitos humanos...
Assim sendo, há de se
ter certa precaução quando da leitura do preâmbulo da Carta de Banjul
devendo-se sempre tentar precisar a extensão jurídico-política do que
nele está disposto, assim como compreender o contexto no qual ele foi
escrito.
A função de guia, que
o preâmbulo da carta Africana exerce (supra), faz com que ele introduza
alguns dispositivos que são objeto de normatização no decorrer da
Carta. Pode-se mencionar, inter alia, o princípio da não-discriminação,
o respeito ao direito dos povos, o direito à auto-determinação, o
direito ao desenvolvimento e o cumprimento dos deveres individuais.
Estes dispositivos, e outros de interesse tópico – como os atinentes
às medidas internas necessárias à aplicação dos direitos, deveres e
liberdades enunciados na Carta, ou às cláusulas de reserva – serão
analisadas na parte que se segue, relativa ao caráter normativo da
Carta de Banjul.
B) O caráter normativo
da Carta Africana
A Parte I é dividida
em dois capítulos. O Capítulo I trata dos direitos humanos e dos povos
O
artigo 1º, ao comprometer os Estados partes e
adotarem as medidas necessárias (legislativas
e outras) para a aplicação dos direitos, deveres
e liberdades enunciados na Carta de Banjul, que
são por eles automaticamente reconhecidos, tem
importância fundamental. Trata-se de uma obrigação
positiva, que se soma à imposição implícita de
respeitar o estipulado pela Carta. Isto não altera
sua visão dualista, que faz com que o desenvolvimento
legislativo interno dos Estados membros possa
afetar todos os direitos e liberdades consagrados
na Parte I da Carta de Banjul.
O artigo 2º tem redação
semelhante à dada ao direito à não-discriminação nos demais
instrumentos internacionais, posto que não reconhecer este direito per
se, vinculando-o necessariamente ao gozo dos direitos e das liberdades
reconhecidos pela Carta. Não obstante, complementam-no
significativamente o artigo 28 – que reza deverem os indivíduos
respeitar e considerar seus semelhantes sem nenhuma discriminação. A
proibição à discriminação, sem uma vinculação necessária com o
gozo dos direitos na carta, é um propósito sobremaneira avançado, que
não encontra proteção nem na Convenção Européia nem na Americana.
Deve-se mencionar, outrossim, a particularidade do artigo 2º ao incluir
entre os motivos de não-discriminação a distinção étnica – que
também não consta nos demais instrumentos internacionais –, o que de
certa forma complementa os dispositivos pertinentes ao direito dos
povos.
Os artigos 3º a 18º
tratam de arrolar os direitos individuais, os quais os Estados partes se
comprometem a respeitar. Vários destes têm cláusulas de salvaguarda,
de reserva – isto é, cláusulas que permitem a suspensão ou violação
dos direitos enunciados baseada em determinados imperativos públicos,
estampados na legislação doméstica.
Interessante
notar que a Carta de Banjul não faz recurso às cláusulas de derrogação,
que se encontram presentes em diversos outros instrumentos. Estes visam
definir, meticulosamente, os limites da ação estatal em situações de
emergência, ou seja, quando o Estado está mais apto a violar os
direitos humanos. Desta forma, as cláusulas derrogatórias têm uma
aplicação ratione temporis e situationis determinada pelo próprio
instrumento de proteção, além de possibilitarem o controle externo
quanto à pertinência da violação ou suspensão dos direitos –
exercido normalmente pelo órgão de implementação –; que seria, no
caso da Carta de Banjul, a Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos
Povos (infra).
Apesar de haver autores
que definam as cláusulas de derrogação como sendo
um tipo de cláusula de salvaguarda, crê-se que
o melhor entendimento é o que as distingue. Isto
posto, as cláusulas derrogatórias permitiriam,
como visto, a suspensão ou violação de certas
obrigações em circunstâncias de guerra ou emergência
pública, enquanto que, por outro lado, as cláusulas
de reserva dariam liberdade para o mesmo procedimento
só que em circunstâncias normais. Esta característica
das cláusulas de reserva comprometem demasiadamente
a eficaz aplicação dos dispositivos da Carta Africana,
principalmente no que respeita aos direitos civis
e políticos, haja vista os motivos de suspensão
ou violação ficarem sujeitos à livre discrição
dos estados partes – o que, naturalmente, as torna
menos precisas. Em função da fragilidade político-jurídica
das cláusulas de reserva, não se pode no presente
artigo concordar com a afirmação de que sua relação,
como sustentam certos autores, tornou desnecessária
a inclusão de uma cláusula derrogatória. Esta,
a despeito da existência de cláusulas de reserva,
deve ter sua existência assegurada em todos os
instrumentos internacionais de proteção dos direitos
humanos, para que se lhes dê maior precisão.
