
Os
Direitos das Minorias Étnicas
Luciano
Mariz Maia*
PARTE A. A proteção
às minorias, no âmbito das Nações Unidas.
1. Questões
conceituais.
O sistema das Nações
Unidas tem proporcionado um dos mais amplos sistemas de proteção
às minorias, apesar do fato de que, até o presente momento, não
estar inteiramente desenvolvido e inobstante o fato de que muitos
grupos minoritários e muitos direitos da minorias ainda estão
fora do âmbito de proteção das provisões normativas
existentes. Esse sistema teve desenvolvimento como herança da
atuação sob a Liga das Nações. Com efeito, embora a história
registre vários tratados internacionais concluídos, com vistas
à proteção das minorias, aqueles não formavam propriamente um
conjunto sistemático de proteção efetiva. Foi no pós 1a Guerra
Mundial que ganhou consistência.
O problema das
minorias tornou-se relevante em razão das enormes mudanças
territoriais ocorridas na Europa, com as fronteiras nacionais
redesenhadas em decorrência do conflito armado. A questão
apresentava-se particularmente grave na Polônia, Iugoslávia2,
Checoslováquia, Romênia e Grécia. Tratados bilaterais foram
concluídos entre os estados interessados e os Aliados,
proporcionando proteção às minorias religiosas, lingüísticas
e raciais que habitavam seus territórios, tendo por modelo o
tratado celebrado com a Polônia.3
As minorias étnicas
se converteram em questão política após a ascensão do
nacionalismo no século XIX. O tratamento dado pelas forças
vitoriosas em Paris, em 1919, às minorias, decorreu menos de um
desejo de reconhecer direitos, que do receio de gerar
instabilidade política, com minorias dissidentes. Assim, razões
políticas é que ditaram o reconhecimento dos direitos das
minorias pelo direito internacional4.
Os assuntos que
mais de perto preocupam os grupos minoritários estão tratados em
vários pactos, convenções, tratados e outros atos
internacionais, ao lado de decisões do Comitê de Direitos
Humanos, formando o conjunto de instrumentos de proteção aos
direitos das minorias.
No âmbito das Nações
Unidas, a provisão normativa mais relevante é o artigo 27 do
Pacto dos Direitos Civis e Políticos, que dispõe:
Nos Estados em que
haja minorias étnicas, religiosas ou lingüísticas, as pessoas
pertencentes a essas minorias não poderão ser privadas do
direito de ter, conjuntamente com outros membros de seu grupo, sua
própria vida cultural, de professar e praticar sua própria
religião e usar sua própria língua.
2. Conceito de
minoria.
As Nações Unidas
não formalizaram uma definição de minoria universalmente
aceita. O primeiro esforço foi desenvolvido pela Sub-Comissão
para Prevenção da Discriminação e Proteção das Minorias,
quando, em 1950, sugeria: I - o termo minoria inclui, dentro do
conjunto da população, apenas aqueles grupos não dominantes,
que possuem e desejam preservar tradições ou características étnicas,
religiosas ou lingüísticas estáveis, marcadamente distintas
daquelas do resto da população; II - tais minorias devem
propriamente incluir um número de pessoas suficiente em si mesmo
para preservar tais tradições e características e - III tais
minorias devem ser leais ao Estado dos quais sejam nacionais.5
Aparecem na definição
aspectos relevantes: grupos não-dominantes (que podem ser em
maior ou menor número que os integrantes dos grupos dominantes,
que exercem o poder, na sociedade); com características distintas
da sociedade envolvendo, sendo estas étnicas, lingüísticas ou
religiosas; permanência como grupos distintos, preservando suas
características distintivas. Mas surge, ao final, conceito político:
devem ser leais ao Estado, do qual sejam nacionais. Ou seja, não
há aceitação de quem não seja nacional. Mais. Não há
reconhecimento ao direito de secessão.
Posteriormente,
duas outras definições relevantes foram trabalhadas. Em um
trabalho divulgado em 1979, Francesco Capotorti define minoria
como grupos distintos dentro da população do Estado, nacionais
desse Estado, possuindo características étnicas, religiosas ou
lingüísticas estáveis, que diferem fortemente daquelas do resto
da população; eles devem ser em princípio numericamente
inferiores ao resto da população; em uma posição de não dominância.6
7
Essa definição
manteve alguns elementos daquela trabalhada anteriormente.
Thornberry lembra
que, na essência, esse conceito foi manifestado pela Corte
Permanente Internacional de Justiça, decidindo o caso Comunidades
Greco-Bulgárias:
Por tradição... a
comunidade é um grupo de pessoas vivendo em um determinado país
ou localidade, tendo sua própria raça, religião, língua ou
tradição, sendo unidos por essa identidade de raça, religião,
língua e tradição em um sentimento de solidariedade, com vistas
a preservar suas tradições, mantendo sua forma de professar a fé,
assegurando a instrução e criação de suas crianças de acordo
com o espírito e a tradição de sua raça, e conferindo assistência
mútua uns aos outros.8
Esse conceito é o
que mais se aproximará do formulado por antropólogos, como se
verá adiante.
Por fim, em 1985
Jules Deschênes, canadense, ofereceu à Sub-Comissão das
Minorias uma outra definição, a partir dos estudos anteriores.
Segundo ele, uma minoria é formada por
um grupo de cidadãos
de um Estado, constituindo minoria numérica e em posição não-dominante
no Estado, dotada de características étnicas, religiosas ou lingüísticas
que diferenciam daquelas da maioria da população, tendo um senso
de solidariedade um para com o outro, motivado, senão apenas
implicitamente, por uma vontade coletiva de sobreviver e cujo
objetivo é conquistar igualdade com a maioria, nos fatos e na
lei.9
Novamente estão
presentes critérios objetivos e subjetivos, além da introdução
de elemento político: nacionalidade ou cidadania do Estado.
Os conceitos
trabalhados tanto pela Corte Permanente Internacional de Justiça,
quanto pelos especialistas da ONU, Capotorti e Deschênes,
assemelham-se aos formalizados por antropólogos, exceto quanto ao
componente político introduzido naqueles primeiros.
Os antropólogos
Wagley e Harris resumem como sendo 5 as características de
minorias: 1) são segmentos subordinados de sociedades estatais
complexas; 2) as minorias têm traços físicos ou culturais
especiais que são tomadas em pouca consideração pelo
segmento dominante da sociedade; 3) as minorias são unidades
auto-conscientes ligadas pelos traços especiais que seus membros
partilham e pelas restrições que os mesmos produzem; 4) a
qualidade de membro de uma minoria é transmitida pela regra de
descendência a qual é capaz afiliar gerações sucessivas mesmo
na ausência de prontamente aparentes traços físicos ou
culturais; 5) os povos minoritários, por escolha ou necessidade,
tendem a casar dentro do grupo.10
Como aponta Moonen,
para o antropólogo, o conceito de minoria não é puramente
quantitativo, mas torna-se qualitativo, desde que a diferença está
no tratamento recebido, no relacionamento - ou fricção - entre
os vários grupos, existindo relação de dominação/subordinação,
em que a maioria é quem domina, não importa seu número, e a
minoria é dominada.11
Porisso tem
merecido críticas a introdução, nos conceitos desenvolvidos no
âmbito da própria ONU, do elemento político ser nacional ou
cidadão do Estado em que habite, como condição a ser
reconhecido direito enquanto minoria.
Curiosamente, o próprio
Comitê de Direitos Humanos, órgão de monitoramento instituído
pelo Pacto dos Direitos Civis e Políticos, das Nações Unidas,
em seu Comentário Geral, declara que o artigo 27 protege todas as
pessoas pertencentes aos grupos minoritários, e tais pessoas ou
indivíduos não precisam ser cidadãos do Estado parte. Mais
ainda. O Estado parte não pode restringir os direitos contidos no
artigo 27 unicamente a seus cidadãos.12
No que pertine à
existência de uma minoria dentro do território de um Estado, a
questão é unicamente de fato. Assim, se a existência de um
grupo minoritário dentro de um Estado é objetivamente
demonstrada, não reconhecer tal grupo como sendo uma minoria não
dispensa o Estado do seu dever de atender às exigências do
artigo 27.13 Desse modo, nem membros de um grupo nem o Estado
podem, discricionariamente, arbitrar se o grupo possui os
fatores característicos distintivos, e se incide no conceito de
minoria. Nesse sentido, foi aplicado o entendimento sustentado
pela Corte Permanente Internacional de Justiça, quando decidindo
o caso da Silesia Superior (Upper Silesia).14
Em síntese, a
identificação de uma minoria envolve a apreciação de critérios
objetivos, e critérios subjetivos.
