
DIREITOS
HUMANOS NO BRASIL:
O
PASSADO E O FUTURO*
Fábio Konder
Comparato**
O eixo em torno do
qual se desenvolve a história dos direitos humanos é a idéia de
que os homens são essencialmente iguais, em sua comum dignidade
de pessoas, isto é, como os únicos seres no mundo capazes de
amar, descobrir a verdade e criar a beleza.
O primeiro
reconhecimento normativo da igualdade essencial da condição
humana remonta ao final do século XVIII, com a proclamação das
liberdades indivi-duais e da igualdade perante a lei, nos Estados
Unidos e na França revolucionária.
A partir do século
XIX, com o reconhecimento de que todos têm direito a condições
de trabalho dignas, à fruição dos serviços públicos de caráter
social, bem como à garantia previdenciária contra os principais
riscos da vida em sociedade, a história dos direitos humanos
passou a desenvolver-se em função do princípio fundamental da
solidariedade. A exigência de uma organização solidária da
vida em so-ciedade estendeu-se, na segunda metade do século XX,
do plano interno para o internacional, com a afirmação dos
direitos dos povos à existência, à autodeterminação, à
democracia, à paz e ao desenvolvimento. Chega-se agora, no limiar
do terceiro milênio da era cristã, à dimensão universal da
dignidade humana, com o reconhecimento, por várias convenções
internacionais, dos direitos fundamentais da humanidade, tais como
o de proteção ao equilíbrio ecológico, o de preservação dos
monumentos de valor estético ou histórico, o de exploração
comunitária das riquezas minerais do leito marinho, umas e outros
considerados patrimônio mundial.
Nessa perspectiva
exaltante de unificação do mundo em função dos valores
supremos da liberdade, da igualdade e da solidariedade, é de se
perguntar em que estado se encontra o nosso País e qual a
perspectiva que nos abre o futuro. Conti-nuaremos a acumular
atrasos, ou saberemos defender de modo sempre mais efetivo a
dignidade humana de todos os que vivem neste vasto território?
Comecemos por
considerar o fato notório de que o Brasil detém, já há algum
tempo, o sinistro galardão de país onde impera a mais acusada
desigualdade sócio-econômica do mundo. Para que possamos
organizar, com alguma probabilidade de êxito, a terapêutica
adequada, é indispensável compreender a etiologia profunda do
mal.
A origem dessa
profunda divisão da sociedade brasileira entre ricos e pobres,
entre proprietários que mandam e escravos ou assalariados que
obedecem, encontra-se, a meu juízo, na estrutura própria da
sociedade portuguesa à época da colonização. Como observou
Tocqueville argutamente, "é nas colônias que se pode
melhor julgar da fisionomia do governo da metrópole, porque é aí
que de ordinário todos os traços que a caracterizam se encontram
ampliados e tornam-se mais visíveis"1 .
Portugal foi de
fato, juntamente com a Itália setentrional e central, a região
da Europa onde o feudalismo mais cedo deixou-se suplantar pela
organização sócio-econômica capitalista. Por isso mesmo, foi
nessas regiões que a burguesia mais rapidamente ascendeu ao
poder, provocando a substituição dos estamentos tradicionais
pela moderna sociedade de classes.
Os povos de origem
indo-européia, já se salientou2 , compuseram-se,
basicamente, de três ordens ou estados (status, Stände, États),
isto é, de grupos sociais dotados de um estatuto jurídico próprio,
ligado à condição pessoal de seus integrantes: a nobreza, o
clero e o povo. Os dois primeiros eram titulares de privilégios
hereditários. O terceiro tinha como única vantagem própria o status
libertatis, isto é, o fato de que os seus componentes não se
confundiam com a multidão dos servos de todo o gênero, ligados
à exploração da terra.
Na península ibérica
e, especialmente, em Portugal, essa organização estamental da
sociedade foi profundamente perturbada, já no século VIII, com a
invasão sarracena e a instauração de uma nova civilização.
