
Educação
para a Democracia
(versão resumida de conferência
proferida no âmbito do concurso para Professor Titular em
Sociologia da Educação na FEUSP, 1996)
Maria Victoria
Benevides
No campo amplo e generoso da Sociologia da Educação, a
variedade de interesses e intervenções cresce paralela à
velocidade e à complexidade das mudanças culturais -
entendidas em todas as suas expressões - nas sociedades
contemporâneas. Assim, pretendo discutir um tema que, a meu
ver, melhor reúne as reflexões de uma socióloga no trato
com a "coisa pública", com a política e suas
inarredáveis relações com a educação e os sistemas de
ensino: o tema da educação
para a democracia.
Porque escolhi esse tema ? Por vários motivos, mas o
principal deles diz respeito à realidade brasileira. Além da
persistente cultura política oligárquica, durante o regime
militar (1964-1985) o Brasil viveu um período de redução
dos direitos de cidadania e de minimização da atividade política.
Isso correspondeu a uma concepção economicista/produtivista
da sociedade, na qual a única função meritória dos indivíduos
é produzir, distribuir e consumir bens e serviços. Com o
movimento de democratização do país e com o reconhecimento
universal de que não há desenvolvimento exclusivamente no
campo econômico, sem concomitante desenvolvimento social e
político, a questão da educação política se tornou de
fundamental importância. Hoje podemos afirmar que a cidadania
é uma idéia em expansão; no entanto, a ação política
continua desvalorizada e o cidadão pode ser visto apenas como
o contribuinte, o consumidor, o reivindicador de benefícios
individuais ou corporativos, e não do bem comum. E
sequer o princípio constitucional de escola para todos
consegue ser cumprido.
É sabido, também, que existe, no sistema de ensino
brasileiro, um "espaço" para a educação do cidadão
- na maioria das vezes como mero ornamento retórico ou, então,
confundida com um vago civismo ou "patriotismo", o
qual, evidentemente, varia muito de acordo com as concepções
dos principais dirigentes educacionais.
Além disso, a "educação para a cidadania",
presente como objetivo precípuo em todos os programas
oficiais das secretarias de Educação, estaduais e
municipais, independe do compromisso explícito dos diversos
governantes com a prática democrática. Mas não existe,
ainda, a educação para a democracia, entendida, a
partir da óbvia universalização do acesso de todos à
escola, tanto para a formação de governados quanto de
governantes. Ao contrário, aqui ainda persiste, como no
exemplo criticado por Alain no sistema francês, "um
ensino monárquico, ou seja, aquele que tem por objetivo
separar os que serão sábios e governarão, daqueles que
permanecerão ignorantes e obedecerão". Aliás, o grande
educador brasileiro Anísio Teixeira também deve ser evocado
em sua crítica à "escola paternalista, destinada a
educar os governados, os que iriam obedecer e fazer, em oposição
aos que iriam mandar e pensar, falhando logo, deste modo, ao
conceito democrático que a deveria orientar, de escola de
formação do povo, isto é, do soberano, numa
democracia".
Além do exemplo brasileiro, é crucial a advertência de
Norberto Bobbio, para quem a apatia política dos cidadãos
compromete o futuro da democracia, inclusive no chamado
primeiro mundo. Dentre as "promessas não cumpridas"
para a consolidação do ideal democrático, aponta ele o
relativo fracasso da educação para a cidadania como
transformação do súdito em cidadão. Bobbio recorre, ainda,
às teses de Stuart Mill para reforçar a necessidade de uma
educação que forme cidadãos ativos, participantes, capazes
de julgar e escolher - indispensáveis numa democracia, mas não
necessariamente preferidos por governantes que confiam na
tranqüilidade dos cidadãos passivos, sinônimo de súditos dóceis
ou indiferentes.
