(Cartilha
“A Luta pela Garantia
dos Direitos Humanos no Brasil”)

Mortos
e desaparecidos políticos: a luta pela responsabilidade do
Estado
Nilmário
Miranda
Deputado
Federal PT-MG
Não
há na história nenhum exemplo de uma sociedade democrática
que tenha construído o seu futuro sem o restabelecimento da
verdade histórica” (1). No Brasil, a história
relatada na escola e na grande imprensa sempre foi a das
oligarquias. A verdade das lutas dos excluídos e oprimidos
pelos regimes democráticos ou ditatoriais que se instalaram
no país sempre esteve nos porões, nas mesas dos bares, nos
documentos sigilosos dos governos.
Esta
luta é secular. É dos negros, dos índios, dos famintos, dos
sem-terra, sem-casa, das populações de rua e também dos
familiares daqueles que, se negando a compactuar com a
ditadura que se instalou no país a partir de 1964, morreram
ou desapareceram nas dependências dos órgãos de repressão
do Estado nas décadas de 1960 e 1970.
Desse
período, muitos fatos já vieram à tona e diversos livros
foram escritos por pesquisadores e por militantes que
sobreviveram à repressão. Porém, existe uma verdade
guardada a “sete chaves” pelas Forças Armadas
Brasileiras: a história da tortura, das mortes e do
desaparecimento dos presos políticos.
Embora
o Comitê Brasileiro pela Anistia tenha catalogado 144
desaparecidos políticos durante o regime militar e o
“Projeto Brasil Nunca Mais” tenha registrado, através dos
pró9prios processos instalados na Justiça Militar no período,
os nomes de 444 torturadores e 242 localidades diferentes onde
as torturas foram realizadas, as Forças Armadas e o Governo
brasileiro se negam a reconhecer a sua participação no
processo de tortura, morte e desaparecimento de presos políticos.
Até
novembro de 1993, quando relatórios da Marinha, Exército e
Aeronáutica, com informações incompletas sobre 144
desaparecidos políticos, foram entregues à Comissão Externa
sobre os Desaparecidos Políticos da Câmara dos Deputados,
nenhuma informação por parte do Governo tinha sido
encaminhada à Comissão nos seus dois anos de existência.
Tudo o que se conseguiu foi através de pesquisas nos arquivos
do Dops de São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba e Recife,
através das valas dos cemitérios de Perus (SP) e Ricardo
Albuquerque (RJ) e através das revelações do ex-sargento
Marival Chaves e ex-militantes que colaboraram com a repressão.
Para
o advogado Luís Eduardo Greenhalgh, “do ponto de vista do
Estado repressor, essa política assassina é cômoda e
confortável. Ninguém assume a responsabilidade pelas prisões
e os desaparecimentos, nem na época dos regimes militares,
nem agora, com as de3mocracias formais. (...) Desta forma
escapam de qualquer sanção administrativa, disciplinar,
penal ou civil” (2).
A
construção da democracia brasileira passa, necessariamente,
pela abertura dos arquivos das Forças Armadas que, para se
resguardar utilizam a Lei da Reciprocidade (Lei de Anistia),
que data de fins de 1979 e estabelece anistia aos crimes
conexos aos crimes políticos praticados durante o regime
militar. Na verdade, o que se quis estabelecer com esta lei,
foi uma auto-absolvição antecipada do Estado de qualquer
responsabilidade jurídica nestes crimes.
Esta
auto-absolvição é questionada por diversos juristas. Para o
advogado Herman Assis Batea, “a Lei de Anistia não cria
nenhum obstáculo à apuração dos crimes de sequestro e
tortura: em primeiro lugar, porque tais delitos estão excluídos
de seus benefícios, nos termos do artigo 1º, § 2º, da
referida lei; e, em segundo lugar, porque, quando se fala em
‘anistia recíproca’, não se afasta a necessidade de
apuração processual do instituto da conexão. É a
autoridade judiciária – e só ela – que poderá decidir,
entre outras coisas, se houver conexão e se a tortura ou o
desaparecimento são crimes conexos aos crimes políticos”.
(3)
A
LUTA DOS FAMILIARES
Com o
silêncio das Forças Armadas, os direitos que vêm depois da
morte, de enterro digno e celebração da memória, estão
sendo negados às famílias dos mortos e desaparecidos políticos.
Nestes vinte anos de procura incansável, estas famílias têm
passado por um processo de tortura permanente. Para as
esposas, pais e filhos dos desaparecidos, cada campainha que
toca é uma esperança nova de notícias ou mesma da volta do
ente querido. Alguns se negam inclusive a mudar de residência
com receio de perderem para sempre a referência no caso de um
possível retorno.
“Ao
se produzir a figura sinistra e ilegal do desaparecido, uma série
de efeitos aparecem: desaparecido não está preso, não está
morto, não tem túmulo, o que produz um clima de confusão e
ambiguidade, determinando a perda do que significa o rito
funerário em nossa cultura. Sem a morte, sem o túmulo, se
constrói um ser ‘suspenso’ no tempo e no espaço, se
destrói o sujeito e se abre uma ferida sempre alimentada pela
esperança, pelo não nome e por toda uma situação que
significa o não saber.”
(4)
há
vinte anos, as famílias desses cidadãos que morreram em nome
de um ideal de Brasil melhor procuram seus mortos, se batem
pelo reconhecimento oficial de seus mortos. Viúvas e órfãos,
mães e irmãos têm o direito de querer dar-lhes um
sepultamento digno, de voltarem a dormir em paz e refazerem
suas vidas como cidadãos com direito ao atestado de óbito de
seus parentes, à pensão, ao estado civil definido. Este é o
lado prático e humano da importância de se localizar estes
mortos e desaparecidos: quem está vivo precisa tocar a vida
como ela é, à revelia da dor.
