Militantes
Brasileiros dos Direitos Humanos
Joćo
Baptista Herkenhoff
Um juiz sensato, um erro
corrigido
Numa
tarde de agosto, há 27 anos, uma mulher
chamada Edna foi levada à 1.ª Vara
Criminal do Fórum de Vila Velha (ES).
A primeira coisa que o juiz João Batista
Herkenhoff notou foi a gravidez avançada
da moça. Edna havia sido presa com 10
gramas de maconha e já estava detida
há 8 meses: “Me lembro daquele
dia como se fosse hoje por causa do sentimento
que tomou conta de mim. Quando vi aquela moça
quase dando à luz, presa todo aquele
tempo por ter sido encontrada com 10 gramas
de maconha eu tive uma ira santa. Pensei em
todos os criminosos que andam soltos por aí
e como a nossa sociedade é injusta com
os mais fracos”, lembra o juiz.
Herkenhoff colocou Edna em liberdade. O texto
do despacho (abaixo) é uma “explosão”
emocionada de indignação e defesa
à vida. Assim que terminou a leitura
da decisão do juiz, a moça perguntou,
timidamente: “Estou livre, mesmo?”.
Diante da confirmação, ela fez
uma promessa: se o filho que estava para nascer
fosse homem, seria chamado João Baptista.
O despacho do juiz Herkenhoff mudou radicalmente
a vida de Edna. Além da liberdade, a
ex-presidiária recuperou a dignidade.
Naquele dia Edna resolveu abandonar a prostituição.
Quem conta é o próprio juiz, que
só soube disso muitos anos depois. “Um
dia uma mulher me ligou e pediu se poderia me
fazer uma visita. Era a Edna. Eu já estava
aposentado, por isso a recebi aqui em casa.
Quando eu abri a porta tive uma surpresa: ela
estava acompanhada de uma moça. Era o
bebê que ela esperava no dia da sentença.
Como nasceu uma menina, ela chamou-a de Elke
Maravilha”, diz Herkenhoff.
Edna nunca esqueceu aquela tarde de agosto e
as mudanças que as palavras do juiz determinaram
na vida dela. “Ela conheceu um homem bom,
se casou e teve outros três filhos além
daquela menina. Fez questão que eu soubesse
disso porque achou que me daria uma alegria.
E foi mesmo uma alegria imensa”, confessa
Herkenhoff.
A história de Edna está no livro
“Uma porta para o homem no Direito Criminal”,
que o juiz Herkenhoff escreveu para estudantes
de Direito e que já está na quarta
edição. “Assim como essa,
todas as histórias do livro são
verdadeiras”, garante. Herkenhoff tem
66 anos, é aposentado e mora em Vitória,
ES. Casado, pai de um filho, ele se prepara
para publicar o 32.º livro, “Movimentos
Sociais e Direito”.
(Phoenix Finardi)
E EDNA GANHOU A LIBERDADE
“A acusada é multiplicadamente
marginalizada: por ser mulher, numa sociedade
machista; por ser pobre, cujo latifúndio
são os sete palmos de terra dos versos
imortais do poeta; por ser prostituta, desconsiderada
pelos homens mas amada por um Nazareno que certa
vez passou por este mundo; por não ter
saúde; por estar grávida, santificada
pelo feto que tem dentro de si, mulher diante
da qual este Juiz deveria se ajoelhar; numa
homenagem à maternidade; porém
que, na nossa estrutura social, em vez de estar
recebendo cuidados pré-natais, espera
pelo filho na cadeia.
É uma dupla liberdade a que concedo neste
despacho: liberdade para Edna e liberdade para
o filho de Edna que, se do ventre da mãe
puder ouvir o som da palavra humana, sinta o
calor e o amor da palavra que lhe dirijo, para
que venha a este mundo tão injusto com
forças para lutar, sofrer e sobreviver.
Quando tanta gente foge da maternidade; quando
milhares de brasileiras, mesmo jovens e sem
discernimento, são esterilizadas; quando
se deve afirmar ao Mundo que os seres têm
direito à vida, que é preciso
distribuir melhor os bens da Terra e não
reduzir os comensais; quando, por motivo de
conforto ou até mesmo por motivos fúteis,
mulheres se privam de gerar, Edna engrandece
hoje este Fórum, com o feto que traz
dentro de si.
Este juiz renegaria todo o seu credo, rasgaria
todos os seus princípios, trairia a memória
de sua Mãe, se permitisse sair Edna deste
Fórum sob prisão.
Saia livre, saia abençoada por Deus,
saia com seu filho, traga seu filho à
luz, que cada choro de uma criança que
nasce é a esperança de um mundo
novo, mais fraterno, mais puro, algum dia cristão.
Expeça-se incontinenti o alvará
de soltura”.
(Despacho proferido em 09.08.1978, na 1.ª
Vara Criminal de Vila Velha, no ES. Publicado
no livro “Uma Porta para o Homem, no Direito
Criminal”, de João Baptista Herkenhoff.
Rio de Janeiro, Ed Forense, 2001, 4.ª Edição,
pág. 2 e 3).
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