Na hipótese de se
surgir uma dúvida quanto à legitimidade da violação ou suspensão de
um direito, previsto na Carta Africana, levada a cabo pela legislação
nacional de um dos Estados partes, caberá à Comissão Africana
interpretar a sua validade. Ao fazê-lo, recurso será feito ao artigo
60 da Carta de Banjul, segundo o qual:
“A Comissão
inspira-se no Direito Internacional relativo aos direitos humanos e dos
povos, nomeadamente nas disposições dos diversos instrumentos
africanos relativos aos direitos humanos e dos povos, nas disposições
da Carta das Nações Unidas, da Carta da Organização da Unidade
Africana, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, nas disposições
dos outros instrumentos adotados pelas Nações Unidas e pelos países
africanos no domínio dos direitos humanos e dos povos, assim como nas
disposições de diversos instrumentos adotados no seio das agências
especializadas das Nações Unidas de que são membros as Partes na
presente Carta”.
Dessarte, é não só razoável
como também juridicamente legítimo recorrer-se
aos padrões estabelecidos pelas Nações Unidas
quando as disposições da Carta Africana deixarem
a desejar no concernente à sua clareza e precisão.
Portanto, quando a Comissão Africana analisar
até que patamar uma lei nacional de um Estado
parte pode violar ou suspender um direito protegido
pela Carta Africana, o dispositivo e a jurisprudência
pertinentes, e.g., do Pacto Internacional de Direitos
Civis e Políticos (1966) – se o Estado violador
for a ele comprometido – deverão servir de subsídio
para o Parecer Final. Há, a propósito, autores
que afirmam que a influência do Pacto Internacional
de Direitos Civis e Políticos (1966) deve se dar
mesmo quando os Estados partes da Carta Africana
não estiverem a ele comprometidos. Parece, portanto,
que o único modo de se restringir a ampla margem
de apreciação, que se concedeu aos Estados partes
com relação às cláusulas de reserva, é o cotejamento
com os dispositivos e a jurisprudência dos outros
instrumentos internacionais de proteção dos direitos
humanos.
A Carta Africana, que
reconhece os direitos humanos e os direitos dos povos em sua relação
dialética, arrola estes últimos em seus artigos 19 a 24.
Apesar de a Carta
Africana ser o único instrumento internacional conivente, a nível
global ou regional, que faz menção normativa ao direito dos povos, há
uma série de documentos das Nações Unidas que já o haviam feito. Há
vários exemplos, como inter alia a própria Carta da ONU, que reconhece
um seu artigo 1 (2) o direito de todos os povos à auto-determinação
(infra): a Declaração Universal dos Direitos dos Povos (Declaração
da Argélia), que elaborou uma lista dos mencionados direitos, e a
Resolução Geral, de 16 de dezembro de 1977, que em seu parágrafo 1.c
afirma que “Todos os direitos humanos e as liberdades fundamentais da
pessoa humana e dos povos são inalienáveis”. Entretanto, apesar de
as Nações Unidas terem tido um papel muito importante na conceituação
dos direitos humanos e na promoção do direito dos povos, não houve
uma preocupação em se evitar as misturas terminológicas”.
A Carta Africana, por
sua vez, não definiu o que se entende por povos, o que certamente teria
retardado sua preparação, em função das intermináveis discussões
que teriam lugar. Não obstante, alguns de seus dispositivos têm
extremada importância para que se compreenda o que a Carta de Banjul
considera serem povos – para tanto deve-se entender o que são os
direitos dos povos. Em sua quarta cláusula preambular a Carta dita:
“Reconhecendo que,
por um lado, os direitos fundamentais do ser humano se baseiam nos
atributos da pessoa humana, o que justifica a sua proteção
internacional e que, por outro lado, a realidade e o respeito da
realidade dos povos devem necessariamente garantir os direitos
humanos”.