Para discutir o tema valho-me de obras clássicas e de autores
contemporâneos, tanto específicos da área de educação
quanto das áreas afins. É evidente que estou ciente das
limitações desta conferência para tema tão ambicioso - mas
mantenho o olhar indagativo, algumas vezes perplexo, mas
sempre apaixonado pela riqueza do tema, pelo menos tão antigo
e fascinante quanto o próprio tema da democracia, desde o
esplendor da polis grega.
Democracia é o regime político fundado na soberania popular
e no respeito integral aos direitos humanos. Esta breve definição
tem a vantagem de agregar democracia política e democracia
social. Em outros termos, reúne os pilares da
"democracia dos antigos" - tão bem explicitada por
Benjamin Constant e Hannah Arendt, como a liberdade para a
participação na vida pública - aos valores do liberalismo e
da democracia moderna, quais sejam, as liberdades civis, a
igualdade e a solidariedade, a alternância e a transparência
nos poder (contra os arcana imperi de que fala Bobbio),
o respeito à diversidade e a tolerância. Educação é aqui
entendida, basicamente, como a formação do ser humano para
desenvolver suas potencialidades de conhecimento, julgamento e
escolha para viver conscientemente em sociedade, o que inclui
também a noção de que o processo educacional, em si,
contribui tanto para conservar quanto para mudar valores, crenças,
mentalidades, costumes e práticas.
Ao criticar a democracia existente - "um rascunho do que
poderia ser" - John Dewey afirmava que uma sociedade
democrática não requeria apenas o governo da maioria, mas a
possibilidade de desenvolver, em todos os seus membros, a
capacidade de pensar, participar na elaboração e aplicação
das políticas públicas e julgar os resultados. O filósofo
americano estava falando, sem dúvida, em educação para a
democracia.
Na seqüência do prodigioso pensamento da antigüidade clássica,
seguindo a orientação aristotélica, cabe destacar a
originalidade da tese de Montesquieu sobre as "leis da
educação", aquelas que recebemos em primeiro lugar e são
decisivas sob todos os aspectos. Montesquieu estabelece uma
relação indispensável entre o tipo de regime político e o
sistema educacional. É impossível, diz ele, uma república
sem educação republicana, uma educação igualitária num
regime que não seja igualitário.
No Brasil, com a tradicional oposição entre o "país
legal" e o "país real", a aproximação entre
a realidade política e o regime democrático consagrado na
Constituição vai depender, essencialmente, do esforço
educacional.
O que entendo por educação para a democracia ?
A educação para a democracia comporta duas dimensões: a
formação para os valores republicanos e democráticos e a
formação para a tomada de decisões políticas em todos os níveis,
pois numa sociedade verdadeiramente democrática ninguém
nasce governante ou governado, mas pode vir a ser,
alternativamente - e mais de uma vez no curso da vida - um ou
outro.
Três elementos são indispensáveis e interdependentes para a
compreensão da EPD:
1. A formação intelectual e a informação - da antigüidade
clássica aos nossos dias trata-se do desenvolvimento da
capacidade de conhecer para melhor escolher. Para formar o
cidadão é preciso começar por informá-lo e introduzi-lo às
diferentes áreas do conhecimento, inclusive através da
literatura e das artes em geral. A falta, ou insuficiência de
informações reforça as desigualdades, fomenta injustiças e
pode levar a uma verdadeira segregação. No Brasil, aqueles
que não têm acesso ao ensino, à informação e às diversas
expressões da cultura lato sensu, são, justamente, os
mais marginalizados e "excluídos".
2. A educação moral, vinculada a uma didática de
valores que não se aprendem intelectualmente apenas, mas
sobretudo pela consciência ética, que é formada tanto de
sentimentos quanto de razão; é a conquista de corações
e mentes.
