Militantes
Brasileiros dos Direitos Humanos
João Baptista Herkenhoff
Carnaval e Cidadania
Na presença entusiasmada
da gente mais simples do povo brasileiro, em escolas
de samba e blocos de Carnaval, vejo, dentre outros
aspectos, a profunda busca de identidade, tão
forte na alma humana. Quem pertence a uma escola
de samba tem endereço, raiz, deixa de ser
alguém sem lenço e sem documento.
Vibro com as escolas sim, mas vibro ainda mais
com o rosto feliz dos sambistas. Esses rostos
me enternecem.
A
sede humana de identidade e reconhecimento me
relembra antigas andanças pelo interior,
como juiz. Surpreendi centenas de casos de pessoas
sem nome civil. Numa situação de
completa marginalização econômica
e social - inacreditável para quem não
foi testemunha - brasileiros, irmãos nossos,
nem nome civil possuíam.
O
primeiro "movimento pela cidadania ampla",
que tive a honra de inspirar, como juiz, ocorreu,
a partir de 1967, em São José do
Calçado, cidade localizada no sul do Estado
do Espírito Santo.
A
comunidade e o Juiz de Direito - juntos promovemos
milhares de registros civis, casamentos civis,
correção de prenomes grafados erroneamente,
emissão de carteira de trabalho em favor
de pessoas que trabalhavam sem carteira, matrícula
compulsória de crianças na escola,
resgate da história local através
de pesquisa e documentação etc.
Houve
uma intensa participação de estudantes
no "movimento pela cidadania ampla".
Foi um período de profícua vida
cidadã dentro dos muros da pequenina, mas
pujante comunidade interiorana, contrastando com
uma época de obscurecimento da cidadania
na vida nacional.
Encontrar
a possibilidade de "ser pessoa" numa
escola de samba, tornar-se juridicamente "pessoa"
pelo registro civil, - leva-me a uma outra reflexão,
qual seja, a busca de "ser pessoa",
de ser feliz, na multidão, nas praias apinhadas
de gente, no balanço das ondas, no burburinho
das vozes, no murmúrio do mar.
"Ser
pessoa", neste caso, é soltar-se,
relaxar, aliviar tensões. Todos os entraves
que obstaculem a vivência dessa dimensão
do "ser pessoa", como privatizar praias,
merecem nosso repúdio.
Ninguém
tem o direito de utilizar expedientes espertos
para restringir o uso de praias a certas pessoas,
ou para cobrar entrada em praias. A praia ainda
é um dos poucos bens acessíveis
a todos sem exceção. A freqüência
à praia não apenas constitui agradável
descanso, como é um benefício para
a saúde, especialmente das crianças.
A sociedade civil deve resistir à privatização
das praias, através de pressão política
e também por meio da "ação
popular".
As
praias devem ser bem cuidadas e limpas, com apetrechos
próprios à coleta de lixo. Não
se deve permitir o convívio pouco higiênico
entre pessoas e animais. A prática de certos
esportes que incomodam os banhistas deve ser restrita
a horários determinados, ou a espaços
claramente fixados. Todas as praias devem dispor
de serviços de salvamento e de prestação
de socorros urgentes. Devem contar com discreto
policiamento, de índole sobretudo pedagógica,
para que todos possam usufruir fraternalmente
desta riqueza brasileira, que são nossas
praias. A imensa costa, quase toda constituída
de praias, faz do nosso país uma nação
privilegiada.
Bela
saga do povo brasileiro, nesta luta para "ser
pessoa": o sambista, que se torna pessoa
sambando; a comunidade que "faz pessoas"
através de uma chamada geral para a cidadania
num momento de escuridão ("Faz escuro,
mas eu canto"); o povo que trabalha e que
sua, que tenta na praia "ser pessoa",
que divisa com esperança o horizonte infinito,
esse horizonte que não tem dono - a todos
pertence. |