Veremos ao longo
desse trabalho que essa questão é altamente sensível, para as
minorias envolvidas. É que, no mais das vezes, caberá ao Estado
reconhecer ou não determinado grupo como sendo índios - para o
fim de reconhecer-lhes o direito às terras de ocupação
tradicional -; como remanescentes de quilombos - e
titularizar-lhes de modo coletivo a terra ocupada daquele sítio
histórico -; como ciganos, etc. E ser ou deixar de ser nacional
ou cidadão terá enorme relevância, quando se tratar das novas
minorias, surgidas a partir de movimentos migratórios.
3. Tipos de
minorias listadas para proteção.
Uma das críticas
que se faz ao artigo 27 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos
é que nem todas as minorias estão protegidas sob o seu manto.
Apenas as minorias étnicas, religiosas ou lingüísticas estão
sob o manto do artigo 27.
Minorias religiosas
são grupos que professam e praticam uma religião (não
simplesmente uma outra crença, como o ateísmo, e.g.)15 que se
diferencia daquela praticada pela maioria da população.
Esse é outro
aspecto de relevo, a conceituação de religião, para fins de
proteção. Walker aponta que religião envolve crença em, e
conciliação de, poderes considerados superiores ao homem os
quais são acreditados como reguladores e controladores do curso
da natureza e da vida humana. Envolve elementos de crença, um
corpo de dogma, atos de profissão de fé, e ritual.16 Dinstein
reconhece que não há definição de religião que seja comumente
aceita, e, ao analisar a liberdade religiosa das minorias
religiosas, opta por considerar religião - por oposição a
qualquer outra forma de crença - relaciona-se com a fé em um Ser
Supremo, ou em múltiplas deidades, ou pelo menos em alguns espíritos
ou poderes sobrenaturais capazes de influenciar as atividades
humanas.17
Para dizer o menos,
são minorias religiosas no Brasil judeus, budistas, muçulmanos,
evangélicos, espíritas, praticantes de candomblé (religião
iorubá), entre outros.
Minorias lingüísticas
são grupos que usam uma língua
, quer entre os membros do grupo, quer em público, que claramente
se diferencia daquela utilizada pela maioria, bem como da adotada
oficialmente pelo Estado. Não há necessidade de ser uma língua
escrita. Entretanto, meros dialetos que se desviam ligeiramente da
língua da maioria não gozam do status de língua de um grupo
minoritário.18 Do mesmo modo que religião, e, a seguir, etnia,
precisam ser definidas, o mesmo se dá com a expressão língua, e
minorias lingüísticas. Língua é utilizada como sinônimo de
linguagem, querendo significar método humano e não instintivo de
comunicar idéias, sentimentos e desejos, por meio de um sistema
de sons e símbolos sonoros.19 Daí se percebe a importância,
quer para o grupo minoritário, quer para a sociedade dominante,
do reconhecimento da existência de uma comunidade cujo patrimônio
se distingue e é tornado especial precisamente pelo modo de
comunicação de seus sentimentos, suas idéias, seus valores,
etc. A língua constrói fronteiras, define marcos e limites. Ou
os supera. Todas têm de ser respeitadas no que de particular têm
para contribuir com a diversidade cultural.
Por fim, as
minorias étnicas são grupos que apresentam fatores distinguíveis
em termos de experiências históricas compartilhadas e sua adesão
a certas tradições e significantes tratos culturais, que são
diferentes dos apresentados pela maioria da população.20
Para Fredrik Barth,
"O termo grupo étnico é utilizado geralmente na literatura
antropológica para designar uma comunidade que: a) em grande
medida se autoperpetua biologicamente; 2) compartilha valores
culturais fundamentais realizados com unidade manifestada em
formas culturais; 3) integra um campo de comunicação e interação;
4) conta com membros que se identificam a si mesmos e são
identificados pelos outros e que constituem uma categoria distinguível
de outras categorias da mesma ordem". 21
Na sua realidade no
cotidiano, não há como aplicar modelos teóricos, esperando que
os grupos e comunidades se amoldem sem dificuldades. Geralmente,
as categorias se superpõem, de modo que uma minoria religiosa
muitas vezes também é minoria étnica e lingüística,
vice-versa. Assim se dá com muitas comunidades judias e muçulmanas
nas Américas, e no Brasil.
4. Direitos das
minorias e direitos individuais
A ênfase básica
conferida pelo Artigo 27 do Pacto é sobre direitos dos indivíduos,
membros de grupos minoritários, embora eles possam ser gozados em
comunhão com os demais integrantes do grupo. Essa circunstância
pode impedir a utilização de instrumentos de defesa coletiva,
quando se invocar a violação desses direitos, valendo-se do
Artigo 1 do Primeiro Protocolo Opcional ao Pacto dos Direitos
Civis e Políticos. Nada obstante, o Comitê de Direitos Humanos,
órgão de monitoramento do Pacto dos Direitos Civis e Políticos,
considerou que em alguns circunstâncias tratam-se de direitos
coletivos, e, como tais, devendo ser protegidos.
Os precedentes
relevantes são Lovelace v Canada e Kitok v Sweden.
Sandra Lovelace era
uma índia que, casando com um não índio, foi viver com este em
uma cidade do Canadá, deixando sua reserva. Após alguns anos,
ela se separa do marido, e deseja retornar ao convívio comunitário
em sua reserva. O Conselho tribal recusa seu retorno, no que é
apoiado pelo governo do Canadá. Sandra Lovelace reclama ao Comitê
de Direitos Humanos que o governo canadense negou-lhe o direito de
usufruir os direitos decorrentes do artigo 27 do Pacto,
notadamente, de manter vida comunitária com os demais membros de
seu grupo étnico, desde que a existência de seu grupo indígena
se restringia ao habitat da reserva.
O Comitê de
Direitos Humanos considerou que pessoas nascidas e criadas em uma
reserva indígena, que mantiveram laços com sua comunidade e
desejam continuar mantendo tais laços devem normalmente ser
consideradas como pertencendo àquela minoria. As restrições
afetando o direito de alguém membro da minoria residir na reserva
deve ter uma justificativa objetiva e razoável, necessária para
a preservação da identidade da tribo. No caso concreto, o Comitê
considerou que não havia tais motivos, desde que nenhum gravame
resultaria para o grupo indígena o retorno de Sandra Lovelace ao
convívio comunitário. Assim, no confronto entre os direitos
individuais de Sandra Lovelace e os direitos coletivos da tribo,
expressos na decisão do Conselho Tribal, prevaleceu o respeito
aos direitos individuais, por não justificada a violação. Nesse
caso, o Comitê teve de examinar os critérios estabelecidos para
aceitação de um indivíduo como membro de um grupo minoritário.
E de sua exclusão. Assim, o direito individual de pertinência a
um grupo foi confrontado com o direito do grupo como tal,
particularmente o de estabelecer critérios de aceitação e de
exclusão de seus membros. No caso Lovelace, o Comitê não achou
que restringir a Sandra Lovelace o direito de acesso à sua
comunidade de origem, e restringir o direito à convivência
grupal fosse um meio necessário ao grupo para garantir sua
continuidade e sua existência.
Solução diversa
foi encontrada no caso Kitok contra a Suécia.
Kitok era membro da
minoria Sami, cuja atividade econômica tradicional consistia em
criar renas. Pressionado por questões econômicas, Kitok deixou a
comunidade, e viveu na cidade por vários anos. Posteriormente,
retornou, e desejou reiniciar a atividade de criação de renas,
usufruindo da área de pastagem da comunidade. O Conselho Tribal
recusou. Primeiramente porque Kitok já havia conseguido arrendar
área próxima. E especialmente pelo fato de que não havia área
suficiente para todos, portanto, os que tivessem abandonado teriam
que respeitar o direito dos que remanesceram, posto que esses
foram responsáveis pela manutenção do padrão cultural
tradicional do grupo. O Governo da Suécia deu razão à
comunidade, e negou direito de acesso de Kitok à terra comunitária.
Tendo que decidir a questão, o Comitê de Direitos Humanos
considerou que a decisão do grupo de cancelar a condição de
membro a Kitok, para fins de reconhecer sua titularidade na
exploração das terras, fundamentava-se em bases razoáveis.
Confrontando o
direito do indivíduo com o direito do grupo, fez prevalecer o
direito do grupo.
