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DIREITOS HUMANOS NO BRASIL:

O PASSADO E O FUTURO* 

Fábio Konder Comparato**

 

O eixo em torno do qual se desenvolve a história dos direitos humanos é a idéia de que os homens são essencialmente iguais, em sua comum dignidade de pessoas, isto é, como os únicos seres no mundo capazes de amar, descobrir a verdade e criar a beleza.

O primeiro reconhecimento normativo da igualdade essencial da condição humana remonta ao final do século XVIII, com a proclamação das liberdades indivi-duais e da igualdade perante a lei, nos Estados Unidos e na França revolucionária.

A partir do século XIX, com o reconhecimento de que todos têm direito a condições de trabalho dignas, à fruição dos serviços públicos de caráter social, bem como à garantia previdenciária contra os principais riscos da vida em sociedade, a história dos direitos humanos passou a desenvolver-se em função do princípio fundamental da solidariedade. A exigência de uma organização solidária da vida em so-ciedade estendeu-se, na segunda metade do século XX, do plano interno para o internacional, com a afirmação dos direitos dos povos à existência, à autodeterminação, à democracia, à paz e ao desenvolvimento. Chega-se agora, no limiar do terceiro milênio da era cristã, à dimensão universal da dignidade humana, com o reconhecimento, por várias convenções internacionais, dos direitos fundamentais da humanidade, tais como o de proteção ao equilíbrio ecológico, o de preservação dos monumentos de valor estético ou histórico, o de exploração comunitária das riquezas minerais do leito marinho, umas e outros considerados patrimônio mundial.

Nessa perspectiva exaltante de unificação do mundo em função dos valores supremos da liberdade, da igualdade e da solidariedade, é de se perguntar em que estado se encontra o nosso País e qual a perspectiva que nos abre o futuro. Conti-nuaremos a acumular atrasos, ou saberemos defender de modo sempre mais efetivo a dignidade humana de todos os que vivem neste vasto território?

Comecemos por considerar o fato notório de que o Brasil detém, já há algum tempo, o sinistro galardão de país onde impera a mais acusada desigualdade sócio-econômica do mundo. Para que possamos organizar, com alguma probabilidade de êxito, a terapêutica adequada, é indispensável compreender a etiologia profunda do mal.

A origem dessa profunda divisão da sociedade brasileira entre ricos e pobres, entre proprietários que mandam e escravos ou assalariados que obedecem, encontra-se, a meu juízo, na estrutura própria da sociedade portuguesa à época da colonização. Como observou Tocqueville argutamente, "é nas colônias que se pode melhor julgar da fisionomia do governo da metrópole, porque é aí que de ordinário todos os traços que a caracterizam se encontram ampliados e tornam-se mais visíveis"1 .

Portugal foi de fato, juntamente com a Itália setentrional e central, a região da Europa onde o feudalismo mais cedo deixou-se suplantar pela organização sócio-econômica capitalista. Por isso mesmo, foi nessas regiões que a burguesia mais rapidamente ascendeu ao poder, provocando a substituição dos estamentos tradicionais pela moderna sociedade de classes.

Os povos de origem indo-européia, já se salientou2 , compuseram-se, basicamente, de três ordens ou estados (status, Stände, États), isto é, de grupos sociais dotados de um estatuto jurídico próprio, ligado à condição pessoal de seus integrantes: a nobreza, o clero e o povo. Os dois primeiros eram titulares de privilégios hereditários. O terceiro tinha como única vantagem própria o status libertatis, isto é, o fato de que os seus componentes não se confundiam com a multidão dos servos de todo o gênero, ligados à exploração da terra.

Na península ibérica e, especialmente, em Portugal, essa organização estamental da sociedade foi profundamente perturbada, já no século VIII, com a invasão sarracena e a instauração de uma nova civilização. Tal fato contribuiu decisivamente para que o sistema feudal, dominante à época na Europa nórdica e central, abortasse em quase toda a região ibérica.

É velha de mais de um século a polêmica em torno da tese defendida por Herculano, de que Portugal jamais conheceu um feudalismo autêntico3 . A historiografia contemporânea considera essa interpretação um tanto simplista, assinalando que não se há de confundir o regime feudal propriamente dito com o sistema de dominação senhorial4 . Naquele, havia uma relação bilateral voluntária de proteção e vassalagem entre homens livres e iguais; nesta, a submissão de servos à dominação de proprietários das terras, às quais os cultivadores, com suas famílias e bens, se prendiam por vínculo real.