Esta assertiva tem dois
elementos significativos: primeiro, diz serem os direitos humanos
atributos da pessoa humana, ou seja, os direitos humanos são inalienáveis
e pertencem intrinsecamente à pessoa humana; segundo, os direitos dos
povos e os direitos humanos não estão em conflito ou em competição
uns com os outros, sendo portanto complementares a despeito deste esforço,
a realidade é que os dispositivos pertinentes aos direitos dos povos,
constantes na Carta de Banjul, são deveras vagos, caracterizados pela
retórica, o que esteja fora desejado, para a conceituação de povo.
Apesar de não ser universalmente
aceita, a definição dada por Aureliu Cristeseu,
Relator Especial da Sub-Comissão Especial para
a Prevenção da Discriminação e Proteção das Minorias,
é um instrumento de auxílio conceitual. Afirma
ele serem os elementos da noção de povos os seguintes:
“a) O termo
“povo” denota uma entidade social que possui uma clara identidade e
características próprias;
b) Há uma relação
com o território, mesmo se o povo em questão fora erroneamente expulso
desde, e artificialmente substituído por uma outra população;
c) Um povo não deve
ser confundido com minorias étnicas, religiosas ou linguísticas, cuja
existência e direitos são reconhecidos no artigo 27 do Pacto
Internacional de Direitos Civis e Políticos”.
Desta noção de povo,
dada por um perito no âmbito global, tentar-se-ia uma vez passar para a
definição de povo no contexto africano, que como visto não foi feito
na Carta. Foge ao escopo do presente trabalho fazê-lo; de qualquer
forma, considera-se mister advertir o reitor que, sem colocar em risco o
princípio da universalidade dos direitos humanos, o conceito africano
de povos muito provavelmente se afastará dos postulados da teoria dos
direitos naturais – que enfocam sobremaneira os direitos humanos sob
um prisma individualista.
Mesmo tendo muito sido
escrito sobre a falta de definição do que seja
povo, no que parece os problemas principais que
serão enfrentados pela Comissão Africana não dizem
respeito à esta lacuna, ou aos direitos coletivos
per se, mas sim ao balanceamento entre estes e
os direitos individuais em casos específicos.
Ademais, há certa dificuldade em se conhecer como
os direitos dos povos serão capazes de formar
as bases de reclamações perante o mencionado órgão,
dificuldade que não parece existir quanto aos
direitos individuais.
Estritamente
considerados, os direitos individuais não existem na esfera dos
direitos humanos mais do que os direitos coletivos (dos povos), ou seja,
todos os direitos são individuais porque, em última análise,
atinentes aos indivíduos, e ao mesmo tempo coletivos, haja vista seus
meios de reconhecimento, de exercício e de proteção. Não obstante, há
de se diferenciá-los, com vistas a uma melhor proteção, o que não
exclui o caráter deste desmembramento.
Ao se afirmar inter
alia que todo povo tem direito à existência e à auto-determinação,
o artigo 20 da Carta Africana avança um dos principais propósitos
deste instrumento. Apesar de o direito à auto-determinação ter
aparecido no Direito Internacional no século XIX, como um princípio
essencialmente político, e de ter tido um papel importante durante a
Primeira Grande Guerra – sob a influência do Presidente Wilson e de
distúrbios internos que levaram à criação da União Soviética –,
foi tão-somente na década de 40 que a formulação contemporânea do
mencionado direito foi delineada. Mesmo isto tendo ocorrido
anteriormente à estruturação dos sistemas regionais de direitos
humanos, os únicos instrumentos que mencionam o direito à
auto-determinação são os Pactos Internacionais de Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais e de Direitos Civis e Políticos (ambos de 1966),
ficando portanto silentes quanto a este direito tanto a Convenção
Européia quanto A Americana.
O direito à auto-determinação
já havia sido vislumbrado na Carta da OUA. É este,
a propósito, seu único dispositivo (afora algumas
cláusulas preambulares – (supra) que trata, mesmo
que com obliquidade, de tópico pertinente aos
direitos humanos. Pela prática desta Organização,
assim como por ilações que podem ser feitas em
razão de sua Carta constitutiva, é improvável
que o direito à auto-determinação, nela estipulado,
possa ser considerado como um encorajamento à
secessão de um Estado africano independente.