Tal fato contribuiu decisivamente para que o sistema feudal,
dominante à época na Europa nórdica e central, abortasse em
quase toda a região ibérica.
É velha de mais de
um século a polêmica em torno da tese defendida por Herculano,
de que Portugal jamais conheceu um feudalismo autêntico3 . A
historiografia contemporânea considera essa interpretação um
tanto simplista, assinalando que não se há de confundir o regime
feudal propriamente dito com o sistema de dominação senhorial4 .
Naquele, havia uma relação bilateral voluntária de proteção e
vassalagem entre homens livres e iguais; nesta, a submissão de
servos à dominação de proprietários das terras, às quais os
cultivadores, com suas famílias e bens, se prendiam por vínculo
real.
Ora, embora
admitida a justeza dessa distinção conceitual, é impossível
deixar de reconhecer que a duradoura ocupação da península ibérica
pelos mouros e as subsequentes guerras da reconquista prejudicaram
não só o desenvolvimento normal das instituições feudais, como
também a continuidade do exercício dos poderes de dominação
servil, ligada à posse da terra. No primeiro caso, pela acentuação
precoce da supremacia do poder real sobre as prerrogativas
estamentais da nobreza e do clero; no segundo, de um lado, pela
antecipada eclosão das liberdades urbanas, com a multiplicação
dos forais outorgados aos burgos livres (concelhos)5 e a rápida
ascensão social dos que vieram ao depois a ser chamados
burgueses; de outro lado, pelo predomínio da riqueza material
como fonte de poder, relativamente à titulação nobiliárquica6 .
No tocante ao
precoce florescimento das cidades na península, importa lembrar o
caráter marcadamente urbano que os árabes desde cedo imprimiram
à organização social em terras ibéricas, com a multiplicação
da mão-de-obra assalariada e do trabalho artesanal, a especialização
mercantil de cambistas, almocreves e regatões e a aglomeração
nas cidades de toda sorte de pobres, pedintes e marginais. Em
suma, o estabelecimento antecipado da moderna sociedade de
classes, em que pessoas livres e iguais em direitos diferenciam-se
fundamentalmente pela sua situação patrimonial.
Tudo isso parece
explicar o fato notável de que foi em Portugal que eclodiu a
primeira revolução burguesa no Ocidente. O movimento político
que levou ao trono a dinastia de Aviz, em 1385, foi liderado pelo
povo dos mesteres e mercadores citadinos. É verdade, aliás, que
o espírito mercantil já vinha conquistando largas camadas da
nobreza. Em conhecido estudo histórico,7 João Lúcio de
Azevedo mostrou que, no século XIV, o povo acoimava de modo geral
os nobres de mercadores e regatões, e que a partir dos
descobrimentos o próprio monarca tornou-se, de fato e de direito,
o primeiro comerciante do reino.
A burocracia
estatal, por outro lado, compunha-se, desde muito cedo, de homens
da lei, formados pela Universidade que o rei criou em Lisboa, em
1290, e transferiu a Coimbra em 1308. Esses legistas, como eram
então chamados, provinham em grande parte da pequena burguesia, e
procuraram desde logo impor-se como um estamento distinto. As
Cortes de Coimbra de 1385, ou seja, no mesmo ano da ascensão ao
trono de D. João I, propuseram fossem os homens da lei nela
representados, separadamente da nobreza, do clero e do povo. É
sabido, de resto, que em
Portugal, como mais
tarde no Brasil, o grau de doutor desde sempre equivaleu em prestígio
social a um título nobiliárquico.
As Ordenações
Filipinas capitulavam várias hipóteses normativas em que
mercadores ou bacharéis gozavam de privilégios, em relação ao
comum do povo.