Ora, embora admitida a justeza dessa distinção conceitual, é impossível deixar de reconhecer que a duradoura ocupação da península ibérica pelos mouros e as subsequentes guerras da reconquista prejudicaram não só o desenvolvimento normal das instituições feudais, como também a continuidade do exercício dos poderes de dominação servil, ligada à posse da terra. No primeiro caso, pela acentuação precoce da supremacia do poder real sobre as prerrogativas estamentais da nobreza e do clero; no segundo, de um lado, pela antecipada eclosão das liberdades urbanas, com a multiplicação dos forais outorgados aos burgos livres (concelhos)5  e a rápida ascensão social dos que vieram ao depois a ser chamados burgueses; de outro lado, pelo predomínio da riqueza material como fonte de poder, relativamente à titulação nobiliárquica6 .

No tocante ao precoce florescimento das cidades na península, importa lembrar o caráter marcadamente urbano que os árabes desde cedo imprimiram à organização social em terras ibéricas, com a multiplicação da mão-de-obra assalariada e do trabalho artesanal, a especialização mercantil de cambistas, almocreves e regatões e a aglomeração nas cidades de toda sorte de pobres, pedintes e marginais. Em suma, o estabelecimento antecipado da moderna sociedade de classes, em que pessoas livres e iguais em direitos diferenciam-se fundamentalmente pela sua situação patrimonial.

Tudo isso parece explicar o fato notável de que foi em Portugal que eclodiu a primeira revolução burguesa no Ocidente. O movimento político que levou ao trono a dinastia de Aviz, em 1385, foi liderado pelo povo dos mesteres e mercadores citadinos. É verdade, aliás, que o espírito mercantil já vinha conquistando largas camadas da nobreza. Em conhecido estudo histórico,7  João Lúcio de Azevedo mostrou que, no século XIV, o povo acoimava de modo geral os nobres de mercadores e regatões, e que a partir dos descobrimentos o próprio monarca tornou-se, de fato e de direito, o primeiro comerciante do reino.



A burocracia estatal, por outro lado, compunha-se, desde muito cedo, de homens da lei, formados pela Universidade que o rei criou em Lisboa, em 1290, e transferiu a Coimbra em 1308. Esses legistas, como eram então chamados, provinham em grande parte da pequena burguesia, e procuraram desde logo impor-se como um estamento distinto. As Cortes de Coimbra de 1385, ou seja, no mesmo ano da ascensão ao trono de D. João I, propuseram fossem os homens da lei nela representados, separadamente da nobreza, do clero e do povo. É sabido, de resto, que em

Portugal, como mais tarde no Brasil, o grau de doutor desde sempre equivaleu em prestígio social a um título nobiliárquico.

As Ordenações Filipinas capitulavam várias hipóteses normativas em que mercadores ou bacharéis gozavam de privilégios, em relação ao comum do povo.

Ao regular as custas devidas aos Contadores dos feitos e custas, assi da Corte, como do Reino, levando em conta que "as custas pessoaes se hão de contar aos litigantes, a que forem julgadas, mais e menos, segundo a differença das pessoas, qualidade estado", fixavam-se custas iguais quando a parte era "Cavalleiro, ou Cidadão, ou agraduado em grão de Bacharel, ou Scudeiro, ou de outra mór condição; ou for Mercador, e fizer certo, que em algumas das nossas Alfandegas dizimou8  de alguma mercadoria sua, pouco, ou muito, aquelle ano, em que o feito se tratou; ou for Mestre de Náo de Castello davante, ou de Navio, que seja de carrego de oitenta toneis, e dahi para cima" (Livro Primeiro, Título XCI, 2). Ou seja, equiparavam-se, para efeitos fiscais no processo, nobres e plebeus, contanto que estes fossem comerciantes ou diplomados em universidade.

Da mesma forma, ao regular a legitimação dos filhos naturais à sucessão de seus pais, as Ordenações equiparavam implicitamente os mercadores e bacharéis aos cavaleiros e escudeiros, distinguindo-os todos da condição inferior dos peões (Livro Quarto, Título XCII, 1).

