
RECEPÇÃO
AOS ALUNOS INICIANTES
João Baptista Herkenhoff
Doutor em Direito, Professor do CESV
Os
jovens são os interlocutores preferenciais de minhas idéias.
Publico livros. Os livros circulam
em regiões longínquas do país e até no Exterior. Mas os livros
não criam a possibilidade de diálogo como este que estou tendo
com vocês, jovens. Ouvir pessoas, ouvir questões suscitadas,
poder debatê-las com quem tem menos que o triplo de minha idade,
isto é vivenciar o Direito.
Já o vivenciei como advogado,
professor, promotor de justiça, juiz de Direito, militante dos
movimentos sociais, na Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de
Vitória e agora como jurista, apresentando e debatendo as idéias
de meus livros.
Queria dizer inicialmente que
procuro ser fiel aos princípios éticos. Busco passar a visão de
um Direito que sempre se pautou em perseguir os ideais de justiça,
em defesa dos Direitos da pessoa humana e em defesa da ética.
Esta é a visão do Direito que quero lhes transmitir.
O QUE É ISTO DE ENTRAR NUMA
FACULDADE DE DIREITO, O QUE É SER ESTUDANTE DE DIREITO
O que é isto de entrar numa
faculdade de Direito, ser um estudante do Direito?
Esta oportunidade constitui um privilégio e uma responsabilidade.
Vocês, alunos de Direito, integram aquela minoria que tem acesso
ao estudo universitário.
Vocês vão passar a ter imensa
responsabilidade no futuro como operadores do Direito. Saibam que
o povo tem fome e sede de justiça. Aqueles profissionais que
deviam ser exemplo para o povo, nem sempre o são. Descaracterizam
o próprio Direito e a justiça. Pessoas que deviam ocupar cargos
públicos com ética, respeito e presteza não o fazem. Hoje lemos
nos jornais que uma autoridade do poder judiciário, um juiz, está
"em lugar incerto em não sabido", que se encontra
foragido da Justiça, além de outros casos graves que envolvem juízes.
Quem dera fosse essa a única autoridade a se envolver em escândalos.
Os operadores do Direito devem possuir um compromisso com a
construção da cidadania e do país.
1. O que é o direito e qual o seu papel
O Direito pode ter um papel de
legitimação do status quo, ou seja, das coisas como estão
postas. Os pobres são torturados hoje, nas delegacias de polícia,
e tantos de nós são surdos aos seus gemidos. Na época da
ditadura militar, juristas produziram o AI 5 (Ato Institucional n.
5), que funcionou como uma "constituição" (com
"c" minúsculo), durante todo o período do arbítrio.
Que papel lastimável o dos juristas que escreveram o AI 5. Isto
porque o jurista não pode ser alguém submisso, amesquinhando o
Direito e legitimando a ditadura e a opressão. Os juristas devem
lançar-se na luta por uma sociedade que respeite a pessoa humana.
Os juristas devem ser corajosos, com a voz dos profetas,
porta-vozes da justiça. Muitos nesta luta e por este compromisso
tombaram, tornaram-se mártires. Neste sentido os juristas podem
ter um papel importante, atores de um processo de transformação
social, atores na construção de um novo mundo. Alguns não
costumam aceitar essa posição, muitos operadores consideram que
o Direito deve estar a reboque das estruturas político-sociais
dominantes.
O Direito, a meu ver, é profecia, anúncio, tábua da justiça,
força que se coloca a serviço dos oprimidos. Juízes,
promotores, advogados, juristas devem observar isso.
2. Como estudar o direito
Importante dizer inicialmente que
ninguém que passa por uma faculdade de Direito tem prejuízo.
Pelo contrário, mesmo que não venha a exercer a profissão o
simples estudo do Direito já é enriquecedor.
Como devemos estudar o Direito?
Estudar com planejamento, começar
a estudar aquilo de que gosta, ler as coisas mais interessantes,
fazer anotações, marcar palavras, textos, criar o hábito
constante da leitura. Só se aprende e se gosta de ler, lendo. O hábito
não se adquire num passe de mágica, é um processo, depende do
esforço de cada um. Ter o gosto por algo implica uma procura. Se
não experimento, não tenho a possibilidade de gostar. Se
experimento e gosto, vou sempre querer mais.
3. Para gostar do direito - a importância do direito
Para gostar do Direito é necessário
compreender sua importância. Não é só pelo emprego que se pode
obter com o curso, ou pelo canudo que envaidece. Impõe-se
compreender que o Direito tem um "algo mais", possui um
grau de importância porque tem presença na vida social.