Ao regular as
custas devidas aos Contadores dos feitos e custas, assi da
Corte, como do Reino, levando em conta que "as custas
pessoaes se hão de contar aos litigantes, a que forem julgadas,
mais e menos, segundo a differença das pessoas, qualidade
estado", fixavam-se custas iguais quando a parte era "Cavalleiro,
ou Cidadão, ou agraduado em grão de Bacharel, ou Scudeiro, ou de
outra mór condição; ou for Mercador, e fizer certo, que em
algumas das nossas Alfandegas dizimou8 de alguma mercadoria
sua, pouco, ou muito, aquelle ano, em que o feito se tratou; ou
for Mestre de Náo de Castello davante, ou de Navio, que seja de
carrego de oitenta toneis, e dahi para cima" (Livro Primeiro,
Título XCI, 2). Ou seja, equiparavam-se, para efeitos fiscais no
processo, nobres e plebeus, contanto que estes fossem comerciantes
ou diplomados em universidade.
Da mesma forma, ao
regular a legitimação dos filhos naturais à sucessão de seus
pais, as Ordenações equiparavam implicitamente os mercadores e
bacharéis aos cavaleiros e escudeiros, distinguindo-os todos da
condição inferior dos peões (Livro Quarto, Título XCII, 1).
No terrível Livro
Quinto, que compendiava o conjunto dos delitos e das penas, as
Ordenações relevavam das penas vis – ou seja, as penas de
"açoutes, ou degredo com baraço e pregão" –
"por razão de privilegios, ou linhagem", além dos
fidalgos, os "Juizes, e Vereadores, ou seus filhos"; os
"Procuradores das Villas, ou Concelhos"; os
"Mestres, e Pilotos de Navios de gávea, que andarem em
Navios nossos, ou de cem toneis, ou dahi para riba, ainda que não
sejam nossos"; os "amos, ou collaços dos nossos
Dezembargadores, ou de Cavalleiros de linhagem, ou dahi para
cima"; as "pessôas que provarem, que costumão sempre
ter cavallo de stada em sua estrebaria, e isto posto que peães,
ou filhos de peães sejam", bem como os "Mercadores que
tratarem com cabedal de cem mil réis, e dahi para cima" (Título
CXXXVIII).
A verdade é que,
até o estabelecimento definitivo do princípio da isonomia no século
XIX, aos três estamentos tradicionais foram se agregando em
Portugal várias corporações privilegiadas menores, como as dos
desembargadores, dos universitá-rios, dos militares, dos
moedeiros, dos titulares de rendas reais9 .
O mesmo processo de
multiplicação de privilégios, agora de caráter familiar, veio
a desenvolver-se no Brasil. Em carta endereçada à Corte em 16 de
junho de 1764, queixava-se o Conde da Cunha das dificuldades que
encontrava em formar tropas para a milícia armada:
"Nesta terra e
nas vizinhanças, rara é a casa que não tem privilégio; uma o
tem da Santíssima Trindade, outros da Bula da Cruzada, outros o
de familiares do Santo Ofício, outros de Santo Antonio de Lisboa,
e as maiores famílias o de moedeiros; estes não só livram os
seus filhos do serviço militar, como os seus criados caixeiros,
feitores, roceiros, e os que estão adidos aos seus engenhos de açúcar;
pelo que, se esta multidão de privilégios se não derrogar, ao
menos enquanto não se completarem as tropas, não será possível
haver soldados nelas, que não vierem de Portugal."
Não escapa a
nenhum observador arguto que essa proliferação de estamentos
corporativos e de privilégios familiares, avantajando
exclusivamente as classes abonadas, era a demonstração viva de
que a sociedade metropolitana e colonial se estruturava mais em
função da abastança patrimonial do que da titulação
aristocrática.
Ora, no reino, a
tendência à substituição do perfil estamental das origens pela
moderna sociedade de classes teve seu ritmo singularmente
acelerado pela aventura dos empreendimentos marítimos. Ela
provocou, desde a primeira metade do século XV, grande êxodo
rural e o empobrecimento da nobreza, proprietária de terras. Como
forma de sobrevivência econômica, só restavam à aristocracia o
serviço estipendiado na Corte ou o comércio colonial.