3. A educação do comportamento, desde a escola primária,
no sentido de enraizar hábitos de tolerância diante
do diferente ou divergente, assim como o aprendizado da
cooperação ativa e da subordinação do interesse pessoal ou
de grupo ao interesse geral, ao bem comum. Sem
participação dos interessados no estabelecimento de metas e
em sua execução, como já afirmava Dewey, não existe
possibilidade alguma de bem comum. É preciso tempo para
sacudir a apatia e a inércia, para despertar o interesses
positivo e a energia ativa (Dewey). Ora, é evidente que essa
é uma tarefa para a educação para a democracia.
À luz da interdependência desses três elementos para a
formação democrática, deve ser salientado, aqui, a grave
carência que tem representado, nos últimos tempos, o
rebaixamento da educação literária comparativamente ao
ensino das ciências exatas ou biológicas. Nosso mestre
Antonio Candido salientou a esse respeito, com muita
propriedade, o papel pedagógico da literatura como um processo
de humanização, isto é, "o que confirma no homem
aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da
reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com
o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de
penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção
da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. A
literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida
em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza,
a sociedade, o semelhante".
A educação para a democracia difere, também, da simples
instrução cívica, que consiste no ensino da organização
do Estado e dos deveres do cidadão, bem como difere da formação
política geral, que visa a facilitar aos indivíduos a
informação política, qualquer que seja o regime vigente. Em
decorrência, a EPD nunca se fará por imposição, como uma
doutrina oficial, mas pela persuasão, até mesmo porque um
dos valores fundamentais da democracia é a liberdade
individual, que não pode ser sacrificada em nome de uma
ideologia nacional.
A EPD consiste, portanto, em sua primeira dimensão, na formação
do cidadão para viver os grandes valores democráticos que
englobam as liberdades civis, os direitos sociais e os de
solidariedade dita "planetária".
A educação como formação e consolidação de tais valores
torna o ser humano ao mesmo tempo mais consciente de sua
dignidade e da de seus semelhantes - o que garante o valor da
solidariedade - assim como mais apto para exercer a sua
soberania enquanto cidadão.
Em sua segunda dimensão, a EPD consiste na cidadania ativa,
ou seja, a formação para a participação na vida pública.
Isso significa participar como cidadão comum ou como
governante. A educação não consiste apenas no processo
social que permite ao indivíduo, enquanto governado, ter
conhecimento de direitos e deveres e deles dar conta com escrúpulo
e inteligência - mas sim capacitar a todos para a posição
de governante em potencial (Calvez). Essa educação tem uma
metodologia própria, cuja estrutura é dada pelas regras da argumentação,
com sua lógica própria, bem diversa da lógica da demonstração
científica.
O pensamento clássico, como é sabido, qualificava a educação
como uma instituição política - isto é, como elemento da
organização do Estado. A principal tarefa dos governantes -
no mundo greco-romano - era, justamente, propiciar a educação
de cidadãos ativos e participantes. Essa era considerada a
principal virtude - a aretê- de um regime político. A
formação da sociedade pressupunha um povo adulto na política,
e não tutelado ou meramente indiferente. Era este,
certamente, o leitmotiv de Platão, no diálogo com os
sofistas e, certamente, o de Aristóteles, em Política e
em Ética a Nicômaco.
A educação, segundo Aristóteles, deveria inculcar o amor às
leis - elaboradas com a participação dos cidadãos -, mas a
lei perderia sua função pedagógica se não se enraizasse na
virtude e nos costumes: "a lei torna-se simples convenção,
uma espécie de fiança, que garante as relações
convencionais de justiça entre os homens, mas é impotente
para tornar os cidadãos justos e bons". Daí, a ligação
estreita entre costumes democráticos e regime democrático,
assim como a importância da educação pública para a
salvaguarda da ética e do respeito às instituições. Aristóteles
admite, dentro da categoria dos cidadãos ativos, a
possibilidade de o governado tornar-se governante, "pois
os mais nobres valores morais são os mesmos, para todos os
indivíduos e para a coletividade. Cabe à Educação inculcá-los".
Ora, se isso é razoável e desejável, a educação para a
democracia é necessária também
para formar govermantes.
