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28/08 - Helder Câmara (1909-1999) - Frei Betto

"Aqui é Dom Helder. Está preso aí (na delegacia) o meu irmão" (um homem que estava sendo espancado). O policial levou um susto: "Seu irmão, eminência?". "É. Apesar da diferença de nomes, somos filhos do mesmo Pai..."

Dom Helder Câmara até ontem, como diz são Paulo na 1a. Carta aos Coríntios, conhecia Deus "como por um espelho, de modo confuso". Agora, conhece-O "face a face".

Meu primeiro contato com o "arcebispo vermelho" foi em 1961, quando eu era dirigente, em Minas, da Juventude Estudantil Católica e ele, bispo responsável pela Ação Católica Brasileira. No ano seguinte, levou-me para o Rio, para participar da direção nacional da JEC.

Convivemos durante três anos. Ele tinha seu escritório no palácio São Joaquim, no Largo da Glória. Do outro lado da praça, sob o Outeiro, ficava a sede da CNBB, da qual dom Helder foi o fundador e, por muitos anos, secretário-geral. As refeições, ele tomava num botequim da esquina, entre pedreiros e cachaceiros.

Na Igreja católica, foi o pioneiro do movimento renovador conhecido por "opção pelos pobres". Fundou a Cruzada São Sebastião, empenhado em sua utopia de erradicar as favelas cariocas. Não deu certo. Instalados em apartamentos, os favelados, instigados pela miséria, arrancavam torneiras, encanamentos e instalações elétricas para vender, e muitos sublocavam a moradia em busca de renda.

Dom Helder Câmara descobriu então que uma só andorinha não faz verão e que a pobreza não resulta da indolência, mas de "estruturas injustas", conforme faria constar, em 1968, no documento episcopal de Medellín.

Durante o Concílio Vaticano II (1962-1965), o "bispo dos pobres" promoveu uma articulação entre cardeais e bispos de todo o mundo em favor da inserção da Igreja nos setores populares. Propôs ao papa João 23 entregar o Vaticano e suas obras de arte aos cuidados da UNESCO, como patrimônio cultural da humanidade, enquanto o papa passaria a morar, na qualidade de bispo de Roma, numa paróquia da capital italiana. Ele sonhava com uma Igreja menos imperial e mais parecida com a comunidade dos pescadores da Galiléia.

No Rio, dom Helder Câmara contava com o apoio de um grupo de leigos, homens e mulheres, conhecido como "a família messejanense" - referência à Messejana, distrito cearense no qual nasceu. A "família" teve o privilégio de receber, em forma de cartas, o diário do arcebispo durante o Concílio, onde ele narra, sem censura, os bastidores do conclave - documento de inestimável valor a ser divulgado após a sua morte.

Dom Helder nunca cedeu às pressões de quem pretendeu torná-lo, como JK, prefeito do Rio, senador e até presidente da República. Arcebispo de Olinda e Recife, jamais aceitou morar em palácio. Fez dos fundos de uma igreja sua casa e ali ele próprio atendia à porta a quem batia. Com certeza, nenhum brasileiro foi tão biografado. A maioria das obras é assinada por autores estrangeiros, embora ele tenha conseguido o milagre de ser profeta em sua própria terra.

Integralista na juventude, progressista na idade adulta, dom Helder sempre surpreendeu a quem quis enquadrá-lo em jargões. Sob a ditadura militar, dialogou com os generais que o censuravam na mídia e socorreu os perseguidos e os presos políticos na defesa intransigente dos direitos humanos.

Sua fama no exterior - entre brasileiros, só comparável à de Pelé - levou a Polícia Federal, sob o regime militar, a oferecer-lhe segurança. Brasília temia que ele sofresse um atentado. Dom Helder disse aos policiais: "Não preciso dos senhores. Já tenho quem cuida de minha segurança". Os agentes pediram os nomes. Precisavam de registro nos órgãos oficiais. O bispo não se fez de rogado: "São o Pai, o Filho e o Espírito Santo".

Certa noite familiares aflitos procuraram dom Helder. Um homem tinha sido preso e estava sendo espancado na delegacia. O prelado ligou para o delegado: "Aqui é dom Helder. Está preso aí o meu irmão". O policial levou um susto: "Seu irmão, eminência?" Dom Helder explicou: "Apesar da diferença de nomes, somos filhos do mesmo pai". O delegado desmanchou-se em desculpas e mandou soltar o preso irmão do arcebispo. Filhos do mesmo Pai...

Assim era dom Helder, um homem evangélico, simples, sem firulas episcopais. E como tinha muita fé, jamais conheceu o medo. E amou de todo o coração essa Igreja que tanto quis ver renovada e, no entanto, jamais concedeu-lhe o merecido título de cardeal.

