Militantes
Brasileiros dos Direitos Humanos
João Baptista Herkenhoff
O que é Justiça?
Primeiro dia de aula. Eram todos
calouros do Curso de Direito. Logo depois da chamada,
o jovem inquieto, antes mesmo que eu me apresentasse
como professor, lança a pergunta:
- "Professor, que é Justiça?".
No
semblante do jovem, percebi que havia mais do
que uma dúvida intelectual. Ele me colocava
uma questão existencial. Questões
existenciais angustiam a alma humana, não
esperam o momento de se expressarem, não
respeitam o plano de aula que o professor tivesse
preparado.
- "Você me propõe uma questão
polêmica". Foi como iniciei a resposta,
enquanto tomava fôlego.
Segundo
o ensino clássico, a Justiça explicita-se
de três maneiras fundamentais: como Justiça
comutativa; como Justiça distributiva;
como Justiça geral, social ou legal.
A
Justiça comutativa exige que cada pessoa
dê a outra o que lhe é devido. A
Justiça distributiva manda que a sociedade
dê a cada particular o bem que lhe é
devido. A Justiça geral, social ou legal
determina que as partes da sociedade dêem
à comunidade o bem que lhe é devido.
"Entendi
tudo, Professor. Mas queria um conceito mais concreto.
É o primeiro dia de aula. Estamos perplexos
diante do Curso que vamos fazer".
Lembrei-me,
então, de Jesus Cristo, que ensinava por
meio de parábolas. E lhes contei um caso.
Era
uma vez uma viúva cujo marido foi morto,
num acidente de trânsito, por um veículo
do Estado. O senhor atravessava a rua, atentamente,
aproveitando o sinal verde. O carro, em velocidade,
não respeitou o sinal. Chocou-se com o
homem e arremessou seu corpo a metros de distância.
A
viúva, que tinha seis filhos menores, ingressou
com uma ação contra o Estado do
Espírito Santo, por meio da Defensoria
Pública.
Ação
muito bem instruída e conduzida, a viúva
obteve do juiz sentença favorável,
que condenou o Estado a reparar o dano, pensionando
a viúva e também os filhos, estes
enquanto durasse a menoridade.
Os
processos, na Justiça, não andam
rapidamente. Enquanto aguardava o desfecho do
caso, a viúva, com seus filhos, estava
passando duras privações.
Mesmo
dada a sentença pelo juiz, a mesma não
seria executada de pronto. Manda a lei que, nas
sentenças contra o Estado, o juiz submeta,
obrigatoriamente, o caso ao duplo grau de jurisdição.
Dizendo em outras palavras: quando o juiz decide
uma questão contra o Estado é obrigado
a mandar o processo para o Tribunal, a fim de
que a matéria seja reexaminada.
No
Tribunal o processo demora mais algum tempo, até
que os autos retornem ao juiz. E, às vezes,
demora tempo demais.
Era
Procurador do Estado, no processo, o Doutor Hélio
Charpinel Goulart, hoje falecido.
Vendo
a situação da viúva e das
crianças, bem próxima da miséria,
o Procurador requereu ao juiz que, naquele caso,
deixasse de mandar o processo para o Tribunal
e ordenasse a execução imediata
do julgado. Estando ciente de que descumpria a
literalidade da lei, o Procurador requereu ao
juiz que oficiasse ao Procurador Geral do Estado,
dando conta ao mesmo do procedimento dele, Hélio
Goulart. Se o Procurador Geral entendesse que
seria merecido aplicar-lhe uma punição,
o Procurador disse que aceitaria, de bom grado,
a punição. Preferia ser punido do
que afrontar sua consciência e retardar
ainda mais a prestação de Justiça,
de que a viúva e os filhos menores eram
credores. Disse mais o Procurador. Há um
valor em jogo, que é mais importante do
que cumprir cegamente o princípio do recurso
obrigatório, nas sentenças contra
o Estado. O Estado, mais que o particular, tem
o dever de ser justo, de socorrer o fraco, de
prevenir a indigência. Esse dever do Estado
é uma imposição da Constituição
Federal, na forma do que preceitua o inciso III
do artigo 1º.
Atendendo
o que pediu o Procurador, o juiz submeteu o procedimento
dele, Procurador, ao crivo dos superiores hierárquicos.
E o próprio juiz assumiu também
a responsabilidade por aquela quebra da "literalidade
legal" pois lhe cabia também determinar
a subida dos autos para a instância superior.
Na
Procuradoria Geral do Estado, o caso gerou polêmica.
Mas afinal decidiu o Procurador Geral que a hipótese
em exame era uma exceção. O Procurador
não merecia punição. Pugnara
pela Justiça e Justiça deveria ser
feita à viúva e aos órfãos.
Depois
de contar a história, dirigi-me ao jovem
aluno que, a esta altura, já estava de
cabelo arrepiado e de olhos estatelados:
"Isto,
meu caro aluno, é Justiça. É
a Justiça do caso concreto. É a
realização da Justiça distributiva,
a que me referi, antes de contar esta história".
E
o menino se deu por satisfeito, nada mais me sendo
perguntado. |