Em Da Republica, Cicero defende a educação específica
para o governo, "para servir o Estado". Considerava,
por exemplo, estranho que os sábios, leigos na arte da navegação,
se declarassem aptos a comandar um navio em situação de
turbulência, embora jamais o houvessem tentado em mares tranqüilos.
Justificavam o desprezo pelo estudo e o ensino das coisas do
governo, da res publica, porque acreditavam poder
assumi-lo em caso de crise. Ora, argumenta o cônsul romano, a
simples possibilidade da responsabilidade pública exige a
aquisição "de todos os conhecimentos os quais
ignoramos, se, algum dia, precisarmos deles nos valer".
A EPD na dimensão de formação de governantes significa,
concretamente, a preparação para o julgamento político
necessário à tomada de decisões. Trata-se de enfrentar
problemas - dos mais variados tipos - e o critério para o
julgamento será sempre o da justiça - decorrente dos valores
da liberdade, da igualdade e da solidariedade.
Logo, a EPD é uma formação para a discussão, para a
argumentação, com o pressuposto da tolerância.
Nesta ordem de considerações, deve-se entender por valores
republicanos, basicamente:
a) o respeito às leis, acima da vontade dos homens, e
entendidas como "educadoras", no sentido já visto
na antigüidade clássica. "Todo verdadeiro
republicano", ensinava Rousseau, " bebia no leite de
sua mãe o amor da pátria, isto é, das leis e da
liberdade";
b) o respeito ao bem público, acima do interesse
privado e patriarcal. Em nosso país trata-se de romper a
tradição doméstica, tendente ao despotismo, que moldou
nossos costumes (vale a pena lembrar que despotes, em
grego, é pai de família, e que a família antiga, como bem
observou Benjamim Constant, representava a negação de
direitos e liberdades individuais);
c) o sentido de responsabilidade no exercício do poder, inclusive
o poder implícito na ação dos educadores, sejam eles
professores, orientadores ou demais profissionais do ensino.
Em política, a responsabilidade tem dois significados, melhor
compreensíveis na língua inglesa: accountabillity e responsibility.
O primeiro termo significa o dever de prestar contas,
englobando todos os mandatários, isto é, os que exercem o
poder em nome de outrem; o segundo terno significa a sujeição
de todos, governantes ou governados, ao rigor das sanções
legalmente previstas. Em ambos os casos, a responsabilidade é
da essência do regime democrático.
E por valores democráticos, estreitamente ligados aos
republicanos, entendem-se:
a) a virtude do amor à igualdade, de que falava
Montesquieu, e o conseqüente repúdio a qualquer forma de
privilégio;
b) o respeito integral aos direitos humanos, cuja essência
consiste na vocação de todos - independentemente de diferenças
de raça e etnia, sexo, instrução, credo religioso,
julgamento moral, opção política ou posição social - a
viver com dignidade, o que traz implícito o valor da
solidariedade;
c) o acatamento da vontade da maioria, legitimamente
formada, porém com constante respeito pelos direitos das
minorias, o que pressupõe a aceitação da diversidade e
a prática da tolerância.
A virtude da tolerância, aliada à arte da argumentação, não
significa levar ao extremo o temor do etnocentrismo e bloquear
todo julgamento ético em nome do relativismo cultural.
Pascal já ironizava a distinção entre verdade e erro,
conforme se estivesse de um ou de outro lado da linha dos
Pirineus. Mas o respeito à diferença não significa
esterilidade de convicções. Ao relativismo cultural, Karl
Popper opõe o pluralismo crítico, no sentido de que a velha
ética, fundada no saber pessoal e seguro, decorrente da
autoridade, deve ser substituída por uma nova ética, fundada
na idéia do saber objetivo e, necessariamente, inseguro.
Necessitamos de outras pessoas para o descobrimento e correção
de nossos erros - especialmente de pessoas que foram educadas
em culturas diferentes - e isso conduz à tolerância, o que não
implica na aprovação incondicional de práticas que
violentam nossos próprios valores.
