
O ser
humano como fonte de todo direito
MARIA VICTORIA BENEVIDES Socióloga
Há pouco mais de cem anos ainda vivíamos no regime da Casa
Grande e Senzala. Nossos antepassados defendiam a escravidão
como "natural", pois acreditavam, ou fingiam
acreditar, em falsas teorias sobre a "inferioridade"
dos negros. Tinham, ainda, o apoio espiritual dos que
invocavam a diversidade na criação divina para justificar as
odiosas desigualdades entre seres humanos. Somos, portanto,
herdeiros desse crime hediondo, causa principal da permanência,
entre nós, de uma mentalidade que tende a dar um conteúdo
pejorativo aos Direitos Humanos.
Para os senhores fidalgos os negros não tinham direitos
porque não os mereciam, e não os mereciam porque não eram
pessoas, mas sim "propriedade", sobre a qual valia
apenas "a lei" dos donos. Ou seja, prevalecia a noção
de que "ser pessoa e ter direitos" - a começar pelo
direito à vida - dependia de certo "merecimento",
como o lugar onde se nasceu, a cor da pele e as relações de
poder vigentes. Hoje essa noção ainda prevalece, no mundo,
nos vários casos de discriminação, que vai do preconceito
até a eliminação física. Vivemos, no final do século XX,
a barbárie da "faxina étnica" _ quando se mata em
nome da suposta pureza de um povo, que estaria sendo
contaminada pelo sangue dos "diferentes" - e do
fundamentalismo religioso, quando se mata em nome de uma crença.
Em nosso país ainda convivemos com trabalho escravo e
trabalho infantil, além de outros crimes decorrentes do
racismo e do preconceito. Mas já está se formando uma nova
consciência sobre a dignidade intrínseca de todo ser humano:
qualquer indivíduo, em qualquer lugar, deve ser
"reconhecido como pessoa perante a lei", como reza o
artigo VI. Essa palavra "lei" resume o conjunto de
direitos e deveres da pessoa, justamente por ser pessoa, pela
sua natureza superior aos demais seres vivos,
independentemente de quaisquer outras condições.
O artigo VI deveria ser preâmbulo da Declaração de
Direitos, pois não indica nenhum direito específico, mas
afirma a idéia revolucionária do reconhecimento do estatuto
de "pessoa" a todos os seres humanos. É o que
garante a homens e mulheres, ricos e pobres, crentes e ateus,
nacionais e estrangeiros, em qualquer lugar _ no Sudão, na
Palestina, na Bósnia, nos países islâmicos, nos campos de
refugiados, nas prisões, nos guetos dos negros nos Estados
Unidos, nos bairros de trabalhadores imigrantes nos países
europeus, no sertão e nas favelas do Brasil e da América
Latina _ o reconhecimento de sua dignidade como pessoa, e não
apenas como um número nas estatísticas, ou um
"elemento", um "desclassificado".
É uma idéia revolucionária pois afirma, como uma novidade
radical, a universalidade dos direitos da pessoa e define que
o ser humano é a fonte de todo o Direito, e que este não
deriva mais de um Deus, ou de uma transcendência, mas da própria
natureza humana. É revolucionária no sentido de abolir as
fronteiras nacionais para propor, para todos, o que foi
consagrado na bandeira histórica da liberdade, da igualdade e
da solidariedade .
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