5. Conteúdo do
direitos das minorias
Não há um
conjunto de direitos aos quais os grupos minoritários sejam mais
fortemente vinculados. Entretanto, é comumente aceito que os
princípios de igualdade e não discriminação são requeridos
para informar o regime que governa os direitos das minorias. Isto
não quer dizer que o Artigo 27 do Pacto traz implícito o direito
à não discriminação. Mas significa que os membros de uma
minoria não devem ser colocados em posição inferiorizada pela só
pertinência ao grupo.22 E eles têm direito de gozar da igualdade
na lei e nos fatos. Igualdade na lei impede discriminação de
qualquer espécie, enquanto igualdade nos fatos pode envolver a
necessidade de um tratamento diferenciado de modo a obter um
resultado que estabelece um equilíbrio entre situações
diferentes.23 Tais princípios governam a fruição de todos os
direitos reconhecidos a cada um pelo Pacto dos Direitos Civis e
Políticos ou qualquer outro tratado, pacto, convenção ou ato
internacional, pela constituição ou outra norma doméstica.
Embora não exista
tal conjunto mínimo de direitos, é possível estabelecer que
alguns direitos básicos - direito à existência, direito à
identidade, direito a medidas positivas - são conferidos a
minorias. E isto requer alguma discussão.
6. Direito à existência
O direito à existência,
no seu conteúdo mínimo, é proporcionado pela Convenção para
Prevenção e Punição do Crime de Genocídio.24
É dirigido à proteção do direito coletivo à vida, proteção
da sobrevivência do grupo contra dizimação física.
Genocídio. Quem
usou por primeiro essa expressão foi o jurista Rafael Lemkin,
conceituando como
" O crime de
genocídio é um crime especial, consistente em destruir
intencionalmente grupos humanos, raciais, religiosos ou nacionais,
e, como o homicídio singular, pode ser cometido tanto em tempo de
paz como em tempo de guerra."25
A Organização das
Nações Unidas fez aprovar Convenção para Prevenção e Repressão
do Crime de Genocídio em 1948, a qual foi ratificada pelo Brasil,
e promulgada através do Decreto n° 30.822, de 6 de maio de 1952.
Nesse ato
internacional, são definidos como genocídio os atos cometidos
com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo
nacional, étnico, racial ou religioso, aí compreendido: assassínio
de membros do grupo; dano grave à integridade física ou mental
de membros do grupo; submissão intencional do grupo a condições
de existência que lhe ocasionem a destruição física total ou
parcial; medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do
grupo; e transferência forçada de menores do grupo para outro
grupo.
Nessa mesma Convenção
há previsão de punição para: o genocídio; o conluio para
cometer genocídio; a incitação pública e direta a cometer
genocídio; a tentativa de genocídio; e a cumplicidade no genocídio.
Importante acentuar
que a Convenção prevê sejam punidos pelo cometimento de genocídio
e dos demais atos ao mesmo equiparados tanto governantes e funcionários,
quanto particulares. Nos trabalhos preparatórios, Assembléia
Geral das Nações Unidas, em 1946, esclareceu as diferenças
entre genocídio e homicídio nos seguintes termos:
O genocídio é a
negação ao direito à existência de grupos humanos inteiros,
enquanto que o homicídio é a negação do direito à vida de
um indivíduo humano.
O genocídio
costuma ser chamado de delito de intenção, em razão de se
distanciar das condutas típicas do homicídio ou da lesão
corporal precisamente pela impessoalidade que reveste a vítima da
agressão no genocídio, que é atingida pela só condição de
fazer parte do grupo étnico, religioso, etc. Para a socióloga
Helen Fein, a intenção é revelada pela ação proposital, cujos
fins ou conseqüências são previsíveis.26
Embora seja sempre
presente a idéia de que o genocídio seja praticado por
governantes ou funcionários públicos, é pacífico hoje o
entendimento de que qualquer pessoa pode ser sujeito ativo do
delito.27
Já o sujeito
passivo
"...pode ser
qualquer pessoa que integre determinado grupo nacional, étnico,
racial ou religioso e que seja atingida como tal.
" Embora a
definição do delito se refira a "membros de um
grupo", pode configurar-se o crime ainda que um só seja vítima,
desde que atingido em caráter impessoal, como membro de um
grupo nacional, étnico, racial ou religioso.
" A
pluralidade de vítimas é irrelevante para a configuração do
delito, devendo ser levado em conta na medida da pena"
segundo ainda
observa Heleno Cláudio Fragoso, na obra já citada.
As opiniões dos
juristas brasileiros são acordes com os estudos mais avançados
de doutrinadores internacionais, que examinaram o fenômeno
genocida por vários ângulos.
O Professor Leo
Kuper ensina que genocídio é um crime contra uma coletividade,
tomando a forma de homicídio em massa, e conduzido com intenção
explícita.. Como um crime contra uma coletividade, ele põe de
lado a questão da responsabilidade individual; [genocídio] é a
negação da individualidade. Todos os membros do grupo [as vítimas]
são culpados unicamente em virtude de sua afiliação ao mesmo.
Caracteristicamente, os muito velhos e os muito jovens, os
indefesos, aqueles que não poderiam ser concebidos como
combatentes, estão entre as vítimas dos massacres. A intenção,
como vimos, é destruir um grupo enquanto tal.28
E a chave do
entendimento da conduta genocida está em analisar e examinar o
ambiente em que os grupos em conflito estão situados, e qual visão
têm um do outro, e como são vistos pela sociedade envolvente.
Esta, aliás, a sugestão da socióloga Helen Fein: o melhor
caminho para se estudar a ideologia [do genocídio] é examinar o
que os perpetradores e seus predecessores dizem, especialmente
antes do cometimento do genocídio.29
Frank Chalk e Kurt
Jonassohn, da Universidade de Yale, consideram que são condições
ordinariamente presentes em casos de ocorrências de genocídio
que as vítimas sejam não apenas desiguais, mas claramente
definidas como algo menos que completamente humanas - selvagens
[por exemplo]. .30
Essa opinião foi
mesmo assente por um dos maiores estudiosos de genocídio no Século
XX, o Professor Leo Kuper. Ele observa que é freqüente a adoção
da teoria do bode expiatório, cujos elementos são primeiro, um
grupo identificado e diferenciado dentro da sociedade. Usualmente,
talvez invariavelmente, estereótipos hostis são projetados sobre
as vítimas, e a propaganda vilificadora dirigida contra os
mesmos. Essas sempre tomam a forma de desumanização do grupo
visado. [Além disso] a vulnerabilidade parece ser um elemento
essencial: o grupo é uma presa fácil.31
Formulando algumas
considerações criminológicas em torno do genocídio, Javier
Saenz Pipaon y Mengs32 aponta algumas atitudes coletivas, que
costumam ser assumidas por grupos genocidas: um sentimento de
frustração real e efetivo, o medo ante a idéia de fracasso, um
grande ressentimento (que se vê instrumentalizado em expressa
hostilidade, com repressão de pretensões internas, mesmo um
orgulho não satisfeito com posição de inferioridade, e
especialmente explosividade psíquica tanto maior quanto maiores
forem as diferenças entre o valor publicamente atribuído aos
grupos de maneira abstrata ou ambígua e as relações efetivas de
poder).
Conclui afirmando
que atitudes coletivas de grupos genocidas costumam assumir uma
agressividade como válvula de segurança social, uma consciência
pseudo-justiceira, e uma inafastável idéia de retribuição e
vingança.
Para esse Professor
da Universidade de Madrid33
"Um dano
provocado e sofrido implica uma reação suficiente. A idéia de
retribuição supõe, dentro deste contexto, que o mencionado
prejuízo tenha sido infligido de maneira injusta e é princípio
fundamental que informa invariavelmente o comportamento do homem
primitivo em relação tanto com os membros de seu grupo como
com respeito aos das demais comunidades.
"Assim, se
tomamos o espírito justiceiro como elemento desencadeante do
fenômeno genocida, não parece haver nenhum inconveniente em
situar este no seio da teoria da retribuição .
" Sem
embargo, parece mais exato contemplá-lo no contexto de um
processo de vingança, que é um problema distinto.
"
Psicologicamente, a vingança, como assinala Steinmetz, consiste
no fato de que a sensação desagradável de ser lesado, ou de
crer haver sido lesado, acrescentamos nós, seja neutralizada
pela agradável [sensação] de lesar, ou de crer que se haja
lesado".
O genocídio,
previsto em convenção internacional, é conduta que protege
coletivamente etnias em seu direito à existência, o que implica
tutelar não apenas a vida, mas igualmente a subsistência, e sua
reprodução física e cultural.
Mas isto não é
suficiente. Como Shaw observa, o objetivo de uma minoria não é
apenas não ser exterminada, mas conseguir a manutenção de sua
identidade cultural, e do desenvolvimento continuado do seu modo
de viver.34 Isto nos conduz ao segundo direito básico, o
direito à identidade.