Em se dividindo a
auto-determinação pela maioria dos Estados soberanos africanos, o
mesmo não podendo ser dito desta. É certamente esta razão que ensejou
a redação dos dispositivos sobre a livre disposição, que os Estados
africanos têm de suas riquezas e dos seus recursos naturais; de
indenização, em caso de espoliação; de eliminação de todas as
formas de exploração econômica estrangeira; do direito ao seu
desenvolvimento econômico, social e cultural; do gozo igual do patrimônio
comum da humanidade; do direito à paz e à segurança; do princípio da
solidariedade e das relações amistosas; assim como do direito a um
meio ambiente geral satisfatório, propício ao seu desenvolvimento. A
progressividade da realização dos direitos econômicos, sociais e
culturais condicionará o exercício, por parte dos Estados africanos,
de seu direito à auto-determinação econômica.
Foi também visando à
esta mesma auto-determinação que se inseriu na
Carta Africana, o direito ao desenvolvimento.
Tendo ou não suas origens na influência exercida
pela prática das Nações Unidas, a verdade é que
o direito ao desenvolvimento, no contexto africano
– assim como no dos países em desenvolvimento
–, tem como objetivo servir como um instrumento
de mudança, que almeja uma sociedade mais justa
e humana; ao contrário do enfoque dado pelos países
desenvolvidos, que vêem nele – em parte, e nos
direitos humanos, em geral – um meio de preservar
a situação como ela se encontra, mantendo, portanto,
um posicionamento muito mais defensivo e cauteloso.
O direito ao
desenvolvimento, inicialmente concebido como um direito das comunidades
submetidas à dominação colonial e estrangeira, desenvolveu-se de
sorte que seu enfoque contemporâneo vincula todos os países em
desenvolvimento à nova ordem econômica internacional. É exatamente
este aspecto que surge como paradoxo, posto que os países
desenvolvidos, que propagam a proteção dos direitos humanos. Este é
certamente o motivo principal que fez com que o direito ao
desenvolvimento só encontrasse guarida convencional na Carta Africana.
O componente econômico
do direito do desenvolvimento não deve ser necessariamente prevalecer
sobre os demais, afinal não é só o crescimento econômico que reflete
o desenvolvimento. Este não tem um padrão uniforme, pois deve-se
sempre observar as características, a herança, o passado cultural dos
diferentes grupos que habitam o mundo; como bem salienta o próprio preâmbulo
da Carta de Banjul ao afirmar que se deve ter “em conta as virtudes
(das) tradições históricas e (dos) valores da civilização africana
que devem inspirar e caracterizar as (...) reflexões sobre a concepção
dos direitos humanos e dos povos”. Deve-se destacar, ademais, que não
é tão-somente com a auto-determinação que o direito ao
desenvolvimento se relaciona; todos os direitos estampados na Carta
Africana são compreendidos por seus vários e inúmeros aspectos.
O Capítulo II da Parte
I da Carta de Banjul compreende os artigos 27-29,
que tratam dos deveres individuais. Na África
tradicional, os direitos são inseparáveis da idéia
de dever, posto que as sociedades, face ao ideal
da igualdade e liberdade, preferem as relações
constituídas de proteção atenta e subordinação
respeitosa. Desta forma, o entendimento africano
é o de que há um nexo direitos-deveres, sendo
que estes se fundem a serviço de uma comunidade
integrada.
Afora a Carta Africana,
o único instrumento internacional convencional de proteção aos
direitos humanos que estipula deveres a serem observados pelos indivíduos
é a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que só menciona os
deveres para com a família, a comunidade e a humanidade. Os precursores
da Carta Africana, por considerarem os dispositivos da Convenção
Americana vagos e sem sentido, providenciaram para ela uma redação
mais precisa. O resultado são preceitos que não encontram respaldo na
realidade, quando não retrógrados. Nem todos os deveres são passíveis
de serem implementados, o que os transforma num guia moral ou código de
conduta, a ser seguido pelos cidadãos africanos.
Ao se analisar os reais
propósitos dos deveres enunciados na Carta Africana,
duas amplas categorias são estabelecidas, quais
sejam: uma que engloba os deveres que podem ser
considerados como correlativos de direitos, e
outra que restringe o gozo de alguns direitos,
i.é., dispositivos limitadores, disfarçados de
deveres. Esta segunda categoria padece da mesma
problemática atinente às cláusulas de reserva
(supra), posto que a extensão dos deveres não
é estabelecida, ficando pois a disposição de livre
discrição dos Estados partes. Pode-se dessarte
concluir que o catálogo de deveres proclamado
pela Carta de Banjul traz consigo um sério risco
de abuso por parte dos Estados nela partícipes.