Para
“solucionar” o problema dessas famílias, a Lei de Anistia
estabelece o fornecimento pelo Estado do “atestado de óbito
por morte presumida” ou a “declaração de ausência por
morto presumida” e, mais recentemente, o Ministério da
Justiça propôs um projeto de lei concedendo pensão mensal,
de caráter especial, aos parentes “de pessoas que foram
alvo de violações de direitos humanos”. Tanto o atestado
de óbito quanto o projeto de lei, na forma como estão
redigidos, foram recusados pelos familiares. N avaliação do
Grupo Tortura Nunca Mais, a intenção do Governo nesses casos
é colocar uma pedra em cima do que aconteceu. Os
desaparecidos vão ser considerados mortos e nada será
esclarecido sobre a forma como eles morreram. Ao se
estabelecer pensão mensal aos parentes de pessoas
que foram alvo de violações dos direitos humanos nega-se
a responsabilidade do Estado nas mortes e desaparecimentos.
Nesta
busca incansável por informações e esclarecimentos, os
familiares de presos políticos têm entrado com ações
contra a União, na maioria das vezes arquivadas. Porém, em
1993, conseguiu-se a primeira vitória em uma ação que já
durava dez anos.
Em
1982, os familiares dos presos desaparecidos durante a
Guerrilha do Araguaia entraram com uma ação ordinária, na 1ª
Vara de Justiça Federal, contra a União. Nesta ação eles
pediam a indicação do local onde foram enterrados seus
familiares, os respectivos atestados de óbito e a quebra de
sigilo sobre o Relatório Oficial das Forças Armadas,
publicado em 1975, que dá informações sobre o conflito. O
processo foi extinto, sem julgamento de mérito.
Os
familiares apelaram então ao Tribunal Regional Federal que,
em agosto de 1993, decidiu por unanimidade em favor dos
familiares. Esta foi a primeira grande vitória nesta luta. Em
sua sentença, o Tribunal afirma que “se a pretensão dos
autores depende da prova requerida, esta não lhe pode ser
negada, nem reduzido ao âmbito de seu pedido, sob pena de
configurar-se uma situação de autêntica denegação de
justiça”. (5)
TORTURA
E DESAPARECIMENTOS NA DÉCADA DE 90
A
tortura sempre existiu no Brasil, seja na forma da violência
física – contra os escravos durante a colonização, contra
os presos políticos nas décadas de 30, 60 e 70, ou contra
presos comuns após a abertura política -, ou seja marcada
pela exclusão social – fome, miséria, ignorância e doenças.
Porém, é a partir do golpe de 1964, com a doutrina da Lei de
Segurança Nacional, que ela se institucionaliza no País, ao
mesmo tempo que o desaparecimento de pessoas surge como forma
de repressão política ou social.
“A
doutrina da Lei de Segurança Nacional e a Escola Superior de
Guerra vieram dos EUA. Essa doutrina é simples e poderosa,
enquanto instrumento ideológico. (...) Para destruirmos o mal
absoluto tudo é permitido. Então, em nome do bem absoluto, nós
praticamos o mal absoluto”! Esta foi a chave ideológica que
levou as Forças Armadas brasileiras a aceitar a
institucionalização do crime: a tortura”, afirma Hélio
Pellegrino. (6)
Institucionalizada,
a cultura da tortura e do desaparecimento permanece ainda hoje
nos órgãos de segurança do Estado. Esta prática é
utilizada por oficiais e policiais que participaram ativamente
da repressão política nas décadas de 60 e 70 e hoje ocupam
cargos nas Polícias Civil e Militar, ou mesmo nas Secretarias
de Segurança, inclusive com postos de chefia. A tortura e o
desaparecimento, práticas que aviltam os direitos de qualquer
pessoa humana, são realizados, hoje, contra presos comuns nas
delegacias ou através dos grupos de extermínio.
O
relatório sobre a violência urbana publicada em 1993 pela América
Watch e pelo Núcleo de Estudos da Violência da USP relata
casos ocorridos na Rota (SP) onde oficiais são promovido3s
pelo número de mortes executadas.
Há
também, assassinatos de líderes rurais que lutam pela
reforma agrária e pelos direitos humanos no campo.
“No
passado, o opositor político era sequestrado, torturado,
isolado, assassinado, desaparecido e enterrado como indigente,
perpetuando assim a tortura sobre seus familiares e amigos.
Hoje, a mesma prática se aplica aos que, por sua humilhante
miséria, denunciam as injustiças sociais, aniquilando-os
como simples objetos, daí a indigência. Daí também o
extermínio dos meninos e meninas de rua no Brasil sob a
justificativa não muito clara, mas entendida por parte da
população, como necessária ‘limpeza social’.” (7)
NOTAS
(1)
Declaração do advogado Herman Assis Baeta durante o I
Seminário do Grupo Tortura Nunca Mais. Os pronunciamentos
foram organizados por Branca Eloysa e publicados pela Editora
Vozes, Petrópolis, em 1987.
(2)
Jornal Tortura
Nunca Mais, edição especial de novembro de 1993. São
Paulo. “Toda a dor dos desaparecidos políticos”. Por Luís
Eduardo Greenghalg.
(3)
Idem (1)
(4)
Jornal Tortura
Nunca Mais, edição de novembro/93. Rio de Janeiro.
“Desaparecido Político e Indigente: resgatando a memória
brasileira”.
(5)
Boletim dos
Familiares dos Mortos e Desaparecidos Políticos, edição
de novembro/93. “O processo do Araguaia”.
(6)
Declaração do psicanalista Hélio Pellegrino durante
o I Seminário do Grupo Tortura Nunca Mais. Idem (1)
(7)
Idem (43)
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