7. Direito à
identidade
É largamente
aceito que um objetivo de qualquer minoria é preservar suas
características ou identidade,35
expressando e desenvolvendo tal identidade individualmente ou em
associação com os demais membros da comunidade.36 Essa vontade
comum de preservar a identidade grupal pode ser expressada
simplesmente pela contínua existência do grupo como tal.37 Como
o Comitê de Direitos Humanos sintetizou, a proteção aos
direitos consagrados no Artigo 27 do Pacto dos Direitos Civis e
Políticos é dirigida para assegurar a sobrevivência e o contínuo
desenvolvimento da identidade cultural, religiosa e social das
minorias concernentes.38 A questão agora é saber esses direitos
podem ser gozados sem que haja uma ação do Estado, e se o Estado
é requerido a agir.
8. Medidas
Positivas. Ação Afirmativa.
Capotorti
claramente sustenta que o Artigo 27 do Pacto requer dos
Estados a adoção de medidas, como modo de tornar esses direitos
efetivos.39 Thorberry compartilha dessa opinião, e dá como certo
que os direitos culturais, lingüísticos e religiosos seriam
desprovidos de conteúdo se não recebessem apoio e suporte do
Estado em uma maneira compatível com o nível de apoio e suporte
conferido à maioria da população.40 O Comitê de Direitos
Humanos adotou esse ponto de vista, e declarou que medidas
positivas podem se fazer necessárias para proteger a identidade
de uma minoria, constituindo-se em diferenciação legítima,
quando dirigidas a corrigir condições que, de outro modo, iriam
embaraçar ou impedir o completo gozo de tais direitos.41 O Artigo
27 não impõe um dever aos Estados de adotar uma ação
afirmativa, no sentido em que é normalmente utilizada nos Estados
Unidos, uma política pública que visa reparar um passado de
discriminação. O que é requerido pelo Artigo 27 é unicamente
uma ação que evite discriminação direta ou indireta.42
9. Gozo de outros
direitos humanos.
O direito das
minorias não está confinado aos mencionados anteriormente. As
minorias têm direito de gozar todos os demais direitos humanos,
como quaisquer outras pessoas. Como esses últimos serão
implementados é que pode variar, precisamente para atender às
exigências de garantir a igualdade nos fatos.
Os direitos sociais
e culturais das minorias também são informados pelas provisões
do Artigo 27. O direito social a uma moradia adequada, por
exemplo, é estabelecido pelo Artigo 11 do Pacto dos Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais, em virtude do qual os Estados parte
reconhecem o direito de todos a um padrão de vida adequado, o que
inclui moradia adequada. A fruição desse direito depende da
capacidade dos governos de conduzir políticas públicas de oferta
de habitação adequada. O Comitê de Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais, das Nações Unidas, formulou um comentário
geral sobre o direito à habitação, avançando algumas
diretivas. O Comitê acentuou que uma moradia adequada deve ser
acessível àqueles intitulados a ela, e deve ser culturalmente
adequada - o padrão de construção, a concepção da edificação,
e as políticas públicas que lhe dão suporte devem
apropriadamente habilitar a expressão de uma identidade cultural
e a diversidade de habitação.43 O respeito ao direito à moradia
pode também requerer do Estado que refreie planos de despejos em
massa ou coletivos. E que conduza políticas habitacionais sem
discriminação de qualquer espécie.
10. Declaração
dos Direitos das Pessoas pertencentes às minorias étnicas,
religiosas e lingüisticas.
Embora não tendo
força vinculante, nem a imperatividade normativa de um tratado, a
Assembléia Geral das Nações Unidas aprovou, através de sua
Resolução 47/135, a 18 de Dezembro de 1992, uma Declaração dos
Direitos das Pessoas Pertencentes às Minorias Étnicas,
Religiosas e Lingüisticas. Os direitos elencados na Declaração,
contudo, são considerados como explicitação do artigo 27, do
Pacto dos Direitos Civis e Políticos.
Segundo a Declaração,
os Estados protegerão a existência e a identidade de minorias
nacionais, étnicas, culturais, religiosas ou lingüísticas, no
âmbito do seu território, encorajando a promoção de suas
identidades, adotando as medidas apropriadas (legislativas ou
outras) para o atingir aqueles fins (artigo 1o).
As pessoas
pertencentes àquelas minorias têm o direito de usufruir de sua
própria cultura, professar e praticar sua própria religião, e
usar sua própria língua, em particular ou em público,
livremente e sem interferência ou qualquer forma de discriminação.
Têm o direito de participação efetiva na vida cultural,
religiosa, social, econômica e pública. Têm o direito de
estabelecer e manter suas próprias associações, e o direito de
estabelecer e manter, contatos com outros membros do seu grupo, ou
de outros grupos, quer no âmbito territorial do Estado em que
viveram, quer contatos trans-fronteiras (artigo 2o).
O exercício desses
direitos pode se dar individualmente ou em grupo, sendo que ninguém
pode ser prejudicado pelo exercício ou não exercício desses
direitos (artigo 3o).
Os Estados devem
adotar as medidas requeridas para assegurar aos membros de
minorias o pleno e efetivo exercício de todos os seus direitos
humanos e de suas liberdades fundamentais, sem qualquer discriminação,
e com plena igualdade perante a lei. Ainda, os Estados devem
adotar medidas para criar condições favoráveis para habilitar
as pessoas pertencentes às minorias para expressar suas características
e desenvolver sua cultura, língua, religião, tradição e
costumes, exceto quando uma prática específica violar a lei do
país, ou for contrária a padrões internacionais. Medidas também
devem ser adotadas pelos Estados, de modo a possibilitar
oportunidades adequadas de as minorias aprenderem sua língua
materna, ou terem instrução em sua língua materna. No campo da
educação, as medidas requeridas são de ordem a encorajar o
conhecimento da história, das tradições, da língua e da
cultura das minorias existentes no território do Estado (artigo
4o).
As políticas públicas,
bem como os programas de governo, devem ser planejados e
implementados levando em conta os interesses legítimos das
pessoas pertencentes às minorias (artigo 5o).
Os Estados devem
cooperar em questões relativas às pessoas pertencentes às
minorias, incluindo troca de informações e experiências, de
modo a promover compreensão e confiança recíprocas (artigo 6o).
É dever dos
Estados promover o respeito pelos direitos proclamados na Declaração
(artigo 7o).
As medidas tomadas
pelos Estados para assegurar o pleno exercício dos direitos
indicados na Declaração não são de ser consideradas contrárias
ao princípio da igualdade contido na Declaração Universal de
Direitos Humanos. Mas nada na Declaração pode ser interpretado
ou construído em sentido contrário aos propósitos e princípios
das Nações Unidas, o que inclui igualdade de soberania,
integridade territorial, e independência política (artigo 8o).
A Declaração,
como se vê, incorporou o entendimento doutrinário consolidado ao
longo dos anos, fazendo com que suas disposições fossem
explicitações da afirmação genérica, constante do
artigo 27 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos.
PARTE B. O Direito
das Minorias na Constituição Brasileira.
11. Princípios
constitucionais.
A Constituição de
1988 instituiu um Estado Democrático de Direito, destinado a
assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a
liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a
igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade
justa, fraterna, pluralista e sem preconceitos.44 Tal Estado
Democrático de Direito é ainda fundamentado na cidadania, na
dignidade da pessoa humana, e no pluralismo político,45 tendo
como objetivos fundamentais a construção de uma sociedade livre,
justa e solidária, e a promoção de todos, sem preconceitos de
origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação.46 Tudo isto sendo reforçado pelos princípios
constitucionais da prevalência dos direitos humanos e repúdio ao
racismo,47 os quais são formulados no contexto da carta de
direitos constitucionais, sob o título Direitos e Garantias
Fundamentais.
O conceito de
democracia pluralista envolve toda a substância da Constituição,
e seus princípios informam como suas provisões devem ser
interpretadas. Devido ao princípio da unidade da Constituição,
o intérprete tem de considerar as normas constitucionais em seu
conjunto, globalmente, conciliando as tensões existentes.48
Assim, é à luz desses preceitos constitucionais que os artigos
215 e 216 da Constituição, que tratam de cultura e direitos
culturais, merecem ser abordados. Os artigos em referência trazem
a seguinte redação:
Art. 215. O
Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos
culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e
incentivará a valorização e a difusão das manifestações
culturais.
§ 1.º O Estado
protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas
e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do
processo civilizatório nacional.
§ 2.º A lei
disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta
significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais.
Art. 216.
Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza
material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto,
portadores de referência à identidade, à ação, à memória
dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos
quais se incluem:
II - os modos de
criar, fazer e viver;
III - as criações
científicas, artísticas e tecnológicas;
IV - as obras,
objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados
às manifestações artístico-culturais;
V - os conjuntos
urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,
arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
§ 1.º O poder público,
com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o
patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários,
registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de
outras formas de acautelamento e preservação.
§ 2.º Cabem à
administração pública, na forma da lei, a gestão da
documentação governamental e as providências para franquear
sua consulta a quantos dela necessitem.
§ 4.º Os danos
e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da
lei.
§ 5.º Ficam
tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências
históricas dos antigos quilombos.
Esse conjunto de
direitos integra o que é comumente designado pela expressão
direitos culturais. Eles não estão expressamente mencionados na
Constituição ao lado dos direitos sociais, no Capítulo dos
Direitos e Garantias Fundamentais. Mas estão no Título VIII - Da
Ordem Social, no Capítulo III, ao lado da Educação. Os direitos
culturais têm a mesma natureza e significância dos direitos
sociais, merecendo proteção e aplicação de um modo consistente
com os outros direitos sociais.49 Eles são expressão de uma
sociedade plural, em um Estado plural. Diferentemente das
constituições anteriores, sob o modelo ditado pela Constituição
de 1988 o Estado não consagra nenhuma cultura como sendo
superior, a cujos padrões e características todos os demais
grupos têm de se conformar, e seus membros têm de se assimilar.
O artigo 216 deve ser analisado em conjunto com o artigo 216, de
modo a compreender o quadro geral em que estão inseridos a
cultura e os direitos culturais.
Em um primeiro
momento, o artigo 215 pode induzir a erro o intérprete, com um
entendimento de que uma cultura nacional (distinta das culturas de
grupos minoritários particulares) seria a única a cujas fontes
todos teriam acesso. A expressão cultura nacional deve ser
entendida na mesma linha de pensamento em que a expressão patrimônio
cultural brasileiro é mencionado, ou seja, a contribuição
cultural e interpenetrada de todos os povos e grupos participantes
do processo civilizatório brasileiro. O patrimônio cultural
brasileiro é construído a partir da cultura da sociedade
dominante, majoritária, e das diferentes contribuições
recebidas de todas as minorias, dos povos indígenas e das
minorias regionais. Todos esses diferentes sistemas de valores, idéias
e comportamentos somam-se para a formação dessa herança
cultural comum. Não há taxinomia cultural, de sorte que nenhuma
cultura prepondera sobre as demais. Cada cultura é e deve ser
respeitada como tal.
O artigo 215
garante a todos acesso às fontes da cultura nacional. Para
Cretella, tais fontes podem ser consideradas como lugares,
documentos ou monumentos, a partir das quais se pode ter acesso a
informações relacionadas com a história de um povo. Assim,
bibliotecas, museus, livros, jornais, mapas, documentos em geral
estariam incluídos em tal conceito de fontes culturais.50 Embora
não seja acurado restringir o uso do conceito de fontes de
cultura a lugares, prédios, e alguns outros meios materiais de
expressão de uma atividade cultural, a proibição de uso de uma
língua minoritária e a destruição de museus, bibliotecas,
escolas, e monumentos históricos foi referido, à época da
elaboração da Convenção para prevenção ao Genocídio, como
sendo Genocídio Cultural.51 Políticas assimilacionistas, que não
fizessem uso de violência, e não fossem conduzidas no sentido de
destruir tais fontes de cultura não era proibidas pelo direito
internacional.
Pela primeira vez
uma Constituição no Brasil reconheceu a contribuição cultural
dos diferentes segmentos étnicos, e os considerou em pé de
igualdade com a sociedade envolvente. E não foi apenas uma referência
incidental, mas essa contribuição cultural é o foco principal
da ação e da memória dos grupos, e encontra-se incluída na
proteção do capítulo sobre cultural. O artigo 215, $ 1o., por
exemplo, assegura proteção do Estado às manifestações das
culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e de outros
grupos participantes do processo civilizatório. E o parágrafo
seguinte determina à lei dispor sobre a fixação de datas
comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos
étnicos nacionais. Não sejam esses aspectos vistos como menores,
dada a relevância que assumem para as minorias envolvidas.
O artigo 216
determina a proteção e promoção da identidade, ação e memória
do grupo. A identidade do grupo pode ser compreendida como o
sentido de identificação tido em comum pelos membros de um dado
grupo,52 o que significa definir, promover e manter essas características
distintivas. Eles têm o direito de serem diferentes, e de serem
considerados diferentes. Este parece ser o propósito de ter um
senso de identidade comum.53 Mas, como visto anteriormente, o
desejo de manter características específicas está implícito
pela só existência de um grupo enquanto tal.54 Essa identidade
cultural não significa necessariamente algo fixo e estacionário.
Ao contrário, pode ser submetida a continuidade e mudanças.
Assim, o direito de definir a identidade de um grupo deve ser
visto à luz do processo de identificação, como um fenômeno dinâmico.
Por isso a Constituição fala, com razão, em unir identidade à
memória e à ação do grupo.
A inclusão da ação
de um grupo, como parte do patrimônio cultural, revela a
compreensão de que a formação da sociedade brasileira foi
submetida a um processo dialético. Os modos dinâmicos de
comportamento político do grupo, suas estratégias e processos
decisórios, dentro do grande cenário das relações interétnicas
e pluralistas, tanto com outros grupos, quanto com a sociedade
dominante, são essenciais para a compreensão e entendimento da
realidade atual. Analisar atitudes e comportamentos históricos
das interações grupais é um convite para revisitar a história,
contextualizando pensamentos e ações. Isto é particularmente
importante, quando a raiz de desigualdades históricas tem de ser
removida, para que se construa uma sociedade fraterna e sem
preconceitos.
A análise da ação
política de um grupo ou uma minoria e sua interação com a
sociedade envolvente ou dominante permite compreender porque o
artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias,
de 5 de Outubro de 1998, reconheceu as comunidades remanescentes
de quilombos como merecedoras do direito a serem titularizadas nas
terras de sua ocupação tradicional. Também é a chave para
compreender a luta dos povos indígenas para sobreviverem contra
ataques genocidas, e a importância do reconhecimento do seu título
nativo - indigenato - como fonte do seu direito originário às
terras de ocupação tradicional.
A memória do grupo
é um elemento muito importante. A habilidade de reter e recuperar
informações e fatos lembrados e trazidos do passado é essencial
para afirmar e definir as pretensões e reivindicações do grupo
no presente. O grupo pode ter uma tradição formal e letrada ou
uma tradição oral, informal e iletrada. Embora possa ser visto
como um fenômeno estático, efetivamente o processo de interpretação
e reinterpretação pelo grupo torna a memória passível de mudanças.
Ou seja, é um processo com uma contribuição própria para a
definição da forma e do perfil da identidade do grupo.
Os incisos I e II
do artigo 216 completam o sentido do seu caput, e incluem bens
materiais e imateriais que constituem o patrimônio cultural
brasileiro. De modo expresso são indicados como tais as formas de
expressão; os modos de criar, fazer e viver; as criações científicas,
artísticas e tecnológicas; as obras, objetos, documentos,
edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;
os conjuntos urbanos e os sítios de valor histórico, paisagístico,
artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico,
dos vários grupos que formam o patrimônio cultural brasileiro.
Os constituintes
deliberadamente escolheram palavras de sentido suficientemente
abrangente para significar o processo de comunicação entre os
grupos, e dentro dos vários grupos. Formas de expressão faz de
imediato a ligação entre comunicação e criatividade. Em sua
dimensão cultural inclui uma variedade de campos que transitam
desde as artes, danças, rituais, mitos, e simbolismos.55 Mas também
inclui todas as formas de comunicação essenciais a toda vida
social e todos sistemas culturais. Tais formas podem ser simbólicas,
mas mais freqüentemente assumem formas lingüísticas, mesmo que
a língua seja uma não escrita. Mesmo que os grupos sejam ágrafos.
No contexto brasileiro, há muitas minorias formadas por povos ágrafos.56
Mas isto não prejudica seus direitos lingüísticos, em havendo língua
própria.
Uma questão
relevante se impõe, agora. Os artigos 215 e 216 da Constituição
reconhecem direitos lingüísticos, ou um direito ao uso da própria
língua? Se o fazem, em que extensão?
A língua cumpre um
papel muito importante na definição da identidade cultural de um
grupo. Muitas vezes a língua é o elemento básico, definidor das
fronteiras dos grupos minoritários. E mesmo dentro de grupos
minoritários, a língua pode ser de importância relevantíssima,
desde que pode ser vista como um meio de comunicação, e um meio
de evitar contato e comunicação. Tomemos o exemplo dos povos indígenas
no Brasil. Há mais de cem diferentes grupos étnicos, com mais de
cem diferentes línguas e dialetos. Mesmo quando se trata
genericamente por índios os primeiros habitantes dessa terra
Brasil, não há precisão conceptual nessa expressão. E às
vezes membro destacando-se um grupo indígena, internamente ele
apresenta subcategorizações, em razão de especificidades.
