
PENA DE
MORTE
HÉLIO
PEllEGRINO
Psicanalista,
jornalista, escritor e poeta, falecido em 1989.
Para
Freud, as pulsões humanas são, em última instância,
conservadoras: elas se voltam basicamente para o
passado, tentando reeditá-lo ou reproduzi-lo. Esta
vocação conservadora, pela qual as pulsões tendem a
restaurar – além do princípio do prazer – um
estado anterior de coisas, constitui a mola mestra da
compulsão à repetição, a cujo poder está sujeito o
funcionamento psíquico. De acordo com o criador da
psicanálise, somos todos – no fundo – passadistas
inveterados. A evolução nos empurra para a frente e
nós, - quem sabe? Pelo tédio à controvérsia. O mais
profundo desejo do ser humano é, em escala, - ou escada
– decrescente, a volta à infância, à vida
ultra-interina e por fim, à condição inorgânica, ou
mineral. Temos saudade de ser pó, do qual saímos, ou
de ser pedra, osso desnudo – silêncio.
Na
presente cena política brasileira, o ex-Presidente
Jânio da Silva Quadros é um excelente – e freudiano
– exemplo de obediência e compulsão de repetição.
Ao candidatar-se à prefeitura de São Paulo, com as
momices, cacoetes e obliqüidades pronominais de praxe,
o Sr. Jânio Quadros é menos um postulante a um cargo
eletivo do que oficiante de Tanatos, ocupado – e
preocupado – em exumar tempos velhos, para servir ao
perempto. E, como se não bastasse a celebração
tanática a que se entrega, pelos bairros, vielas e
betesgas da capital paulistana, em busca da edilidade
perdida, o candidato do PTB anuncia ainda, como prato de
seu rancho de campanha, a pena de morte. É claro que,
do castigo máximo, ficam excluídos os crimes
políticos – renúncia fraudulenta, em primeiro lugar
– nas suas dimensões presentes,, passadas e futuras.
O ex-Presidente sabe cuidar da própria pele.
A
pena de morte, não obstante os esgares e
contorcionismos ideológicos que a queiram legitimar, é
um crime contra a justiça – e contra o esforço
civilizatório da raça humana. Humanizar-se – ou
hominizar-se – é poder suprimir ou sublimar os
impulsos primitivos que nos levam a combater o crime –
com o crime. A pena de morte tem como fundamento não o
desejo de reparação ou de justiça, mas a sede bruta
de vingança. Na medida de sua adoção, ficamos
filosófica e moralmente comprometidos e emparelhados
pela lógica – zoológica – do velho axioma iníquo:
olho por olho, dente por dente. Se o mal com o mal se
paga, numa estrita e sinistra odonto-oftálmica, não
há porque não condecorar, com as mais altas insígnias
republicanas, os beneméritos esquadrões da morte que
exornam nossa paisagem cívica, jurídica e policial. A
pena de morte, incluída na letra do Código Penal,
consagra – e institucionaliza – o procedimento
desses bandos criminosos transformando-o em norma de
justiça. Convenhamos que, em matéria de desordem,
poucas medidas seriam capazes de chegar tão longe.
Na
avaliação do problema da pena de morte, há que levar
em conta o fato de que ela, uma vez aplicada, cria uma
situação absoluta – e irreparável. A morte é a
impossibilidade de qualquer possibilidade, seja lá do
que for. Na medida em que condenemos alguém à
execução capital, estaremos praticando um ato
absoluto. desmesurado e ilimitado na sua
irretratabilidade. Ora, para que uma ação desse tipo
fosse minimamente legitimável, seria necessário que os
julgamentos humanos pudessem reivindicar para si um grau
também absoluto de certeza – e de verdade. Só posso
castigar quem quer que seja, de maneira absoluta, na
medida de uma absolutização paranóica de minhas
razões, critérios e discernimentos. A pena de morte,
por parte daqueles que a defendem, uma usurpação do
lugar da divindade. Só Deus é senhor absoluto – e
juiz supremo – da vida e da morte.