No terrível Livro Quinto, que compendiava o conjunto dos delitos e das penas, as Ordenações relevavam das penas vis – ou seja, as penas de "açoutes, ou degredo com baraço e pregão" – "por razão de privilegios, ou linhagem", além dos fidalgos, os "Juizes, e Vereadores, ou seus filhos"; os "Procuradores das Villas, ou Concelhos"; os "Mestres, e Pilotos de Navios de gávea, que andarem em Navios nossos, ou de cem toneis, ou dahi para riba, ainda que não sejam nossos"; os "amos, ou collaços dos nossos Dezembargadores, ou de Cavalleiros de linhagem, ou dahi para cima"; as "pessôas que provarem, que costumão sempre ter cavallo de stada em sua estrebaria, e isto posto que peães, ou filhos de peães sejam", bem como os "Mercadores que tratarem com cabedal de cem mil réis, e dahi para cima" (Título CXXXVIII).

A verdade é que, até o estabelecimento definitivo do princípio da isonomia no século XIX, aos três estamentos tradicionais foram se agregando em Portugal várias corporações privilegiadas menores, como as dos desembargadores, dos universitá-rios, dos militares, dos moedeiros, dos titulares de rendas reais9 .

O mesmo processo de multiplicação de privilégios, agora de caráter familiar, veio a desenvolver-se no Brasil. Em carta endereçada à Corte em 16 de junho de 1764, queixava-se o Conde da Cunha das dificuldades que encontrava em formar tropas para a milícia armada:

"Nesta terra e nas vizinhanças, rara é a casa que não tem privilégio; uma o tem da Santíssima Trindade, outros da Bula da Cruzada, outros o de familiares do Santo Ofício, outros de Santo Antonio de Lisboa, e as maiores famílias o de moedeiros; estes não só livram os seus filhos do serviço militar, como os seus criados caixeiros, feitores, roceiros, e os que estão adidos aos seus engenhos de açúcar; pelo que, se esta multidão de privilégios se não derrogar, ao menos enquanto não se completarem as tropas, não será possível haver soldados nelas, que não vierem de Portugal."

Não escapa a nenhum observador arguto que essa proliferação de estamentos corporativos e de privilégios familiares, avantajando exclusivamente as classes abonadas, era a demonstração viva de que a sociedade metropolitana e colonial se estruturava mais em função da abastança patrimonial do que da titulação aristocrática.

Ora, no reino, a tendência à substituição do perfil estamental das origens pela moderna sociedade de classes teve seu ritmo singularmente acelerado pela aventura dos empreendimentos marítimos. Ela provocou, desde a primeira metade do século XV, grande êxodo rural e o empobrecimento da nobreza, proprietária de terras. Como forma de sobrevivência econômica, só restavam à aristocracia o serviço estipendiado na Corte ou o comércio colonial.

A administração pombalina, em obediência à política geral de absolutismo monárquico, reforçou consideravelmente esse movimento tendente à equiparação do nobre ao mercador. Estabeleceu-se, assim, que nas companhias de comércio colonial, então criadas, os subscritores de mais de dez ações receberiam de pleno direito títulos de nobreza.

Foi debaixo desse espírito mercantil que se desenvolveu toda a colonização do Brasil. Os grandes domínios rurais, organizados já no século XVI para a exploração da cana de açúcar, foram as primeiras empresas capitalistas de agro-indústria exportadora que o mundo conheceu.

Sobrevindo a independência, o objetivo maior da política imperial, como sabido, consistiu em impedir o fracionamento do vasto território. Para tanto, era indispensável estabelecer um modus vivendi com a dominação social exercida pelos latifundiários e grandes comerciantes, entre os quais sobressaiam os traficantes de escravos.

Até o meado do século, o ajuste do Poder Público com os interesses dessas classes dominantes foi precário, sempre entrecortado de rebeliões e refregas. Escrevendo em 1843, o grande jornalista conservador Justiniano José da Rocha observou que, se a monarquia era a única solução à tendência centrífuga que se manifestava em várias províncias, o trono ainda não contava com nenhum apoio social sólido. Esse suporte indispensável, no seu entender, não seria dado pelo proletariado do campo, nem pela turbulenta população urbana, focos permanentes de revolta. Os verdadeiros alicerces do regime político seriam os grandes proprietários rurais e seus aliados no comércio exterior. E arrematava: "Dê o governo a essas duas classes toda a consideração, vincule-as por todos os modos à ordem estabelecida, identifique-as com as instituições do país, e o futuro estará em máxima parte consolidado".10 