Sociedades sem Direito seriam sociedades selvagens. Quem precisa
do Direito são os fracos para se oporem aos fortes. O jurista Rui
Barbosa defendeu em Haia, na Holanda, a igualdade jurídica das nações,
ou seja, o Paraguai deve ter a mesma importância que os Estados
Unidos da América no âmbito internacional. Pensar o Direito em
face da desigualdade e da injustiça e lutar pela igualdade e pela
justiça.
A BELEZA DO DIREITO E SUA PERTINÊNCIA
COM A VIDA, O COTIDIANO, A CRISE DE NOSSO TEMPO
A beleza do Direito está em que a
construção do raciocínio jurídico, a aplicação da lei deve
fundar-se na busca da justiça. Direito é ciência, ciência
social, não está dissociado da vida, do cotidiano, não está
alheio à crise de nosso tempo. Não devemos ser amigos do rei,
mas ratos a incomodar o rei, a morder os pés do rei. Se o rei
estiver praticando a injustiça, vocês estarão do lado contrário.
4. O direito como instrumento de humanização
O Direito deve ser humanizado, deve
exercer um papel humanizador, fazer com que as pessoas se sintam
mais valorizadas. Temos de ver mulheres e homens como cidadãs e
cidadãos e, mais ainda, como pessoas humanas.
Como bem disse Cândido Rangel Dinamarco, "o Direito deve ser
instrumento de felicidade". O Direito deve ser instrumento de
humanização e do nosso crescimento como pessoa.
5. O direito como poesia
O Direito pode ser poesia, os
flashs da vida são poéticos. A poesia é o alimento do ser
humano no itinerário da existência.
Finalizando, termino a aula e a
resumo numa passagem de minha vida profissional.
Quando eu era juiz em Vila Velha, no Espírito Santo, certa tarde
compareceu em minha Vara uma senhora grávida que estava presa
havia vários meses porque fora encontrada com alguns gramas de
maconha. Ela estava em adiantado estágio de gestação. Vendo
aquela mulher pobre, grávida, desamparada, presa por um delito tão
pequeno, eu senti uma profunda revolta. E então, na presença
dela, ditei para a escrivã o despacho que a libertou:
A acusada é multiplicadamente
marginalizada: por ser mulher, numa sociedade machista; por ser
pobre, cujo latifúndio são os sete palmos de terra dos versos
imortais do poeta; por ser prostituta, desconsiderada pelos homens
mas amada por um Nazareno que certa vez passou por este mundo; por
não ter saúde; por estar grávida, santificada pelo feto que tem
dentro de si, mulher diante da qual este juiz deveria se ajoelhar,
numa homenagem à maternidade, porém que, na nossa estrutura
social, em vez de estar recebendo cuidados pré-natais, espera
pelo filho na cadeia.
É uma dupla liberdade a que concedo neste despacho: liberdade
para Edna e liberdade para o filho de Edna, que, se do ventre da mãe
puder ouvir o som da palavra humana, sinta o calor e o amor da
palavra que lhe dirijo, para que venha a este mundo tão injusto
com forças para lutar, sofrer e sobreviver.
Quando tanta gente foge da maternidade, quando pílulas
anticoncepcionais, pagas por instituições estrangeiras, são
distribuídas de graça e sem qualquer critério ao povo
brasileiro; quando milhares de brasileiras, mesmo jovens e sem
discernimento, são esterilizadas; quando se deve afirmar ao Mundo
que os seres têm Direito à vida, que é preciso distribuir
melhor os bens da Terra e não reduzir os comensais; quando, por
motivo de conforto ou até mesmo por motivos fúteis, mulheres se
privam de gerar, Edna engrandece hoje este Fórum, com o feto que
traz dentro de si.
Este Juiz renegaria todo o seu credo, rasgaria todos os seus princípios,
trairia a memória de sua Mãe, se permitisse sair Edna deste Fórum
sob prisão.
Saia livre, saia abençoada por Deus, saia com seu filho, traga
seu filho à luz, que cada choro de uma criança que nasce é a
esperança de um mundo novo, mais fraterno, mais puro, algum dia
cristão.
Expeça-se incontinenti o alvará de soltura".
(Trecho extraído, na íntegra, do livro Para Gostar do
Direito", do professor João Baptista Herkenhoff, e lido pelo
palestrante, ao finalizar sua aula).
(*) Este texto foi produzido a
partir da primeira aula dada pelo Professor João Baptista
Herkenhoff, em agosto de 2000, para alunos do primeiro ano do
Curso de Direito do CESV. A primeira versão - transformação da
exposição oral em texto escrito - foi elaborada pelo Professor
Paulo Roberto Rodrigues Amorim, para a disciplina "Atividades
Complementares". Em seguida, o texto foi submetido ao autor,
que fez correções e pequeninos acréscimos, mantendo, quanto
possível, a fidelidade à aula original.
Homepage do Prof. João Baptista
Herkenhoff:
http://www.joaobatista.direito.net
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