C) Composição,
organização e competência da Comissão Africana de Direitos Humanos e
dos Povos
Como seus instrumentos
análogos regionais, a Carta Africana criada para promover e assegurar a
proteção dos direitos humanos e dos povos na África – ou seja, como
órgão de sua própria implementação –, a Comissão Africana de
Direitos Humanos e dos Povos. Esta foi estabelecida em julho de 1987, na
2ª Sessão da Conferência dos Chefes de Estado e de Governo da OUA –
a primeira após a entrada em vigor da Carta de Banjul –, que teve
lugar em Addis Abeba, Etiópia.
Os artigos 31-34 – que
compreendem o Capítulo I da Parte II, denominada
“Das Medidas de Salvaguarda” – tratam dos detalhes
pertinentes à sua composição e à sua organização.
A Comissão é composta por 11 membros, que não
são necessariamente juristas, devendo simplesmente
possuir competência em matéria de direitos humanos
e dos povos. Aos se estabelecer que o exercício
de suas funções deve ser feito a título pessoal,
almejou-se estabelecer uma independência entre
os membros da Comissão e seus estados de origem,
o que não exclui necessariamente a possibilidade
de um membro sentir-se coagido por ser Estado
caso, em exercendo suas funções, posicione-se
contra este. Os membros da Comissão, que não pode
ter mais de um natural de cada Estado, serão eleitos
secretamente pela Conferência dos Chefes de Estado
e de Governo da OUA de uma lista apresentada pelos
Estados partes da Carta de Banjul. Interessante
observar que os candidatos hão de ser nacionais
dos Estados partes da Carta Africana, mas não
necessariamente do Estado que os sugere. Este
dispositivo visa possibilitar a participação,
no trabalho da Comissão – a qual, na verdade,
transcende as fronteiras nacionais –, de renomados
especialistas, cujos países de origem evitariam,
provavelmente por questões políticas, a candidatura
de seus nomes. A realização da eleição dos membros
da Comissão Africana pela mencionada Conferência
da OUA tem sido criticada por muitos autores,
mormente pelas vicissitudes políticas, posto que
também têm voto decisório os Estados membros da
OUA não-partes da Carta Africana. Os membros da
Comissão, eleitos por um período de seus anos
– com possibilidade de reeleição –, gozam dos
privilégios e imunidades diplomáticas previstos
pela Convenção sobre Privilégios e Imunidades
da OUA.
O artigo 41 dispõe que
o Secretário da Comissão será designado pelo Secretário-Geral da OUA,
e que este fornecerá o pessoal e os meios e serviços necessários ao
efetivo exercício das funções atribuídas à Comissão, sendo todos
os custos cobertos pela OUA. Apesar deste dispositivo, a Comissão tem
tido sérios problemas atinentes à falta de recursos financeiros, o que
limita em muito suas atividades promocionais. Ademais, este liame orçamentário
condiciona consideravelmente a independência da Comissão Africana, que
não tem sido tão ampla quanto fora desejado. Problema político também
ocorre com a votação do orçamento da OUA – que naturalmente engloba
a da Comissão –, já que nela participarão Estados que não são
partes na Carta Africana, e portanto não muito inclinados à causa dos
direitos humanos e dos povos.
O artigo 45 da Carta
Africana trata das competências da Comissão (Capítulo II da Parte
II). Seu parágrafo 1º arrola quais são as competências promocionais
desta, as quais, nesta fase inicial da Comissão, são as que mais
deveriam se destacar. Dentre elas constam inter alia os levantamentos
documentais, a realização de estudos, a organização de seminários,
a disseminação de informação, a formulação e elaboração de
textos legislativos e a cooperação com outras organizações
internacionais regionais ou globais, governamentais ou não-governamentais
que se dediquem à promoção e proteção dos direitos humanos e dos
povos. Infelizmente, a falta de recursos financeiros à disposição da
Comissão (supra) têm-na impedido de realizar satisfatoriamente suas
competências promocionais. O seu primeiro presidente comentou, a propósito,
que os dois primeiros anos de trabalho da Comissão foram um constante
“vai e vem”, de sorte que foi difícil consolidar um progresso no
campo promocional. Deve-se reconhecer o meritório trabalho efetuado
nesta área pelas organizações não-governamentais, como e.g. a
Anistia Internacional e a Comissão Internacional de Juristas, por seus
esforços em suprir as deficiências da Comissão Africana.