Em sua veemente defesa da democracia, Dewey também se
manifesta contra a "consagração" do relativismo
cultural, pois a sua plena aceitação, inclusive de práticas
opressoras em outras culturas, significaria admitir que os
direitos fundamentais de igualdade, liberdade e dignidade
devem variar conforme as civilizações e as coordenadas geográficas.
O que não significa, evidentemente, propugnar algum tipo de
uniformidade cultural. A própria educação, segundo ele,
deveria garantir o direito à informação, permitir a hipótese
de que, talvez, outros povos ou setores sociais numa mesma
sociedade, podem ser beneficiados por conhecerem formas
alternativas de vida, concepções diferentes das suas raízes.
E ter, enfim, a liberdade de escolher. Nesse sentido, a educação
para a democracia é entendida como a educação para saber
discutir e escolher.
A didática dos valores supõe, como já visto, a lógica da
argumentação. Aqui é importante voltar ao tema de Antonio
Candido, quando insiste que "nas nossas sociedades a
literatura tem sido um instrumento poderoso de instrução e
educação, entrando nos currículos, sendo proposta a cada um
como equipamento intelectual e afetivo. Os valores que a
sociedade preconiza, ou os que considera prejudiciais, estão
presentes nas diversas manifestações da ficção, da poesia
e da ação dramática. A literatura confirma e nega, propõe
e denuncia, apóia e combate, fornecendo a possibilidade de
vivermos dialeticamente os problemas. Por isso é indispensável
tanto a literatura sancionada quanto a literatura proscrita; a
que os poderes sugerem e a que nasce dos movimentos de negação
do estado de coisas predominante".
Os direitos implícitos nos valores são definíveis
intelectualmente, mas o seu conhecimento não é suficiente
para que eles sejam respeitados, promovidos e protegidos. Os
direitos são históricos: é preciso entendê-los nas suas
origens, mas também no seu significado atual e universal,
assim como é mister compreender as dificuldades políticas e
culturais para sua plena realização.
Vale lembrar como Montesquieu já situava os direitos da
humanidade acima de todos os outros. Numa luminosa reflexão,
infelizmente pouco divulgada, por pertencer aos seus escritos
esparsos, ele afirma: " Se eu soubesse de algo que me
fosse útil e prejudicial à minha família, eu o rejeitaria
de meu espírito. Se soubesse de algo que fosse útil à minha
família e não à minha pátria, procuraria esquecê-lo. Se
soubesse de algo que fosse útil à minha pátria e
prejudicial à Europa, ou então útil à Europa e prejudicial
ao gênero humano, eu consideraria isso um crime".
É conhecida a relação muitas vezes vista como dilemática
entre igualdade e liberdade. Ora, os direitos civis e políticos
exigem que todos gozem da mesma liberdade, mas são os
direitos sociais que garantirão a redução das desigualdades
de origem, para que a falta de igualdade não acabe gerando,
justamente, a falta de liberdade.
Por sua vez, não é menos verdade que a liberdade propicia as
condições para a reivindicação de direitos sociais. Já em
abril de 1792, Condorcet alertava, no Relatório sobre a
Instrução Pública apresentado à Assembléia Legislativa:
"os direitos humanos permanecerão formais se não se
firmarem na base da igualdade efetiva dos indivíduos em
relação à Educação e à Instrução".
É nesse sentido que se posicionam todos os críticos das
"mistificações igualitárias", presentes nas teses
das "oportunidades iguais" na escola, apesar do
abismo das diferenças sociais. Dewey, por exemplo, é
bastante claro ao considerar completamente "absurda"
a idéia de que a liberdade poderia ser igual para todos, sem
que se levem em conta as diferenças prévias em matéria de
educação, condições sócio-econômicas, controle social
caracterizado pela instituição da propriedade.