Faltou este homem na galeria do Prêmio Nobel da Paz. Com certeza o futuro cumprirá a justiça de entronizá-lo entre aqueles que são venerados como santos.

Frei Betto é escritor.

A arte da tolerância - Frei Betto

Tolerância é a capacidade de aceitar o diferente. Não confundir com o divergente. Intolerância é não suportar a pluralidade de opiniões e posições, crenças e idéias, como se a verdade fizesse morada em mim e todos devessem buscar a luz sob o meu teto.

Conta a parábola que um pregador reuniu milhares de chineses para pregar-lhes a verdade. Ao final do sermão, em vez de aplausos, houve um grande silêncio. Até que uma voz se levantou ao fundo: "O que o senhor disse não é a verdade". O pregador indignou-se: "Como não é verdade? Eu anunciei o que foi revelado pelos céus!" O objetante retrucou: "Existem três verdades.

A do senhor, a minha e a verdade verdadeira. Nós dois, juntos, devemos buscar a verdade verdadeira".
Só os intolerantes se julgam donos da verdade. Assim ocorre com Milosevic, ao manter-se intransigente e não admitir os direitos dos kosovares, e com Clinton, ao decidir que seus mísseis são o melhor argumento para convencer o mundo de que a Casa Branca tem sempre razão.

Todo intolerante é um inseguro. Por isso, aferra-se a seus caprichos como um náufrago à tábua que o mantém à tona. Ele não é capaz de ver o outro como outro. A seus olhos, o outro é um concorrente, um inimigo ou, como diz um personagem de Sartre, "o inferno". Ou um potencial discípulo que deve acatar docilmente suas opiniões. O tolerante evita colonizar a consciência alheia. Admite que, da verdade, apreende apenas alguns fragmentos, e que ela só pode ser alcançada por esforço comunitário. Reconhece no outro a alteridade radical, singular, que jamais deve ser negada.

Pode-se aplicar ao tolerante o perfil descrito por são Paulo no Hino ao Amor da 1ª carta aos Coríntios (13,4-7): é paciente e prestativo, não é invejoso nem se ostenta, não se incha de orgulho e nada faz de inconveniente, não procura seu próprio interesse, não se irrita nem guarda rancor. Não se alegra com a injustiça e se rejubila com a verdade. Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.

Ser tolerante não significa ser bobo. Tolerância não é sinônimo de tolice. O tolerante não desata tempestade em copo d'água, não troca o atacado pelo varejo.

Ele jamais cede quando se trata de defender a justiça, a dignidade e a honra, bem como o direito de cada um ter seus princípios e agir conforme sua consciência, desde que isso não resulte em opressão ou exclusão, humilhação ou morte.

Das intolerâncias, a mais repugnante é a religiosa, pois divide o que Deus uniu. Quem somos nós para, em nome de Deus, decretar se esses são os eleitos e, aqueles, os condenados?

Só o amor torna um coração verdadeiramente tolerante. Porque quem ama não contabiliza ações e reações do ser amado e faz da sua vida um gesto de doação.

Frei Betto é escritor, autor de Entre todos os homens (romance sobre Jesus), A Obra do Artista - uma visão holística do Universo (ensaio sobre astrofísica e física quântica), e Alucinado Som de Tuba (romance sobre crianças de rua) publicações da Editora Ática.

Jardim da saudade - Frei Betto

Na terça-feira, 17 de fevereiro de 1970, oficiais do Exército retiraram Frei Tito de Alencar Lima do Presídio Tiradentes, onde se encontrava preso desde novembro de 1969, acusado de subversão. "Você agora vai conhecer a sucursal do inferno", disse-lhe o capitão Maurício Lopes Lima.

No quartel da rua Tutóia, um outro prisioneiro, Fernando Gabeira, testemunhou o calvário de Frei Tito: durante três dias, dependurado no pau-de-arara ou sentado na cadeira-do-dragão - feita de chapas metálicas e fios - recebeu choques elétricos na cabeça, nos tendões dos pés e nos ouvidos.

Deram-lhe pauladas nas costas, no peito e nas pernas, incharam suas mãos com palmatória, revestiram-no de paramentos e o fizeram abrir a boca "para receber a hóstia sagrada" - descargas elétricas na boca. Queimaram pontas de cigarro em seu corpo e fizeram-no passar pelo "corredor polonês".

O capitão Beroni de Arruda Albernaz vaticinou: "Se não falar, será quebrado por dentro. Sabemos fazer as coisas sem deixar marcas visíveis. Se sobreviver, jamais esquecerão preço de sua valentia". A ceder e viver, Tito preferiu morrer. "É preferível morrer do que perder a vida", escreveu ele em sua Bíblia. Com uma gilete, cortou a artéria do braço esquerdo. Socorrido a tempo, sobreviveu.