A artigo 45(2) dita ter
a Comissão a missão de assegurar a proteção dos direitos humanos e
dos povos nas condições fixadas pela própria Carta. Trata-se, pois,
de competência jurisdicional que a Comissão possui, fixada nas disposições
da Carta que respeitam ao processo perante a Comissão (infra).
A competência
consultiva da Comissão é vislumbrada no artigo 45(3), que diz a ela
competir a interpretação de qualquer disposição da Carta Africana,
desde que o pedid?????t???i???????????????????o seja proveniente de um Estado parte, de uma instituição
da OUA, ou de uma organização africana por esta reconhecida. Quando da
aprovação do texto final da Carta Africana, que se deu em janeiro de
1981 em Banjul, Gâmbia (supra), alguns Estados como Burundi, Gana, Quênia,
Tanzânia e Zâmbia fizeram reservas à competência em questão. É
possível que a relutância de alguns países africanos em não
comprometer com a Carta de Banjul se deva exatamente a eles não
acordarem em ser a competência dos Chefes de Estado e de Governo o órgão
mais apropriado para exercê-la. É possível que tenham sedo restrições
impostas à época da preparação da Carta Africana a razão de a
competência consultiva da Comissão Africana ser tão restrita. Mesmo
assim, abriu-se a possibilidade de restritamente, para certas organizações
não-governamentais terem acesso à esta competência da Comissão –
que não é exercida somente quando há violação da Carta.
Por fim, tem a Comissão
a competência para executar qualquer outras tarefas que lhe sejam
eventualmente confiada pela Conferência dos Chefes de Estado e de
Governo. Até o presente, a única ocasião na qual isto ocorreu, foi
quando a Conferência autorizou a Comissão, em função do requerimento
que esta fez, a receber dos Estados partes os relatórios anuais devidos
em função do artigo 62 da Carta Africana (infra). É pouco provável
que uso seja feito novamente deste preceito, pelo menos na conjuntura
atual, na qual a Comissão não consegue nem dar cabo de suas atividades
promocionais.
Há dois tipos de
comunicações que podem ser encaminhadas à Comissão Africana: quais
sejam, as provenientes de Estados partes na Carta ?????t???i???????????????????de Banjul e as
“outras” comunicações”. Aquelas podem ser encaminhadas através
de dois procedimentos distintos. O primeiro constitui-se de contatos
bilaterais entre as partes em lide, sendo que o Estado parte, que crê
ter um análogo seu cometido uma violação da Carta, deve informar por
escrito tanto o Presidente da Comissão Africana quanto o Secretário-Geral
da OUA sobre a questão. Este contato formal entre Estados, antes da
intervenção da Comissão é uma particularidade da Carta Africana. Os
Estados em disputa têm um prazo de três meses para conduzir suas
negociações, com vistas a solucionar a questão de modo pacífico.
Esta é outra característica marcante na cultura africana, que desde os
tempos pré-coloniais releva a tentativa, durante a conduta dos
conflitos, de resolver contendas por meios pacíficos, prática esta que
acabou sendo refletida na própria Carta da OUA. Caso a questão não
tenham sido resolvida de forma amistosa, qualquer dos Estados pode
submeter o caso à consideração da Comissão Africana. O segundo
procedimento, no âmbito das comunicações estatais, já se inicia
diretamente na Comissão, posto não ser obrigatória a tentativa de
solução amistosa bilateral. A única condição de admissibilidade é
o prévio esgotamento dos recursos internos, que só pode ser exigida na
hipótese de o objeto de comunicação ser um direito individual violado
pelo Estado reclamado. Todas as informações pertinentes devem ser
colocadas à disposição da Comissão Africana, inclusive as observações
escritas ou orais dos estados litigantes. Após haver obtido todas as
informações e ter intentado uma solução amistosa, a Comissão deve
preparar um relatório, o qual descreverá os fatos e as conclusões
alcançadas – devendo este ser enviado aos Estados interessados e à
Conferência dos Chefes de Estado e d?????t???i???????????????????e Governo. As recomendações que a
Comissão tiver por úteis poderão ser enviadas com o relatório. As
medidas que a Conferência dos Chefes de Estado e de Governo podem tomar
com relação a relatório da Comissão serão estudadas mais adiante.