Ao discutir os valores democráticos é importante, no
entanto, estabelecer certos pontos e destacar o valor da
solidariedade. A liberdade e a igualdade estão, como se vê,
estreitamente ligadas à tolerância. Mas esta é uma virtude
passiva, ou seja, é a aceitação da alteridade e das diferenças.
Enquanto que a solidariedade é, em si mesma, uma virtude
ativa - por isso muito mais difícil de ser cultivada -, pois
exige uma ação positiva para o enfrentamento das diferenças
injustas entre os cidadãos.
A educação para esses três valores deve ser diferenciada. Não
basta educar para a tolerância e para a liberdade, sem o
forte vinculo estabelecido entre igualdade e solidariedade.
Esta implicará no despertar dos sentimentos de indignação e
revolta contra a injustiça e, como proposta pedagógica,
deverá impulsionar a criatividade das iniciativas tendentes a
suprimi-la, bem como levar ao aprendizado da tomada de decisões
em função de prioridades sociais.
Nos Propos de Alain está explícita esta prioridade,
quando o autor denuncia a preferência dos professores pelos
"aristocratas", quando deveriam alegrar-se muito
mais por um camponês que aprende um pouco do que por um
elegante matemático que chega às Grandes Écoles. "
Todo esforço dos poderes públicos deveria ser empregado para
a educação das massas, ao invés de fazer brilhar algumas
exceções, alguns reis nascidos do povo e que dão um ar de
justiça à desigualdade".
Onde deve ser desenvolvida a educação para a democracia?
A escola é o locus privilegiado, embora sofra,
atualmente, a concorrência de outras instituições - como os
meios de comunicação de massa. A escola continua sendo a única
instituição cuja função oficial e exclusiva é a educação.
É evidente que existem outros espaços para a educação do
cidadão, dos partidos aos sindicatos, às associações
profissionais, aos movimentos sociais, aos institutos legais
da democracia direta. Mas a escola não deve substituir a
militância, pois forma cidadãos ativos e livres, e não,
como alertava Fernando de Azevedo, homens de partido, de facções
virtualmente intolerantes.
O principal paradoxo da democracia persiste: ela não existe
sem uma educação apropriada do povo para fazê-la funcionar,
ou seja, sem a formação de cidadãos democráticos. E a
formação de cidadãos democráticos supõe a preexistência
destes como educadores do povo, tanto no Estado quanto na
sociedade civil (Mougniotte).
Quem educa os educadores? Bobbio responderia que as duas
coisas andam juntas, que a política é sempre, como queria
Maquiavel, cosa a fare, pois a formação de educadores
se dará concomitantemente ao desenvolvimento das práticas
democráticas.
E a escola pode ser o grande instrumento para a formação
democrática, mas também o teste decisivo sobre o êxito e o
desenvolvimento - sempre dinâmico - da democracia como regime
político (Mougniotte). O paradoxo continua posto.
Concluindo, a EPD é um processo de longa duração; exige
continuidade e, como diria Weber, paciência, paixão e precisão
- como para "furar tábuas duras de madeira". Não
é objetivo de um governo ou de um partido.
Aliás, a Constituição Brasileira prevê um Plano Nacional
de Educação, a ser estabelecido por lei e, portanto, como um
programa de toda a comunidade nacional, e não de um
determinado governo. É, pois, objetivo de um extenso programa
de transformação da sociedade. Assim foi e ainda é nos países
que já têm, minimamente consolidados, direitos, liberdades e
práticas de cidadania ativa, pois o processo democrático é
dinâmico e supõe a possibilidade, sempre em aberto, de criação
de novos direitos e novos espaços para sua reivindicação e
seu exercício.
Nas palavras de Rousseau, um clássico educador político:
"A pátria não subsiste sem liberdade, nem a liberdade
sem a virtude, nem a virtude sem os cidadãos (...) Ora,
formar cidadãos não é questão de dias, e para tê-los
adultos é preciso educá-los desde crianças" (Sur L´économie
politique).
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