A administração
pombalina, em obediência à política geral de absolutismo monárquico,
reforçou consideravelmente esse movimento tendente à equiparação
do nobre ao mercador. Estabeleceu-se, assim, que nas companhias de
comércio colonial, então criadas, os subscritores de mais de dez
ações receberiam de pleno direito títulos de nobreza.
Foi debaixo desse
espírito mercantil que se desenvolveu toda a colonização do
Brasil. Os grandes domínios rurais, organizados já no século
XVI para a exploração da cana de açúcar, foram as primeiras
empresas capitalistas de agro-indústria exportadora que o mundo
conheceu.
Sobrevindo a
independência, o objetivo maior da política imperial, como
sabido, consistiu em impedir o fracionamento do vasto território.
Para tanto, era indispensável estabelecer um modus vivendi
com a dominação social exercida pelos latifundiários e grandes
comerciantes, entre os quais sobressaiam os traficantes de
escravos.
Até o meado do século,
o ajuste do Poder Público com os interesses dessas classes
dominantes foi precário, sempre entrecortado de rebeliões e
refregas. Escrevendo em 1843, o grande jornalista conservador
Justiniano José da Rocha observou que, se a monarquia era a única
solução à tendência centrífuga que se manifestava em várias
províncias, o trono ainda não contava com nenhum apoio social sólido.
Esse suporte indispensável, no seu entender, não seria dado pelo
proletariado do campo, nem pela turbulenta população urbana,
focos permanentes de revolta. Os verdadeiros alicerces do regime
político seriam os grandes proprietários rurais e seus aliados
no comércio exterior. E arrematava: "Dê o governo a essas
duas classes toda a consideração, vincule-as por todos os modos
à ordem estabelecida, identifique-as com as instituições do país,
e o futuro estará em máxima parte consolidado".10
E efetivamente, o
Estado imperial, para manter a unidade política do território,
foi obrigado a compor-se com a aliança agrário-exportadora
dominante. Lançou mão, com esse fito, da política de amplo
enobrecimento dos seus integrantes, em troca do abandono de
eventuais pretensões caudilhescas de separatismo. Do total dos títulos
nobiliárquicos concedidos durante o segundo reinado, 77% foram de
barão, sabendo-se que o baronato era reservado pelo Imperador,
quase que exclusivamente, aos grandes proprietários rurais e aos
comerciantes de maior cabedal.
O que se criou, então,
foi uma estrutura social fundamentalmente privatista, na qual os
instrumentos públicos de coação, normalmente monopolizados pelo
Estado, pertenciam de fato às classes dominantes. O paradoxo, porém,
é que o governo imperial manteve uma pressão constante contra o
instituto em que se fundava toda a economia de produção agrícola
da época: a escravidão. É sabido que nos principais episódios
que precederam o 13 de maio – a criminalização do tráfico
negreiro pela Lei Eusébio de Queiroz em 1850, a aprovação da
Lei do Ventre Livre em 1871 e a da Lei dos Sexagenários em 1885
– o governo central, sempre apoiado e até mesmo impulsionado
pelo Imperador, teve que medir forças com o complexo agrário-mercantil,
sob o qual viviam 90% da população nacional à época. Em 1871,
como assinalam os historiadores, o Gabinete Rio Branco só
conseguiu a libertação dos nascituros porque a Câmara era
composta, em maioria absoluta, de funcionários públicos e
magistrados.
Foi, de resto, essa
oposição sistemática aos interesses escravistas que liquidou a
monarquia entre nós; prova cabal de que o aparelho do Estado,
contrariamente ao primeiro postulado da análise política
marxista, não atuou como instrumento de coação oficial das
classes dominantes, mas antes contra elas.