O segundo tipo de
comunicação é o que não emana dos Estados partes. Estas serão
apreciadas a pedido da maioria dos membros da com. A redação é ampla,
não havendo restrição alguma quanto a quem pode encaminhá-la –
podendo portanto fazê-lo indivíduos, grupos de indivíduos ou organizações
não-governamentais, considerem-se ou não vítimas de violação. Uma
vez tendo a Comissão decidido que as comunicações serão estudadas,
deverão estas preencher as condições de admissibilidade arroladas no
artigo 56. Sua estrutura é similar a dos outros instrumentos regionais,
o que exclui algumas pequenas diferenças. Uma destas é o não-estabelecimento
do prazo que se tem, após o esgotamento dos recursos internos, para a
introdução da comunicação junto à Comissão – afirma-se somente
que este prazo deve ser razoável. Ainda com relação aos recursos
internos, há autores que consideram sua exigência irreal, só
considerado o contexto africano.
Ultrapassada a fase de
admissibilidade, o próximo passo será a Comissão
chamar a atenção da Conferência dos Chefes de
Estado e de Governo que as situações particulares
que pareçam revelar a existência de um conjunto
de violações graves ou maciças dos direitos humanos
ou dos povos. Isto ocorrendo poderá a Conferência
dos Chefes de Estado e de Governo solicitar à
Comissão Africana um estudo aprofundado, que a
informe através de um relatório pormenorizado
as conclusões a que se chegou e as recomendações
a serem feitas. Este procedimento é sobremaneira
semelhante ao estabelecido pelo sistema criado
pela Resolução 1.503 do Conselho Econômico e Social
das Nações Unidas, o qual vislumbra o estudo de
comunicações que parecem revelar um padrão consistente
de violações flagrantes de direitos humanos. Este
conceito de conjunto de violações graves ou maciças
foi indubitavelmente inserido com o propósito
de se evitar que a Comissão estudasse violações
isoladas da Carta. Não obstante, se um Estado
parte está cometendo ou tolerando regularmente
sérias violações individuais, que se relacionam
entre si ou não, poderão estas ser levadas à jurisdição
da Comissão Africana.
Todas as medidas
tomadas durante os procedimentos – sejam eles atinentes às comunicações
estatais ou às outras – se mantêm confidenciais, exceto se a Conferência
dos Chefes de Estados e de Governo entender de forma distinta. O relatório
só será publicado pelo Presidente da Comissão Africana se a Conferência
dos Chefes de Estado e de Governo assim decidir. Desta forma, é
evidente que a única sanção real que a Comissão pode exercer – a
publicidade – é severamente limitada pelos poderes que a Carta
Africana concede à Conferência dos Chefes de Estado e de Governo, que,
sendo um órgão político, não é dos mais entusiastas na guarda dos
direitos humanos.
Apesar de se localizar
no Capítulo IV da Carta de Banjul, o artigo 62
respeita à competência da Comissão. Estabelece
ele que os Estados partes se comprometem a apresentar,
de dois em dois anos, a partir da entrada em vigor
da Carta Africana, um relatório sobre as medidas
tomadas com vistas a efetivar os direitos e liberdades
nesta reconhecidos e garantidos. Como não estava
claro a que órgão os Estados partes deveriam submeter
seus relatórios, a Comissão achou por bem, em
sua 3ª Sessão, requerer à Conferência dos Chefes
de Estado e de Governo autorização para recebê-los;
prerrogativa concedida em função do artigo 45(4)
da Carta de Banjul (supra).
A submissão de relatórios
é a espinha dorsal da missão da Comissão, principalmente se
considerada a comprometida eficácia de seu procedimento quasi-judicial,
composto pelo seu sistema de comunicações (supra). Até junho de 1991,
a Comissão só havia recebido 7 relatórios, apesar de 25 já serem
devidos a partir de 21 de outubro de 1988 – quando dois anos se
completaram da entrada em vigor da Carta de Banjul. Os relatórios da Líbia,
Tunísia e Ruanda pediu que fosse adiado o estudo de seu relatório –
os relatórios da Tanzânia, do Togo e do Egito devem ser revisados em
sessões futuras.
O sistema de relatórios
propostos pela Carta de Banjul é bastante semelhante ao estabelecido
pelo Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, principalmente
quando tenta criar um diálogo entre a Comissão Africana e os Estados,
de sorte que estes sejam auxiliados no cumprimento de suas obrigações.
Foi inclusive publicado um “Guia para os Relatórios Nacionais” que,
como o publicado pelas Nações Unidas, tem como escopo orientar os
Estados partes na redação dos mencionados relatórios.