Os Yanomami, por exemplo. Embora pareçam um grupo lingüistico
homogêneo, subdividem-se em 4 subgrupos - Yanomam, Yanomamï,
Yanam e Sanumá -, com variações sócio-culturais relacionadas,
em grande medida, com essas variações lingüísticas.57
Por outro lado, a língua,
particularmente de um grupo minoritário, há de ser examinada não
apenas de modo atomicista, descontextualizado, como mero produto
a-histórico. Ao lado da Lingüistica, deve haver uma Análise do
Discurso, trabalhando, ao lado do material lingüístico
propriamente dito, os demais aspectos históricos, sociais e ideológicos.58
Certamente que a língua,
como forma de expressão, está incluída entre os bens imateriais
pertencentes a grupos sociais majoritários ou minoritários, que
compõem o patrimônio cultural brasileiro. Disso decorre que,
sendo reconhecida como um direito desses grupos, há de ter um
conteúdo mínimo, merecedor de respeito. Entretanto, não há
expresso, como integrando esse conteúdo, o direito a usar essa língua
em público, ou perante a administração e as autoridades públicas.
Nem mesmo perante os órgãos do Poder Judiciário.
Mas não há
nenhuma vedação a seu uso privado ou em público. Além disso, a
Constituição garante aos índios (artigo 210, § 2.º) o ensino
fundamental regular ser ministrado em língua portuguesa,
assegurada às comunidades indígenas também a utilização de
suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem. Pelo
princípio da isonomia, as demais minorias étnicas, lingüísticas
e religiosas têm o mesmo direito, já que não pode haver
discriminação entre as minorias em si.
12. Normas
infraconstitucionais de proteção às minorias.
Afora os direitos e
garantias constitucionais, sobrelevam duas normas
infraconstitucionais,
pelo particular interesse na proteção aos direitos das minorias.
São elas a Lei 2.889/56 (de prevenção ao genocídio) e a Lei
7716/89 (que criminaliza condutas decorrentes de preconceito e
discriminação).
12.1. Lei 7.716/89
(Crimes resultantes de preconceito de raça ou cor)
O Brasil tem um
gosto curioso por transformar em crimes as condutas que rejeita,
ou que entende não devam se constituir no padrão de conduta.
Nesse gosto, por transformar tudo em crime, termina banalizando os
crimes, e evitando a imposição dos castigos.
Com a questão
referente à discriminação não foi diferente. Em 1951foi
festivamente saudada a Lei Afonso Arinos, que considerava crime a
recusa de atender clientes, freguês ou estudante em
estabelecimento educacional, comercial ou hoteleiro, em razão de
preconceito de raça ou cor. Nova lei foi promulgada em 1989 (Lei
7716, de 5 de Janeiro de 1989), encontrando-se em vigor até hoje,
com pequenas alterações introduzidas pela Lei 8.081, de 21 de
Setembro de 1990. A lei estabelece punições para a prática de
crimes decorrentes de preconceitos de raça ou cor. E são punidas
as condutas de impedir acesso a cargo público; negar emprego em
empresa privada; recusar aluno em estabelecimento público ou
privado; recusar hospedagem em hotel, pensão, ou assemelhado;
etc., quando decorrente de preconceito de raça ou cor.
Não se tem
conhecimento de casos submetidos a tribunais brasileiros, versando
sobre crime decorrente de preconceito de raça ou de cor que
tenham sido condenados os agressores. Casos catalogados do
Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul revelam a inconsistência
e a ineficácia da atual lei, que pune o preconceito e a
discriminação. Julgando o processo 338049/93 (RJTMJS 90/156),
aquele Tribunal decidiu: O fato de o agente, no auge e no calor de
uma discussão, em repulsa a uma atitude ofensiva, quando quase
chegam a entrar em luta corporal, proveniente de desentendimento
por falta de um produto, chamar seu cliente, a quem sempre atendeu
bem, de negro, neguinho, ou preto, e pedir-lhe para acabar com a
confusão, que se retirasse da loja, onde havia vários fregueses,
o que também foi dito ao companheiro branco, participante do
desentendimento, não configura o delito previsto no art. 5.
da lei 7716/89. É verdade que o Tribunal de Alçada
Criminal de São Paulo condenou de discriminação. Mas o crime de
que foi acusado foi desacato, e não preconceito de raça ou cor.
O acórdão dizia: incorre nas penas do art. 331 [desacato] do
CP, o agente que discrimina funcionário público pela cor, raça
ou credo, ofendendo a dignidade ou decoro da função, sendo
irrelevante eventual pedido de desculpas. (RJDTACRIM Vol. 17/69
Janeiro/Março 1993).
Outra dificuldade
dessa lei contra a discriminação é que ela esquece outras
formas mais presentes e freqüentes de discriminar: por ser
mulher; por estar grávida; em razão da idade; em razão da
orientação sexual (por ser homossexual); em razão da origem
(preconceito contra nordestinos no sul); em razão da religião
(judeus, muçulmanos, umbandistas, etc.); em razão da riqueza; em
razão do grau de instrução. Até em razão da beleza se
discrimina.
A Constituição
veda expressamente qualquer forma de preconceito ou discriminação,
em razão de origem, raça, sexo, cor, idade, ou quaisquer outras
formas de discriminação (art. 3o., inc. IV).
Mas, afinal, o que
é discriminação? A lei não define. Mas tal definição pode
ser encontrada em convenções internacionais, subscritas e
ratificadas pelo Brasil (e, portanto, com força de lei entre nós).
A primeira é a Convenção Internacional sobre a Eliminação de
todas as formas de Discriminação Racial, de 1965, segundo a qual
a expressão discriminação significará qualquer distinção,
exclusão, restrição ou preferência, baseadas em raça, cor,
descendência ou origem nacional ou étnica que tem por objetivo
ou efeito anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício
em um mesmo plano (em igualdade de condição) de direitos humanos
e liberdades fundamentais no domínio político, econômico,
social, cultural, ou em qualquer outro domínio da vida pública.
A Convenção sobre a eliminação da discriminação contra a
mulher acrescenta a expressão com base na igualdade do homem e da
mulher.
Mas nem toda
diferenciação significa discriminação. Relevante é considerar
que fatores objetivamente postos procuram justificar o critério
adotado para a diferenciação. A justificação tem que ser
objetiva e razoável, e os meios empregados proporcionais aos
objetivos legítimos visados. Se os objetivos não forem legítimos;
se a diferenciação não for razoável, nem os meios empregados
proporcionais, então há discriminação.
O Superior Tribunal
de Justiça (STJ) acolheu esse raciocínio, embora a decisão, por
enormemente vaga, mereça ser lida com reservas. Julgando o
Recurso Ordinário em Mandado de Segurança (ROMS) 5151/94-RS
(Relator o Ministro Vicente Cernicchiaro), proclamou: Não se pode
distinguir pessoas por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil.
Todavia, se a função pública, por exemplo, for recomendada, por
particularidade, ser exercida só por pessoas do sexo masculino,
nenhuma censura. O raciocínio é válido também para as
mulheres. Ocorre o mesmo com a idade.
O mesmo STJ
repudiou, por discriminatória, a proibição de participação de
mulheres em concurso público para a função de médica, mesmo
que da Polícia Militar (RESP 6519/90-RJ). Mas achou justificável
proibir acesso de mulheres a postos da Polícia Militar, quando
existentes separados quadros masculino e feminino (o Tribunal
sequer examinou se o número de vagas no quadro masculino era
correspondente ao número de vagas no quadro feminino) (ROMS
1160/91-RJ).
O Tribunal Superior
do Trabalho tem proferido importantes decisões, combatendo a
discriminação. No Recurso Ordinário em Dissídio Coletivo
0105858/94 invalidou cláusula de Sentença Normativa que excluia
os empregados menores do direito ao piso salarial.
A igualdade na lei
proíbe discriminação de qualquer espécie, enquanto a igualdade
de fato pode envolver a necessidade de tratamento diferenciado de
modo a obter o resultado que estabelece o equilíbrio entre situações
distintas. Isso também é chamado de ação afirmativa, ou
discriminação positiva. Entre nós já é aplicável através da
legislação trabalhista, que favorece as mulheres.
