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A POPULARIZAÇÃO DA PENA DE MORTE 

Fábio Konder Comparato**  

Como diz o ditado, o diabo depois de velho faz-se ermitão.

Os atuais defensores da pena de morte, que são, quase todos, militantes enraivecidos da antidemocracia, não encontram caminho mais sedutor para o seu projeto de homicídio legal dos criminosos que o de propor a realização de um plebiscito. Os que sempre desprezaram insolenemente o povo, considerando-o uma manada ignorante e impulsiva, apresentam-se agora como ardentes servidores da soberania popular. Melhor do que emendar a Constituição por ato do Congresso Nacional, proclamam eles, é ir diretamente ao povo soberano, fonte de todo o Direito, e pedir a sua benção para a pena capital.

O estratagema é falso como o demônio.

A democracia não se reduz à soberania popular, mas compreende também uma outra exigência insuprimível: o respeito aos direitos humanos. Um sistema político não se qualifica como democrático tão só pelo princípio majoritário; é ainda indispensável que se estabeleçam defesas sólidas dos direitos da minoria. O predomínio da vontade popular representa, sem dúvida, uma forma eficaz de se controlar o poder dos governantes. Mas a lei da maioria pede também converter-se no mais feroz dos despotismos, facilmente manipulável ao sabor das paixões do momento. Os freqüentes linchamentos – dos quais o recente episódio de Matupá (MT), onde a multidão enfurecida incinerou três assaltantes, é mero exemplo – confirmam quase quotidianamente essa verdade.

Não há democracia sem o respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana. O regime da soberania popular, quando desligado dos direitos humanos, não é democrático, mas configura aquilo que o pensamento político clássico denominava oclocracia, isto é, o governo da turbamulta, do populacho desenfreado.

Lembre-se, afinal, que os direitos humanos são ditos fundamentais, não tanto pelo fato de serem inalteráveis e insuprimíveis por meio de leis ordinárias, mas sobretudo porque devem ser respeitados em qualquer circunstância, seja qual for a maioria imperante. Ainda estaríamos, porventura, em regime democrático, se o povo brasileiro, convocado a se pronunciar em plebiscito, decidisse inserir na constituição a regra de que os índios não podem ingressar na escola superior, ou de que não-católicos têm vetado o acesso a cargos públicos?

Ora, a pena de morte não importa na violação de um direito qualquer, mas representa a negação do mais fundamental dos direitos humanos, aquele que constitui a raiz ou fonte de todos eles: o direito à vida.

Contra essa verdade óbvia, alega-se que a pena de morte é legítima, porque se funda em julgamento regular do criminoso pelo Poder Judiciário. Mas o fato de um acusado ser regularmente condenado pelo órgão judicante do Estado não legitima, de modo algum, o resultado do julgamento. Se a lei brasileira, a exemplo do direito islâmico, determinasse que todo condenado por furto  tivesse a mão decepada, nem por isso o julgamento regular do ladrão significaria o respeito à integridade física alheia. Afinal de contas, a idéia de direitos humanos nasceu de uma exigência de proteção individual contra atos do Poder público. Não é o fato de a pena ter sido criada por lei, ou aplicada mediante processo oficial regular, que ela deve ser considerada legítima, quando viola um direito fundamental do homem.

É facilmente compreensível, pois, a razão lógica do disposto no art. 60, § 4º, IV da Constituição brasileira: “não será objeto de deliberação a proposta de emenda (constitucional) tendente a abolir os direitos e garantias individuais”.

Foi justamente para contornar essa proibição que os novos defensores da pena de homicídio propuseram, astutamente, que a Constituição fosse emendada, nessa matéria, não pelo Congresso, mas diretamente pelo próprio povo. Ressalte-se a hipocrisia do plano: o Congresso Nacional, que não hesitou em usurpar a soberania popular ao decidir votar a nova Constituição sem ter para tanto recebido mandato do povo, enche-se agora de escrúpulos para emendá-la...

Mas a manobra foi mal concebida. A proibição constitucional de supressão de direitos individuais não se dirige apenas aos representantes do povo, mas também e obviamente a este último. Se assim não fora, teríamos que a maioria do eleitorado estaria sempre habilitada a reformar ou abolir direitos fundamentais da minoria: o que representaria a negação pura e simples da idéia de direitos humanos.

Pior ainda é o sofisma, recentemente levantado no Congresso, segundo a qual a regra proibitiva do art. 60, § 4º, IV da Constituição, aplica-se, tão só, à abolição do conjunto dos direitos individuais; e não a modesta supressão de um só, ou alguns deles apenas. Ou seja, se o projeto de emenda à Constituição for de âmbito muito exagerado, ele não pode ser processado; mas se a proposta tiver uma amplitude menos ousada, limitando-se a coibir – digamos – algum “excesso” constitucional na defesa da pessoa humana, então não haverá obstáculos à sua votação. Poder-se-ia, talvez, testar a coerência e autenticidade dessa interpretação constitucional, propondo-se, ao invés da reintrodução da pena de morte no País, a supressão do direito de propriedade. Quem sabe, então, os recém-convertidos à democracia direta entendessem o que está inscrito na Constituição.

É forçoso reconhecer que esse lamentável debate põe a nu o nosso tradicional desprezo pela vida humana. Num país em que 60% da população vegeta abaixo do nível de pobreza tolerável, segundo os padrões internacionais, o homem vale realmente muito pouco. E é dessa vergonhosa deformação mental e social que se aproveitam os nossos democratas, para cultivar no eleitorado os mais baixos instintos.

Não bastassem as deformações indeléveis que o popularismo trouxe à política brasileira, será que ainda temos de sofrer o aviltamento da vida humana à condição de mercadoria eleitoral? 

São Paulo, 19 de março de 1991.

Este artigo foi publicado originalmente no Jornal Folha de São Paulo, em 21 de março de 1991, pág. 1-3, Tendência e Debates.

** Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

Doutor em Direito pela Universidade de Paris.

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