
Marighella
Mini-Manual do Guerrilheiro
Urbano
Carlos Mariguella
Por Frei Betto
Carlos Marighella,
assassinado há 30 anos, foi quem melhor encarnou a resistência
libertária à ditadura militar que governou o Brasil durante 21
anos (1964-1985).
A história não é
contemporânea de si mesma. Pela ótica da Lisboa quinhentista, o
acidente de percurso das caravelas de Cabral representou uma
descoberta. Segundo os índios pataxós de Monte Pascoal,
significou uma invasão e, em seguida, um genocídio.
Em nossas escolas,
estudam-se as invasões francesas e holandesas, que se impuseram
com armas e corsários, como no futuro haverão de investigar a
invasão hodierna do FMI, onde o garrote é substituído por
retaliações, a rendição por acordos, as baionetas pelo fluxo
de capitais, os saques por juros e amortizações, os chefes de
armadas por ministros da Fazenda subservientes à metrópole.
A história é também
um jogo semântico. Embora os telejornais, hoje, pronunciem
"guerrilheiros", onde antes diziam
"terroristas"; "ditadura", onde antes falavam
"governo"; "torturas", onde antes mencionavam
"abusos"; o nome de Carlos Marighella ainda não se
livrou da pronúncia clandestina. Há quem prefira silenciá-lo
para não sentir-se questionado pelo que ele significa de firmeza
de convicções e, sobretudo, idealismo centrado no direito de
todos os brasileiros à dignidade e à justiça.
Para a história, a
vida e a morte de Marighella são muito recentes. À esquerda
falta consenso a respeito das reais circunstâncias de sua morte
—exceto a de que foi vítima do terrorismo de Estado. Dou a
minha versão em "Batismo de Sangue", sem eximir meus
confrades de responsabilidades. Dela discorda Jacob Gorender em
"Combate nas Trevas", mas concorda Emiliano José em
"Carlos Marighella, o inimigo número um da ditadura
militar". Essa polêmica não favorece um melhor conhecimento
do que importa —a sua vida de revolucionário brasileiro. Não
se forma uma geração sadia sem utopias e figuras paradigmáticas
altruístas. A minha, que teve o privilégio de completar 20 anos
de idade nos anos 60, salvou-se da "juventude
transviada" graças a Luther King e Che Guevara, a dom Hélder
Câmara e João XXIII e, sobretudo, à derrota dos EUA na guerra
contra uma das nações mais pobres do mundo, o Vietnã. De nossos
sonhos brotaram a Bossa Nova e o Teatro do Oprimido, o Cinema Novo
e o tropicalismo, o movimento estudantil e as comunidades
eclesiais de base, a emancipação da mulher e a contracultura.
Acatamos a sugestão de Che: "Seja modesto, queira o impossível".
Marighella situa-se
entre aqueles que, com seu sangue, escreveram as mais importantes
páginas da história do Brasil: Zumbi, Sepé Tiaraju, Felipe dos
Santos, Tiradentes, Cipriano Barata, Frei Caneca, Bento Gonçalves,
Angelim, Antônio Conselheiro, o "monge" João Maria,
Luiz Carlos Prestes, Francisco Julião e tantos outros. São nomes
que ainda não saíram das sombras a que a elite insiste em
relegar a nossa história. Em nossas escolas, e nos raros
programas televisivos que se referem à história do Brasil,
poucos conhecem a geografia semântica de termos como Palmares,
Cabanagem, Canudos, Contestado, Farrapos, Praieira, Confederação
do Equador, Coluna Prestes.
Filho de imigrantes
italianos, Marighella encontrou no Partido Comunista o esteio que
lhe forjou o vigor combatente. Deputado federal constituinte, não
se deixou cooptar por aqueles que, após a ditadura Vargas,
buscaram um pacto político que não incluía os direitos econômicos
das classes populares. Marighella não ambicionava o poder, mas o
Brasil soberano, livre da submissão ao capital estrangeiro.
Por fidelidade a suas
origens operárias, rompeu com o PCB para aderir ao primado da ação.
Estava cansado de documentos e palavras, quando o momento exigia,
como ainda hoje, mudanças radicais na estrutura social
brasileira. Queria uma revolução. Porém, desde os anos 30, a
elite brasileira repete com insistência: "Façamos a revolução
antes que o povo a faça". É o que se vê nesses supostos
projetos contra a pobreza apadrinhados, em véspera de eleições,
por aqueles que se situam entre os responsáveis pela escandalosa
desigualdade social reinante no Brasil.
Uma nação ou uma
pessoa que se envergonha de sua própria história corre o risco
de perder raízes e identidade, qual colonizado que louva o
colonizador e procura imitá-lo. A vida de Marighella foi um gesto
de oblação. Trinta anos depois de morto, ele prossegue
desafiando a generosidade dos vivos, e apontando, para o nosso país,
um caminho de futuro, onde todos tenham saúde, educação,
trabalho e moradia. É o que basta.
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