Foi libertado em dezembro de 1970, incluído entre os prisioneiros políticos trocados pelo embaixador suíço, seqüestrado pela VPR. Ao desembarcarem em Santiago do Chile, um companheiro comentou: "Tito, eis finalmente a liberdade!" O frade dominicano murmurou: "Não, não é esta a liberdade".

Em Roma, as portas do Colégio Pio Brasileiro, seminário destinado a formar a elite do nosso clero, fecharam-se para o religioso com fama de "terrorista". Em Paris, nossos confrades o acolheram no convento de Saint Jacques, em cuja entrada uma placa recorda a invasão da Gestapo, em 1943, e o assassinato de dois dominicanos.

O capitão Albernaz tinha razão: sufocado por seus fantasmas interiores, Tito tornou-se ausente. Ouvia continuamente a voz rouca do delegado Fleury, que o prendera, e o vislumbrava em cafés e bulevares. Transferido para o convento de Arbresle, construído por Le Corbusier nas proximidades de Lyon, as vis›es aterradoras continuaram a minar sua estrutura psíquica. Escrevia poemas: "Em luzes e trevas derrama o sangue de minha existência / Quem me dirá como é o existir / Experiência do visível ou do invisível?"

Os médicos recomendaram-no suspender os estudos para dedicar-se a trabalhos manuais. Empregou-se como horticultor em Villefranche-sur-Saône e alugou um pequeno cômodo numa pensão de imigrantes, o Foyer Sonacotra, cujas despesas pagava com o próprio salário.

O patrão o percebeu indolente, ora alegre, ora triste, sugado por um tormento interior. Em seu caderno de poemas, Tito registrou: "S‹o noites de silêncio / Vozes que clamam num espaço infinito / Um silêncio do homem e um silêncio de Deus."

No sábado, 10 de agosto de 1974, frei Roland Ducret foi visitá-lo. Bateu à porta de seu quarto na zona rural. Ninguém respondeu. Um estranho silêncio pairava sob o céu azul do verão francês e envolvia folhas, vento, flores e pássaros. Nada se movia. Sob a copa de um álamo, o corpo de Frei Tito, dependurado por uma corda, balançava entre o céu e a terra. Ele tinha 28 anos.

Em março de 1983, seus restos mortais retornaram ao Brasil. Acolhidos em solene liturgia na catedral da Sé, em São Paulo, encontram-se enterrados em Fortaleza, sua terra natal. O cardeal Arns frisou que Tito afinal encontrara, do outro lado da vida, a unidade perdida.

Figura emblemática entre as vítimas da ditadura, Frei Tito tornou-se venerável. Seu relato de tortura ganhou o prêmio de melhor matéria do ano/1970 da revista "Life". O curta-metragem "Frei Tito", dirigido por Marlene França, recebeu prêmios e aclamações no Brasil e no exterior.

Premiada pelo Serviço Nacional de Teatro, a peça de Licínio Rios Neto, "Não seria o Arco do Triunfo um monumento ao pau-de-arara?", em memória de Tito, foi proibida pela censura. Oriana Fallaci o homenageia no romance "Um Homem" (Record). Raniero La Valle, senador italiano, exaltou o exemplo dele em "Fora do Campo" (Civilização Brasileira). Adélia Prado dedicou-lhe o poema "Terra de Santa Cruz". Madeleine Alleins publicou, pela Du Cerf, "Le Désert et la nuit", inspirada no testemunho dele.

No próximo dia 10 de agosto, terça-feira, às 19h, a igreja de São Domingos, em S‹o Paulo, abrirá suas portas para celebrar, em cerimônia presidida por dom Paulo Evaristo Arns, os 25 anos do martírio de Frei Tito. Eventos paralelos ocorrerão em outras cidades do país. Rezaremos juntos o poema que Tito escreveu em Paris, a 12 de outubro de 1972:

"Quando secar o rio da minha infância / secará toda dor. / Quando os regatos límpidos de meu ser secarem / minh'alma perderá sua força. / Buscarei, então, pastagens distantes / lá onde o ódio não tem teto para repousar. / Ali erguerei uma tenda junto aos bosques. / Todas as tardes me deitarei na relva / e nos dias silenciosos farei minha oração. / Meu eterno canto de amor: / expressão pura de minha mais profunda angústia. / Nos dias primaveris, colherei flores / para meu jardim da saudade. / Assim, exterminarei a lembrança de um passado sombrio." Frei Betto é escritor, autor de "Batismo de Sangue", entre outros livros.

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