E efetivamente, o Estado imperial, para manter a unidade política do território, foi obrigado a compor-se com a aliança agrário-exportadora dominante. Lançou mão, com esse fito, da política de amplo enobrecimento dos seus integrantes, em troca do abandono de eventuais pretensões caudilhescas de separatismo. Do total dos títulos nobiliárquicos concedidos durante o segundo reinado, 77% foram de barão, sabendo-se que o baronato era reservado pelo Imperador, quase que exclusivamente, aos grandes proprietários rurais e aos comerciantes de maior cabedal.



O que se criou, então, foi uma estrutura social fundamentalmente privatista, na qual os instrumentos públicos de coação, normalmente monopolizados pelo Estado, pertenciam de fato às classes dominantes. O paradoxo, porém, é que o governo imperial manteve uma pressão constante contra o instituto em que se fundava toda a economia de produção agrícola da época: a escravidão. É sabido que nos principais episódios que precederam o 13 de maio – a criminalização do tráfico negreiro pela Lei Eusébio de Queiroz em 1850, a aprovação da Lei do Ventre Livre em 1871 e a da Lei dos Sexagenários em 1885 – o governo central, sempre apoiado e até mesmo impulsionado pelo Imperador, teve que medir forças com o complexo agrário-mercantil, sob o qual viviam 90% da população nacional à época. Em 1871, como assinalam os historiadores, o Gabinete Rio Branco só conseguiu a libertação dos nascituros porque a Câmara era composta, em maioria absoluta, de funcionários públicos e magistrados.

Foi, de resto, essa oposição sistemática aos interesses escravistas que liquidou a monarquia entre nós; prova cabal de que o aparelho do Estado, contrariamente ao primeiro postulado da análise política marxista, não atuou como instrumento de coação oficial das classes dominantes, mas antes contra elas.

A história do reconhecimento e da defesa dos direitos humanos seguiu entre nós, portanto, um caminho bem diverso daquele trilhado na Europa Ocidental e na América do Norte. Lá, as liberdades privadas e a  igualdade perante a lei foram conquistadas pela burguesia ascendente contra os privilégios estamentais e a tirania dos reis. Aqui, à falta de uma sólida estrutura estamental e com as classes proprietárias dominando, desde os primórdios, a atividade econômica, foi o Estado que atuou – ainda que dificultosamente, é verdade – em favor das liberdades individuais. Por isso mesmo, enquanto na Europa Ocidental e nos Estados Unidos as declarações de direitos sancionaram a sucessão histórica já realizada de um grupo dirigente por outro, no Brasil, como de resto em toda a América Latina, os direitos individuais declarados nas Constituições representaram, tão só, um projeto de mudança futura na organização da cidadania. Elas tiveram, sob esse aspecto, uma função mais pedagógica do que efetivamente regulatória. O esmagamento das liberdades, por iniciativa e sob a direção prestante do aparelho estatal, só veio a ocorrer no curso do século XX.

É nessa perspectiva que cobra sentido o juízo tanto vezes citado de Sérgio Buarque de Holanda, de que a democracia, entre nós, "sempre foi um lamentável mal-entendido"11 . Efetivamente, as classes dominantes imaginaram que o reconhecimento constitucional dos direitos e liberdades individuais teria um significado meramente retórico ou ornamental, sem nenhum efeito prático relevante. Não lhes ocorreu que a proclamação solene dessas franquias pudesse produzir na consciência popular, a longo prazo, aquele resultado que os lavradores de Paraíba do Sul, numa representação à Câmara do Império, declaravam cruamente como  inevitável com a entrada em vigor da Lei do Ventre Livre: "a abertura da idéia do direito na alma do escravo".12 

Vivemos hoje, em matéria de direitos sociais, mais um episódio desse "lamentável mal-entendido". Ao cabo de duas décadas de regime militar, firmou-se majoritariamente a convicção de que a causa dos nossos males seria um excesso de estatismo.