Isso
posto, não me venham dizer que o apoio à pena capital
seja compatível com uma visão religiosa – ou cristã
– do mundo e das coisas. O Evangelho se fundamenta no
amor 0 não na vingança -, e seu espírito repele até
mesmo a justiça sem misericórdia. Cristo, ao morrer
pela redenção do homem, inundou-o infinitamente com a
possibilidade da graça transformadora e regeneradora.
Se Lázaro ressuscitou dos mortos, qualquer ser humano
pode emergir das trevas da iniqüidade, do pecado e do
crime, pela graça de Deus. A adoção da pena de morte
é um ato de desespero social, que atenta contra a
esperança e contra o mistério da Redenção, golpeando
em seu cerne o mandamento supremo do amor, ao Próximo.
Além
dos aspectos filosóficos e religiosos que a condenam, a
pena de morte é perfeitamente indefensável a partir de
argumentos sociais e político. Cada sociedade tem os
criminosos que merece, isto é, a prática do bem e do
mal, ou a maneira pela qual os seres humanos se
relacionam, tem tudo a ver com a vida comunitária e com
o grau de justiça – ou de injustiça – que lhe
define a estrutura. A fome, a opressão espoliadora, o
abandono da infância, o desemprego em massa, as greves
– e clamores – desníveis entre as classes não
constituem, obviamente, boa fonte de inspiração para
um correto exercício da cidadania. O processo
civilizatório, pelo qual cada um de nós dá o salto da
natureza para a cultura, de modo a tornar-se sócio da
sociedade humana, exige renúncias cruciais – e
sacrifícios cruciantes. Na infância, através das
vicissitudes do complexo de Édito, temos que abrir mão
de nossas primeiras – e decisivas – paixões.
Depois, o corpo social nos impõe a lenta e dolorosa
aquisição de uma competência, que nos qualifique para
o trabalho e para o pão de cada dia.
Tudo
isto – contadas as favas – nos custa os olhos da
cara, e da alma. É preciso, de maneira absoluta, que
cada trabalhador, seja ele qual for, receba da
comunidade um retorno salarial e existencial condigno,
expressão do respeito coletivo pelo seu esforço. Este
é um dever social irrevogável, ao qual corresponde um
direito sagrado. A ruptura desta articulação constitui
uma violência inaudita, capaz de tornar-se a matriz de
todas as violências – e de todos os crimes. Uma
sociedade como a nossa, visceralmente comprometida com a
injustiça e, portanto, geradora de revolta e
delinqüência, cometeria uma impostura devastadora –
e destruidora -, se adotasse a pena de morte. Ao invés
de fabricarmos bodes expiatórios, temos todos que
assumir, sem exceção de ninguém, a responsabilidade
geral pela crise – e pelo crime.
Há,
por fim, a favor da pena de morte o argumento
psicológico da intimidação. O criminoso, diante do
risco de perder a vida, pensa duas ou mais vezes na
conseqüência fatal do delito que o tenta, acabando por
desistir de praticá-lo. Afirma-se aqui o princípio –
psicanaliticamente ilusório – de que o delinqüente
grave tem arraigado amor à própria vida. Em verdade,
acontece o oposto. A auto estima do ser humano se
constrói a partir dos cuidados – do amor –
recebidos de fora, dos outros. Este amor, internalizado,
vai constituir o fundamento da possibilidade que cada um
terá de amar-se a si mesmo, por ter sido amado. Se sou
capaz de amar a mim próprio, e à minha vida, sou
também proporcionalmente capaz de amar ao Próximo, meu
semelhante, meu irmão – e meu espelho.
O
criminoso grave, ao liquidar sua vítima, condena-se,
por mediação dela, à morte, com ódio e desprezo. Não
o imitemos, através da pena de morte.
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