Militantes
Brasileiros dos Direitos Humanos
João Baptista Herkenhoff
Flores, furto e poesia
Louvo
a atitude de perdão da senhora Vera Nancy
Borges, que teve orquídeas subtraídas
de seu jardim, em Vitória. Ficou feliz
de recuperar as flores, que têm para ela
um grande valor sentimental, mas declarou que
não deseja que se faça nada contra
a senhora que colheu as flores, mas, pelo contrário,
deseja que essa senhora seja muito feliz. (A Gazeta,
22.02.2008).
Num
mundo que fosse feito de sensibilidade e de poesia
haveria uma ressalva explícita, ou pelo
menos, uma ressalva de interpretação
ao artigo 155 do Código Penal, que define
o furto. Na linguagem fria da lei considera-se
furto "subtrair para si coisa alheia móvel".
A pena para o crime é de um ano a quatro
anos de reclusão, além de multa.
Flores não se furtam, flores são
colhidas. Flores não são "coisa
alheia móvel", flores são aragens
de carinho neste mundo insípido. Flores
não podem estar contidas no artigo penal
citado.
Por
coincidência, na mesma semana em que são
colhidas as flores do maravilhoso jardim de Dona
Vera, celebram-se os centenários de Machado
de Assis e Guimarães Rosa.
Machado
de Assis escreveu:
"Teus
olhos são meus livros.
Que
livros há aí melhor,
Em
que melhor se leia
A página
do amor?
Flores
me são teus lábios.
Onde
há mais bela flor,
Em
que melhor se beba
O bálsamo
do amor?"
Guimarães
Rosa, além de grande escritor, um dos maiores
da Literatura Universal, foi botânico e
naturista. Como verdadeiro cientista, viajou pelo
sertão observando a natureza e colhendo
dados para produzir seus livros, principalmente
sua obra prima "Grande Sertão - Veredas".
Em passagens magistrais, antológicas, ele
descreve o canto e a plumagem dos pássaros,
a cor e o cheiro das flores.
Num
poema que lhe dedicou, na semana em que morreu
Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade
escreveu:
"Vegetal
ele era ou passarinho
Sob
a robusta ossatura com pinta
De
boi risonho?"
Em
cinco de setembro de 1975, quando eu exercia a
função de Juiz de Direito em Vitória,
ao libertar um jardineiro processado por crime
de lesões corporais leves, determinei,
como condição para sua soltura,
que ele voltasse
"para
os jardins desta cidade, como jardineiro que é,
a fim de cuidar das flores e tornar menos agreste
a paisagem urbana, contribuindo, com seu trabalho,
inclusive para proporcionar jardins mais belos
a nossas crianças."
Ainda
na sentença estabeleci como requisito de
liberdade que ele se dedicasse
"ao
seu trabalho, à bela ocupação
de jardineiro, velando, com carinho, pela vida
vegetal, e compreendendo que se esta é
reflexo da divindade, muito mais reflexo da divindade
é a vida e a integridade do nosso irmão".
Fico
a imaginar que esse jardineiro, tempos depois,
tenha voltado à casa da vítima e
oferecido à família um buquê
de rosas. |