A história do
reconhecimento e da defesa dos direitos humanos seguiu entre nós,
portanto, um caminho bem diverso daquele trilhado na Europa
Ocidental e na América do Norte. Lá, as liberdades privadas e a
igualdade perante a lei foram conquistadas pela burguesia
ascendente contra os privilégios estamentais e a tirania dos
reis. Aqui, à falta de uma sólida estrutura estamental e com as
classes proprietárias dominando, desde os primórdios, a
atividade econômica, foi o Estado que atuou – ainda que
dificultosamente, é verdade – em favor das liberdades
individuais. Por isso mesmo, enquanto na Europa Ocidental e nos
Estados Unidos as declarações de direitos sancionaram a sucessão
histórica já realizada de um grupo dirigente por outro, no
Brasil, como de resto em toda a América Latina, os direitos
individuais declarados nas Constituições representaram, tão só,
um projeto de mudança futura na organização da cidadania. Elas
tiveram, sob esse aspecto, uma função mais pedagógica do que
efetivamente regulatória. O esmagamento das liberdades, por
iniciativa e sob a direção prestante do aparelho estatal, só
veio a ocorrer no curso do século XX.
É nessa
perspectiva que cobra sentido o juízo tanto vezes citado de Sérgio
Buarque de Holanda, de que a democracia, entre nós, "sempre
foi um lamentável mal-entendido"11 . Efetivamente, as
classes dominantes imaginaram que o reconhecimento constitucional
dos direitos e liberdades individuais teria um significado
meramente retórico ou ornamental, sem nenhum efeito prático
relevante. Não lhes ocorreu que a proclamação solene dessas
franquias pudesse produzir na consciência popular, a longo prazo,
aquele resultado que os lavradores de Paraíba do Sul, numa
representação à Câmara do Império, declaravam cruamente como
inevitável com a entrada em vigor da Lei do Ventre Livre: "a
abertura da idéia do direito na alma do escravo".12
Vivemos hoje, em
matéria de direitos sociais, mais um episódio desse "lamentável
mal-entendido". Ao cabo de duas décadas de regime militar,
firmou-se majoritariamente a convicção de que a causa dos nossos
males seria um excesso de estatismo.
A idéia, a bem
dizer, nunca foi autóctone: importamo-la, com falso rótulo científico,
dos países anglo-saxônicos. Segundo anunciaram os seus arautos,
a boa nova deste fim de milênio, tempo tradicionalmente
predestinado às grandes revelações, reduz-se a uma só
mensagem: fora do mercado não há salvação. O primeiro
mandamento desse fundamentalismo mercadológico13 é,
portanto, bem simples: derrubar o Estado, vestígio arcaico da era
obscurantista, e confiar a execução de todas as políticas
sociais à reconhecida eficiência da empresa privada. Com a
administração desse viático, as multidões consumidas pela
fome, a ignorância e a doença, tornar-se-iam, em pouco tempo, tão
robustas e opulentas quanto os povos do chamado "Primeiro
Mundo".
Não é o caso de
epilogar aqui sobre a ruína econômica e a devastação social
que esse contrabando ideológico tem provocado em nosso País, e
cujas seqüelas não poderão ser curadas num futuro próximo. O
que importa sublinhar é o fato de que, ao contrário do sucedido
na América do Norte, a colonização no Brasil sempre foi uma
empresa mercantil sustentada pelo Estado. Em momento algum a
sociedade organizou-se comunitariamente. Ao contrário, desde cedo
foi ela dividida entre senhores e escravos, ou entre assalariados
e patrões, aqueles ligados a estes como os antigos servos
medievais vinculavam-se à gleba de terra cultivada. Sob esses
aspecto, constituimos um país singular, em que a sociedade foi
por assim dizer formada pelo Estado, não o Estado pela sociedade.
Toda a proteção
trabalhista e previdenciária, até agora existente, emanou dos
Poderes Públicos, não foi uma conquista das massas carentes e
desorganizadas. Por isso mesmo, o emasculamento do Estado
nacional, pela ação conjugada do endividamento sem controle, das
privatizações abusivas e da leviana desregulação da atividade
empresarial, ameaça liquidar na raíz os poucos direitos sociais
até agora reconhecidos. Não se esqueça que o direito do
trabalho e a previdência social foram um simples complemento
social à política de industrialização, encetada no País a
partir de 1930. Com o desmonte do Estado industrial brasileiro, no
quadro do capitalismo especulativo globalizante, não é de
admirar que se esteja assistindo à rápida liquidação dessas
instituições de proteção ao trabalhador.