O Tribunal Superior
do Trabalho, julgando o Recurso de Revista 48478/92-PR (DJ
19.8.94, p. 21009), entendeu que o artigo 383 da CLT se dirige à
proteção da mulher. A natureza não fez homens e mulheres
iguais: a desigualdade é visível e não poderia ser modificada
por simples vontade do legislador.(...) Sendo claro que a
constituição física, emocional e psicológica das pessoas do
sexo feminino difere daquela inerente as do sexo masculino, é um
imperativo de justiça que o tratamento dado em relação às
mulheres, pela legislação trabalhista, seja, em alguns aspectos,
diferente do que é dado aos homens.
Ainda há muito o
que fazer para garantir a igualdade na lei e nos fatos.
12.2. Genocídio.
Lei 2.889/56.
Ao lado da previsão
na Convenção da ONU, o Brasil editou norma legal interna, específica,
criminalizando tal conduta. É a Lei n° 2.889, de 1° de Outubro
de 1956:
Art. 1º -
Quem, com intenção de destruir, no todo ou em parte,
grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal:
c) submeter
intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de
ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial;
com as penas do
art. 121, § 2º, do Código Penal, no caso da letra a;
com as penas do
art. 129, § 2º, no caso da letra b;
com as penas do
art. 270, no caso da letra c;
com as penas do
art. 125, no caso da letra d;
com as penas do
art. 148, no caso da letra e."
Observa o Prof.
Heleno Cláudio Fragoso59 que "todas as ações que
configuram o crime de genocídio não se dirigem, em primeira
linha, contra a vida do indivíduo, mas sim contra grupos de
pessoas, na sua totalidade". É crime contra a etnia. Dizendo
de outro modo o Prof. Byron Seabra Guimarães, "a tutela se
faz em protegendo a vida em comum dos grupos de pessoas de cada
comunidade do povo"60.
12.3.
Direitos dos índios.
Além dos artigos
na Constituição, várias normas disciplinam os direitos dos índios.
Dessas, as mais relevantes são a Lei 5371/67 (Institui a
FUNAI), a Lei 6.001/73 (Estatuto do Índio) e o Decreto 1775/96
(disciplina a demarcação de terras indígenas).
A perspectiva de
trabalho promovido pela FUNAI e pelas comunidades indígenas do
Leste e Nordeste do Brasil pretende examinar o sentido do
indigenismo, e sua relação com a lei dos não-índios. Dentro
dessa perspectiva, o indigenismo pode ser entendido como o
movimento social e político mediante o qual os índios e suas
comunidades afirmam suas identidades étnicas e culturais, e lutam
para verem garantidos e assegurados o reconhecimento às suas
terras de ocupação tradicional, e o respeito aos demais direitos
que, como grupo humano distinto da maioria da população, merecem
sejam respeitados.
A lei dos não-índios,
ao longo dos anos, e desde a chegada dos primeiros colonizadores,
procura tornar legítima, pela força da espada do poder, a expulsão
de suas terras, e a exploração de suas riquezas. E trata o índio
como cidadão de segunda classe, partindo mesmo do pressuposto de
que o índio seria um incapaz juridicamente, sendo quase igual a
criancinhas, e igual aos adolescentes.
Quais são as
maiores reivindicações do movimento indigenista atual? O
primeiro e o maior deles é o reconhecimento às terras
tradicionais, com sua necessária demarcação. Mas também lutam
para terem uma educação que resgate sua história e contribua
para reforçar sua identidade indígena. E pretendem ver garantida
sua saúde, através de políticas públicas realizadas sem
discriminação, o que implica e impõe a adoção de estratégias
especiais, para levar em consideração as práticas tradicionais
de medicina popular, e uso de plantas e raízes medicinais, sem
esquecer o oferecimento de médicos e demais profissionais da saúde,
para atendimento às comunidades. É o que examinaremos em mais
detalhe.
A TERRA E O ÍNDIO.
O índio identifica
a terra, e a terra dá identidade ao índio
. Identificado um grupo humano como sendo uma comunidade indígena,
dessa identificação resulta a legitimidade para definição dos
limites espaciais e territoriais de sua ocupação, de acordo com
seus usos, costumes e tradições.
A terra, tem um
papel relevante e extraordinário no surgimento e consolidação
de grupos humanos. É base física que se converte em território.
Para os índios, a
terra é seu habitat natural, seu território61, espaço de
reprodução biológica e cultural, de definição e diferenciação
étnica. É condição inafastável para ser índio, viver como índio,
viver entre os índios.
O próprio conceito
de índio invoca outros conceitos recorrentes. Índio é um membro
de uma comunidade indígena. E "comunidade indígena, nos
termos da Constituição, é um "grupo local"
pertencente a um povo que "se considera segmento distinto da
sociedade nacional, em virtude da consciência de sua continuidade
histórica com sociedades" pré-coloniais." 62
O constituinte de
1988 reconheceu aos índios o direito às terras como um direito
originário. Resultam da própria natureza do homem, e a lei
positiva (a lei dos não-índios) apenas reconhece. Diz o que já
existia de antes. 63
O direito originário
dos índios às terras de ocupação tradicional configura o
instituto jurídico luso-brasileiro do indigenato. É referência
obrigatória João Mendes Júnior64, que examinou com profundidade
a matéria: o indigenato é um título congênito (esse direito
nasce com o próprio índio, que vive em comunidade, em sua terra
tradicional), ao passo que a ocupação é um título adquirido.
O Juiz Fernando da
Costa Tourinho Neto 65, do Tribunal Regional Federal da 1a. Região,
examinando "Os Direitos Originários dos Índios sobre as
terras que ocupam e suas conseqüências jurídicas" conclui:
"a) Aos índios,
desde o Alvará Régio de 1o. de Abril de 1680, foi reconhecida
a condição de primários e naturais senhores das terras do
Brasil. O fundamento do direito deles às terras está baseado
no indigenato, que não é direito adquirido, e sim congênito".
Nascendo junto com
o índio que nasce, verifica-se como seu direito à terra está
ligado ao seu direito à vida, podendo ser dito, com Pontes de
Miranda 66, ser direito fundamental absoluto, daqueles que
"Não
existem conforme os cria ou regula a lei; existem a despeito das
leis que os pretendam modificar ou conceituar. Não resultam das
leis; precedem-nas; não têm o conteúdo que elas lhes dão,
recebem-no do direito das gentes."
Apesar do
reconhecimento de que o direito dos índios às suas terras vem do
indigenato e não de nossas leis, é comum os juristas, e os próprios
juízes afirmarem que esse indigenato só foi reconhecido a partir
da Constituição de 1934. Ou seja, eles dizem que, se alguma
ocupação ocorreu antes de 1934, os índios perderam o direito às
suas terras.
É um erro grave. O
que a Constituição de 1934 fez foi simplesmente aceitar e
reconhecer o direito dos índios às terras. E isto veio repetido
nas Constituições de 1946, 1967 (e Emenda Constitucional 01/69)
e 1988. Mas o direito dos índios decorre de suas condições de
índios, do seu título nativo, do seu indigenato.
Demarcação,
desintrusão, indenização e proteção contra invasão.
A primeira conseqüência
do reconhecimento do direito às terras é o dever que tem o
Governo Federal (a União Federal) de demarcar. A demarcação não
cria terra nova, apenas diz os limites das terras pertencentes àquela
comunidade indígena.
Como são dos índios
as terras de sua ocupação tradicional, é preciso que antropólogos,
historiadores e outros estudiosos (lingüistas, e geógrafos, por
exemplo), realizem pesquisas que esclarecem onde vinham habitando
os índios, e o modo de utilização dos recursos naturais (o que
faziam para sobreviver - se mediante caça, pesca, apanha,
agricultura, etc.). É também relevante saber se circulavam pelos
territórios, deixando descansar algumas roças, em sistema de rodízio,
para não enfraquecer o solo.
Assim, a demarcação
nada mais é do que colocar no chão os marcos que definem o
limite da presença dos índios em um determinado lugar.
Desintrusão.
Pode ocorrer que,
ao longo dos anos, venham ocorrendo algumas ocupações por não-índios
em suas terras. Constatadas tais presenças, os índios têm o
direito de vê-las desocupadas, e devolvidas para seu uso
exclusivo. A União Federal, a FUNAI, o Ministério Público
Federal têm em conjunto o dever de fazer isso. Os próprios índios
têm legitimidade (direito de reclamar perante um Juiz
diretamente, sem a interferência da FUNAI).
A desintrusão é o
processo de retirada ou remoção desses ocupantes ou invasores.
Indenização.
Tem sido comum a
FUNAI e o Ministro da Justiça dizerem que algumas terras indígenas,
ou parte delas, estão ocupadas por não índios, com construção
de casas, e criação de pequenos núcleos de povoamento. E,
segundo alegam, em razão desse fato consolidado não é possível
terem suas terras de volta.