A idéia, a bem dizer, nunca foi autóctone: importamo-la, com falso rótulo científico, dos países anglo-saxônicos. Segundo anunciaram os seus arautos, a boa nova deste fim de milênio, tempo tradicionalmente predestinado às grandes revelações, reduz-se a uma só mensagem: fora do mercado não há salvação. O primeiro mandamento desse fundamentalismo mercadológico13  é, portanto, bem simples: derrubar o Estado, vestígio arcaico da era obscurantista, e confiar a execução de todas as políticas sociais à reconhecida eficiência da empresa privada. Com a administração desse viático, as multidões consumidas pela fome, a ignorância e a doença, tornar-se-iam, em pouco tempo, tão robustas e opulentas quanto os povos do chamado "Primeiro Mundo".

Não é o caso de epilogar aqui sobre a ruína econômica e a devastação social que esse contrabando ideológico tem provocado em nosso País, e cujas seqüelas não poderão ser curadas num futuro próximo. O que importa sublinhar é o fato de que, ao contrário do sucedido na América do Norte, a colonização no Brasil sempre foi uma empresa mercantil sustentada pelo Estado. Em momento algum a sociedade organizou-se comunitariamente. Ao contrário, desde cedo foi ela dividida entre senhores e escravos, ou entre assalariados e patrões, aqueles ligados a estes como os antigos servos medievais vinculavam-se à gleba de terra cultivada. Sob esses aspecto, constituimos um país singular, em que a sociedade foi por assim dizer formada pelo Estado, não o Estado pela sociedade.

Toda a proteção trabalhista e previdenciária, até agora existente, emanou dos Poderes Públicos, não foi uma conquista das massas carentes e desorganizadas. Por isso mesmo, o emasculamento do Estado nacional, pela ação conjugada do endividamento sem controle, das privatizações abusivas e da leviana desregulação da atividade empresarial, ameaça liquidar na raíz os poucos direitos sociais até agora reconhecidos. Não se esqueça que o direito do trabalho e a previdência social foram um simples complemento social à política de industrialização, encetada no País a partir de 1930. Com o desmonte do Estado industrial brasileiro, no quadro do capitalismo especulativo globalizante, não é de admirar que se esteja assistindo à rápida liquidação dessas instituições de proteção ao trabalhador.

É difícil negar que a idéia de defesa da esfera privada contra o Estado invasor tem sido radicalmente estranha às nossas tradições e à nossa mentalidade. As classes proprietárias sempre dependeram do Poder Público para manter suas rendas de si-tuação, e o escasso alento recebido pelos que nada possuem, em sua resistência à opressão de senhores e patrões, só lhes adveio das poucas intervenções que o Estado fez para coartar os abusos mais acusados.

É diante dessa realidade de aguda e constante divisão social entre proprietários e não-proprietários, com a quase completa dependência destes à intervenção estatal nas relações privadas para a defesa de seus direitos, que se deve repensar a delicada questão do esforço educacional em pról do igual respeito à dignidade humana neste País. Quem fala em educação – que não se confunde com a simples instrução nem, menos ainda, com o mecânico treinamento – pensa necessariamente na formação de consciências. Os direitos humanos concretizam, sob a forma de sólidos costumes, os valores éticos vividos pela consciência coletiva.

Ora, desde a antigüidade clássica, o relevo dado à importância dos costumes na vida social é uma constante da filosofia moral e política. Aristóteles chegou a afirmar que as normas derivadas dos costumes têm mais autoridade que as leis escritas, e dizem respeito a matérias mais importantes.14   Especificamente no que concerne à organização da pólis (a politéia), sustentou ele que cada sistema educacional deve ser adaptado ao respectivo regime político, pois "o espírito democrático promove a

democracia, assim como o espírito oligárquico, a oligarquia". Acrescentou, enfim, que, tendo em vista a unidade de fins do Estado, a educação haveria de ser, necessariamente, a mesma para todos e dirigida pelo Estado15 . Efetivamente, no apogeu da civilização helenística, a educação para a cidadania fazia parte da organização política, como matéria de superior interesse público.

Não se pode, pois, adotar nessa matéria a dicotomia entre leis e costumes, e sustentar, com Montesquieu16 , que os costumes de um povo não se mudam por leis, mas unicamente pela educação. Como bem percebeu o nosso Machado de Assis com fina ironia, essa tese, transposta para o meio brasileiro, consubstancia a "teoria do medalhão": enquanto se aguarda a mudança necessária dos costumes sociais, não se deve mexer no ordenamento legal; aos que quiserem vencer na vida, aconselha-se regular suas vidas pela bitola dos costumes tradicionais.