O artigo 63 encerra o
Capítulo IV e a Parte II da Carta de Banjul dispondo
sobre a sua vigência. Muitos Estados tentaram
fazer prevalecer o requerimento de dois terços
do número de Estados membros da OUA, em ratificações
e/ou adesões, para que a Carta entrasse em vigor.
Hoje em dia são 49 os Estados partes da Carta
Africana.
D) Disposições
Diversas
A Parte III (“Disposições
Diversas”) põe termo à Carta com os artigos 64-68. O artigo 66 dispõe
sobre a possibilidade da redação de protocolo ou acordos particulares,
e o artigo 68 sobre o procedimento para que a carta seja revista ou
emendada. Tem sido constantemente sugerida a utilização deste último
artigo para que se supra a lacuna existente em função da falta de um
órgão judicial no sistema africano. A assertiva de que a ênfase dada
ao princípio da conciliação e das soluções amistosas tenha sido a
razão de não se ter optado pelo estabelecimento de uma Carta Africana
dos Direitos Humanos e dos Povos, a qual não seria apropriada para os
padrões africanos, deve ser sopesada com a suspeita de dita afirmação
servir a conveniências políticas...
Uma vez tendo-se decidido
criar uma Carta Africana, acredita-se que o melhor
caminho seria seu estabelecimento por um protocolo,
e não por uma emenda. Esta, como dispõe o artigo
68 da Carta de Banjul, teria de ser aprovada pela
maioria simples dos Estados partes, o que poderia
tardar muito. Um protocolo, por sua vez, poderia
criar a Corte com a ratificação de um número menor
de Estados partes. Ademais, este procedimento,
por não interferir diretamente na estrutura da
Carta, não comprometeria a ratificação dos Estados
Membros da OUA que ainda se mostram reticentes
em fazê-lo. Dessa forma, com a ratificação ou
adesão ao Protocolo que criaria a Corte Africana,
os Estados iriam, paulatinamente, ampliando a
jurisdição a que se encontram submetidos. Quanto
à composição da Corte, poder-se-ia fazer recurso
a um aumento progressivo de seus juizes, à medida
que mais Estados fossem se comprometendo ao Protocolo
que a criaria, até que se alcançasse um número
compatível com os Estados-partes da Carta de Banjul.
Ademais, teria de ser dada à Comissão maior independência,
de sorte que ela pudesse levar questões à Corte
sem a prévia autorização da Conferência dos Chefes
de Estado e de Governo.
II) Considerações
Finais
Do exposto, pode-se
concluir que a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, como
todo instrumento relativo aos direitos humanos, traz consigo uma mescla
de fatores jurídicos e políticos os quais, dependendo do contexto,
podem servir a distintos propósitos. Destes, o que se espera alcançar
é a efetiva proteção e promoção dos direitos humanos e dos povos.
Para tanto uma série de obstáculos há de ser ultrapassada. Dentre
estes, pode-se mencionar as restritivas disposições pertinentes à
Comissão, que tem de exercer suas competências dentro de uma margem
muito estreita de flexibilidade, além de ter que usar como parâmetro
disposições caracterizadas pela retórica. Não obstante, ao se tentar
propiciar à Comissão meios mais apropriados para a execução de suas
funções, atenção deve ser dada às peculiaridades da cultura
africana.
Um bom exemplo de evolução
neste campo é a conclusão da Carta Africana dos
Direitos da Criança. Esta cria um Comitê que,
ao contrário da Comissão Africana, teria poderes
para, por si própria, e por seus próprios meios
de investigação, proceder ao levantamento de informações
relativas à implementação, por parte dos Estados
partes, das medidas que ela enseja além de, e
isto é ainda mais importante, ter o poder para
publicar seus relatórios, circulando-os livremente
pelos territórios de seus Estados partes. O fato
de Estados africanos terem recentemente acordado
com esta prática, pode nutrir de esperanças a
possibilidade de, num futuro não muito distante,
a Comissão Africana também ser dotada das liberdades
pertinentes à publicação de seus relatórios –
o que, sem dúvida, teria uma repercussão positiva
quanto às suas competências promocional e protetória.
Apesar dos problemas
que comporta, a Carta de Banjul deve ser vista como uma moção
providencial, um passo na direção correta, rumo a um futuro democrático,
onde são reconhecidos e protegidos tanto os direitos individuais quanto
os direitos dos povos.
|