Essa teoria do fato
consolidado é argumento de ordem prática, que fere o princípio
constitucional. Deve ser visto com muita reserva. Ao lado disso,
se houve o reconhecimento de que a terra era indígena, a presença
de não-índios deve significar o direito da comunidade a receber
do Estado brasileiro uma indenização pelas terras que lhe foram
tomadas, e que não serão devolvidas. Sei que esta é a situação,
por exemplo, entre os Potiguara, na Paraíba, e Macuxi, em
Roraima. Outros exemplos poderiam ser mencionados.
Proteção contra
novas ocupações.
Não basta demarcar
uma terra indígena, para que ela esteja protegida de modo
definitivo. A cada dia novos invasores podem tentar ocupá-la.
Quando a terra está demarcada, é preciso que se diga que na
maioria das vezes o próprio índio é responsável pelo ingresso
de não-índios em suas terras. Inventam contratos ilegais, como
arrendamentos. Sei que alegam motivos de ordem econômica e social
para isso. É a falta de trabalho, emprego e renda. É a falta de
condições de produzir na sua própria terra. É a falta de
recursos financeiros e materiais para fazer a terra
produtiva.
Parte da solução
para isto está na vigilância permanente, e na comunicação o
mais cedo possível às autoridades responsáveis - União
Federal, FUNAI e Ministério Público -, para que possam agir. Mas
a solução definitiva virá quando o próprio índio conseguir
sua auto-sustentação econômica, através de mecanismos de
aumento de sua produção de alimentos e outros, que possam
garantir ao grupo sobrevivência econômica, e permanência como
um grupo distinto e diferenciado. Tem sido estudada a forma de
parcerias, quando o índio não perde a posse da sua terra, e
recebe equipamentos, insumos, e até recursos do seus parceiros,
para fazer a terra produzir, dividindo, ao final, o produto.
Educação e Saúde.
Mas nem só de
terra cuida o indigenismo. Atualmente tem sido constante o esforço
para que o Governo cumpra a Constituição, e faça uma revisão
no ensino da História do Brasil, e da História particular de
cada Estado membro (Pernambuco, Paraíba, Ceará, etc.), de forma
a incluir o modo como os índios viam os portugueses,
colonizadores, e como se relacionavam com os outros brancos
(franceses, espanhóis, holandeses, etc.).
Ao mesmo tempo, é
necessário resgatar, para cada povo indígena (Tremembé,
Potiguara, Fulni-ô, Pankararu, etc.) a memória de suas lutas e
de suas resistências ao domínio do colonizador. É relevante
mencionar como cada Estado e cada cidade foram fundadas, à custa
da luta e da destruição das comunidades indígenas.
A exemplo de
trabalhos existentes com comunidades do Norte do Brasil, seria
importante uma publicação dedicada aos índios do Nordeste,
narrando seus usos e costumes, tradições e formas de viver de
hoje. Documentários podem ser feitos, com esses objetivos.
Saúde.
Uma questão básica,
com relação à saúde, é a necessidade de ser garantido aos índios,
em igualdade de condições com os não-índios, acesso aos serviços
de saúde. A FUNAI não tem tido recursos para garantir um bom
atendimento de saúde a todos. É preciso fazer com que o SUS leve
em conta as necessidades e valores culturais das comunidades indígenas.
Também é necessário que os serviços de saúde levem em conta
as práticas tradicionais de medicina das comunidades.
Conflitos internos.
Uma pequena e rápida
palavra sobre conflitos que surgem no seio das comunidades. Os próprios
índios devem se organizar, para definir, hoje, como querem ser
representados por seus caciques, tuxauas, principais, capitães,
xamãs, líderes, representantes de aldeia, ou outros nomes que
definam as pessoas em posição de mando e chefia. O importante é
que essas pessoas escolhidas ou apontadas para comandar sejam
aceitas pelo próprio grupo, pela própria comunidade.
Havendo formação
de vários grupos, dentro de uma mesma comunidade, devem ser
estabelecidas formas para obtenção de um consenso, ou de uma
decisão que seja adotada ou respeitada pela maioria.
Quando o grupo
vencido não quiser se submeter ao grupo vencedor, os órgãos
externos (FUNAI, União Federal, Ministério Público) só devem
interferir quando desse conflito resultar prejuízo para os
direitos da comunidade como um todo (por exemplo, quando um grupo
minoritário desejar, contra a maior, celebrar contratos de
arrendamento, ou retirada de madeira, etc.).
FUNAI.
Por fim, uma rápida
palavra sobre a FUNAI. A FUNAI não é pai nem mãe de índio
algum. Nem deve ser madrasta. Não é dona dos direitos dos índios.
E existe porque existem índios. Existe para servi-los e assessorá-los
nas suas necessidades. Para ajudá-los a vencer as dificuldades no
trato das questões que a comunidade tenham com a sociedade
envolvente.
A FUNAI vem
exercendo um papel relevante na luta em defesa dos direitos dos índios.
Muitos dos seus dirigentes ou funcionários comete ou cometeu
erros, e erros graves. O importante é corrigir esses erros, e
aprimorar e melhorar a instituição. Não se pode destrui-la nem
desmantelá-la.
Consideração
final.
Os índios são
donos das suas terras, e titulares do seu patrimônio histórico,
e cultural. Instituições públicas como a União, a FUNAI, e o
Ministério Público podem até ajudar na defesa desses direitos.
Mas é preciso que todos os índios e cada um deles esteja
disposto a lutar em defesa dos seus direitos. Só assim é que
garantirão para si e seus filhos o direito de serem índios,
viverem como índios, viverem entre índios.
12. Conclusões.
É clara a existência
de um sistema normativo internacional de respeito, promoção e
proteção às minorias étnicas, lingüisticas e religiosas. Esse
sistema é formado a partir do artigo 27 do Pacto dos Direitos
Civis e Políticos, mas recebe contribuições de vários outros
instrumentos normativos internacionais, como a Convenção para
Eliminação da Discriminação Racial, Convenção para Prevenção
e Punição do Genocídio, bem assim Declarações de direitos,
como a Declaração Universal de Direitos Humanos e a Declaração
Universal dos Direitos das Minorias, editada recentemente.
O Direito
Constitucional Brasileiro está em harmonia com essas normas e
princípios internacionais, muito embora não haja nem o
conhecimento e nem o estudo suficientes a conferir maior eficácia
às disposições fundamentais da Carta de 88.
Por outro lado, o
jurista brasileiro necessita ouvir e interagir com outros
cientistas sociais - geógrafos, lingüistas, historiadores, sociólogos,
antropólogos, etc. -, para compreender de modo plural a realidade
das minorias étnicas, lingüisticas, e religiosas. Para, ao fim e
ao cabo, compreender que uma democracia pluralista é feita também
de minorias, diferentes da sociedade envolvente, menores em número
mas não em direitos.
Lista de Leitura.
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Indigenous Peoples. Oxford: Clarendon Press.
Capotorti, Francesco [1979]: Study
on the Rights of Persons belonging to Ethnic, Religious and
Linguistic Minorities. Geneva: UN Publication E 78.XIV.1.
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of Peoples. Oxford: Clarendon Press.
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and Discrimination in International Law. London: Martinus Nijhoff
Publishers.
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Rights Protection and Minorities?, in Public Law Autumn 1994,
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Pailley, Claire [1979]: ?The Role
of Law in Relation to Minority Groups?, in Alcock, Taylor &
Welton [1979]: The Future of Cultural Minorities. London:
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Group Concept in Minority Protection?, Human Rights Quarterly 15
(1993) 575-588. John Hopkins University Press.
Rodley, Nigel S [1995]: ?Conceptual
Problems in the Protection of Minorities: International Legal
Developments?, in Human Rights Quarterly, 17 (1995) 48-71. John
Hopkins University Press.
Roth, Stephen J [1992]: ?Toward a
Minority Convention: Its Need and Content?. In Dienstein, Yoram
and Mala Tabory [1992]: The Protection of Minorities and Human
Rights. London: Martinus Nijhoff Publishers.
Thornberry, Patrick [1992]:
International Law and the Rights of Minorities. Oxford: Clarendon
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Türk, Danilo [1992]: ?Les droit
des minorités en Europe?, in Giordan, Henri [1992]: Les
Minorités en Europe. Paris: Éditions Kimé.
Wolfrum, Rüdiger, ?The Emergence
of ?New Minorities? as a Result of Migration?, in Brölmann, C et
al. [1993]: Peoples and Minorities in International Law.
Netherlands: Kluwer Academic Publishers.
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