É difícil negar
que a idéia de defesa da esfera privada contra o Estado invasor
tem sido radicalmente estranha às nossas tradições e à nossa
mentalidade. As classes proprietárias sempre dependeram do Poder
Público para manter suas rendas de si-tuação, e o escasso
alento recebido pelos que nada possuem, em sua resistência à
opressão de senhores e patrões, só lhes adveio das poucas
intervenções que o Estado fez para coartar os abusos mais
acusados.
É diante dessa
realidade de aguda e constante divisão social entre proprietários
e não-proprietários, com a quase completa dependência destes à
intervenção estatal nas relações privadas para a defesa de
seus direitos, que se deve repensar a delicada questão do esforço
educacional em pról do igual respeito à dignidade humana neste
País. Quem fala em educação – que não se confunde com a
simples instrução nem, menos ainda, com o mecânico treinamento
– pensa necessariamente na formação de consciências. Os
direitos humanos concretizam, sob a forma de sólidos costumes, os
valores éticos vividos pela consciência coletiva.
Ora, desde a antigüidade
clássica, o relevo dado à importância dos costumes na vida
social é uma constante da filosofia moral e política. Aristóteles
chegou a afirmar que as normas derivadas dos costumes têm mais
autoridade que as leis escritas, e dizem respeito a matérias mais
importantes.14 Especificamente no que concerne à
organização da pólis (a politéia), sustentou ele
que cada sistema educacional deve ser adaptado ao respectivo
regime político, pois "o espírito democrático promove a
democracia, assim
como o espírito oligárquico, a oligarquia". Acrescentou,
enfim, que, tendo em vista a unidade de fins do Estado, a educação
haveria de ser, necessariamente, a mesma para todos e dirigida
pelo Estado15 . Efetivamente, no apogeu da civilização
helenística, a educação para a cidadania fazia parte da
organização política, como matéria de superior interesse público.
Não se pode, pois,
adotar nessa matéria a dicotomia entre leis e costumes, e
sustentar, com Montesquieu16 , que os costumes de um povo não
se mudam por leis, mas unicamente pela educação. Como bem
percebeu o nosso Machado de Assis com fina ironia, essa tese,
transposta para o meio brasileiro, consubstancia a "teoria do
medalhão": enquanto se aguarda a mudança necessária dos
costumes sociais, não se deve mexer no ordenamento legal; aos que
quiserem vencer na vida, aconselha-se regular suas vidas pela
bitola dos costumes tradicionais.
É claro que tanto
a lei quanto a educação contribuem para a formação dos
costumes sociais. Mas a eficiente contribuição de cada um desses
elementos, na consecução do resultado almejado, varia de povo a
povo. Entre nós, a iniciativa para uma reforma dos costumes não
pode provir da ação comunitária privada, pois a nossa sociedade
sempre foi inorgânica, e a massa do povo, desde os primórdios da
colonização, submeteu-se à dominação das classes possuidoras.
Faltou-nos, constantemente, aquele "nexo moral" de que
falava Caio Prado Jr., isto é, "o conjunto de forças
de aglutinação, complexo de relações humanas que mantêm
ligados e unidos os indivíduos de uma sociedade e os fundem num
todo coeso e compacto"17 . Essa força de coesão, desde
a época colonial, emanou do Estado e só dele.
É indispensável,
portanto, que se cogite da indispensável reforma das instituições
políticas, concomitantemente à reforma dos costumes. As duas ações,
aliás, só serão eficazes quando estreitamente coordenadas e
dirigidas ao mesmo objetivo. E esse objetivo não há de ser
outro, senão a eliminação da oligarquia política e econômica,
que moldou a sociedade brasileira desde os primeiros tempos
coloniais.
Aqui, como alhures, agora e sempre
mais acusadamente no futuro, fora da democracia não há salvação.
E democracia, hoje, só pode ser entendida como o regime da
participação institucional do povo no governo, combinada com o
respeito crescente aos direitos humanos.
_____________
* Em
homenagem ao Professor Goffredo da Silva Telles Jr., mestre de
brasilidade.
** Doutor Honoris Causa
da Universidade de Coimbra, Doutor em Direito da Universidade de
Paris e Professor titular da Faculdade de Direito da Universidade
de São Paulo.
1. L’Ancien
régime et la révolution, Paris: Gallimard, 1952, p. 286.
2. Cf., entre
outros, Georges Dumézil, Mythe et épopée, Paris: 1968,
v. 1, e L’idéologie tripartie des indo-européens,
Bruxelas, 1958.
3. Cf. o seu ensaio Da
existência ou não existência do feudalismo em Portugal,
publicado originalmente em 1875-1877.
4. Cf., sobretudo, os
trabalhos de José Mattoso, especialmente Identificação de um
país: ensaio sobre as origens de Portugal, 1096-1325, v. 1
- Oposição, 5. ed. (referência/editorial estampa), 1995, p.
51 ss., 81 ss., 101 ss.
5. Como salientou José
Mattoso (op. cit., p. 347), "a autonomia municipal permite
aos mesteirais, mercadores e proprietários rurais exercer um
papel próprio e efectivo no desenvolvimento da economia de produção,
desenvolvimento esse que constitui o principal factor de desagregação
do regime senhorial, que favorece o desenvolvimento precoce da
administração régia e a criação de uma burocracia estatal,
que fornece ao Estado os seus agentes mais fiéis e eficazes, que
garante a participação política do terceiro estado nas
decisões respeitantes ao conjunto da Nação".
6. "O que
sobressai na linguagem usada para designar os membros da nobreza
senhorial", observa ainda o mesmo historiador (op. cit., p.
130), "não é tanto, até ao fim do século XIII, o seu carácter
militar, mas a capacidade de gerir, administrar e comandar, um
pouco à semelhança do que haviam feito alguns séculos antes os
antigos grandes proprietários da época imperial, senhores das villae
ou domínios territoriais. A abundância de bens fundiários
constitui, portanto, condição fundamental. Abstraindo da
idelogia subjacente é, em termos reais, a base material do poder.
Sem ela não se pode sustentar nem a força das armas, nem o poder
de julgar, nem a capacidade para recrutar um séquito, nem as
posses suficientes para oferecer dons ou para estabelecer alianças
prestigiantes, nem o vestuário e os outros sinais exteriores
requeridos para frequentar o palácio do rei".
7. Épocas de
Portugal económico, Lisboa: Livraria Clássica Editora, 4.
ed., p. 82 ss., 110 e 119.
8. Isto é, pagou a
taxa de um décimo do valor da mercadoria transacionada.
9. Cf. António Manuel
Hespanha, As vésperas do Leviathan: instituições e poder político,
Portugal – Séc. XVII, Coimbra: Livraria Almedina, 1994, p.
321 ss.
10. Citado por José
Murilo de Carvalho, Teatro de sombras, Rio de Janeiro:
Editora UFRJ/Relume Dumará, p. 234.
11. Raízes do
Brasil, 5. ed., Rio de Janeiro: Livraria José Olympio
Editora, p. 119.
12. Apud José Murilo
de Carvalho, op. cit.
13. É o termo usado
por George Soros, em sua crítica do capitalismo atual: The
crisis of global capitalism, Nova York: Public Affairs, 1998.
14. Política,
III, 1287 b.
15. idem, ibidem, VIII,
1337 a, 20 ss.
16. O espírito das
leis, livro XIX.
17. Formação do
Brasil contemporâneo, 16. ed., São Paulo: Brasiliense, p.
341.
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