É claro que tanto a lei quanto a educação contribuem para a formação dos costumes sociais. Mas a eficiente contribuição de cada um desses elementos, na consecução do resultado almejado, varia de povo a povo. Entre nós, a iniciativa para uma reforma dos costumes não pode provir da ação comunitária privada, pois a nossa sociedade sempre foi inorgânica, e a massa do povo, desde os primórdios da colonização, submeteu-se à dominação das classes possuidoras. Faltou-nos, constantemente, aquele "nexo moral" de que falava Caio Prado Jr., isto é, "o conjunto de forças de aglutinação, complexo de relações humanas que mantêm ligados e unidos os indivíduos de uma sociedade e os fundem num todo coeso e compacto"17 . Essa força de coesão, desde  a época colonial, emanou do Estado e só dele.

É indispensável, portanto, que se cogite da indispensável reforma das instituições políticas, concomitantemente à reforma dos costumes. As duas ações, aliás, só serão eficazes quando estreitamente coordenadas e dirigidas ao mesmo objetivo. E esse objetivo não há de ser outro, senão a eliminação da oligarquia política e econômica, que moldou a sociedade brasileira desde os primeiros tempos coloniais.

Aqui, como alhures, agora e sempre mais acusadamente no futuro, fora da democracia não há salvação. E democracia, hoje, só pode ser entendida como o regime da participação institucional do povo no governo, combinada com o respeito crescente aos direitos humanos.

_____________

* Em homenagem ao Professor Goffredo da Silva Telles Jr., mestre de brasilidade.

** Doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra, Doutor em Direito da Universidade de Paris e Professor titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

1. L’Ancien régime et la révolution, Paris: Gallimard, 1952, p. 286.

2. Cf., entre  outros, Georges Dumézil, Mythe et épopée, Paris: 1968, v. 1, e L’idéologie tripartie des indo-européens, Bruxelas, 1958.

3. Cf. o seu ensaio Da existência ou não existência do feudalismo em Portugal, publicado originalmente em 1875-1877.

4. Cf., sobretudo, os trabalhos de José Mattoso, especialmente Identificação de um país: ensaio sobre as origens de Portugal, 1096-1325, v. 1 - Oposição, 5. ed. (referência/editorial estampa), 1995, p. 51 ss., 81 ss., 101 ss.

5. Como salientou José Mattoso (op. cit., p. 347), "a autonomia municipal permite aos mesteirais, mercadores e proprietários rurais exercer um papel próprio e efectivo no desenvolvimento da economia de produção, desenvolvimento esse que constitui o principal factor de desagregação do regime senhorial, que favorece o desenvolvimento precoce da administração régia e a criação de uma burocracia estatal, que fornece ao Estado os seus agentes mais fiéis e eficazes, que garante a participação política do terceiro estado nas decisões respeitantes ao conjunto da Nação".

6. "O que sobressai na linguagem usada para designar os membros da nobreza senhorial", observa ainda o mesmo historiador (op. cit., p. 130), "não é tanto, até ao fim do século XIII, o seu carácter militar, mas a capacidade de gerir, administrar e comandar, um pouco à semelhança do que haviam feito alguns séculos antes os  antigos grandes proprietários da época imperial, senhores das villae ou domínios territoriais. A abundância de bens fundiários constitui, portanto, condição fundamental. Abstraindo da idelogia subjacente é, em termos reais, a base material do poder. Sem ela não se pode sustentar nem a força das armas, nem o poder de julgar, nem a capacidade para recrutar um séquito, nem as posses suficientes para oferecer dons ou para estabelecer alianças prestigiantes, nem o vestuário e os outros sinais exteriores requeridos para frequentar o palácio do rei".

7. Épocas de Portugal económico, Lisboa: Livraria Clássica Editora, 4. ed., p. 82 ss., 110 e 119.

8. Isto é, pagou a taxa de um décimo do valor da mercadoria transacionada.

9. Cf. António Manuel Hespanha, As vésperas do Leviathan: instituições e poder político, Portugal – Séc. XVII, Coimbra: Livraria Almedina, 1994, p. 321 ss.

10. Citado por José Murilo de Carvalho, Teatro de sombras, Rio de Janeiro: Editora UFRJ/Relume Dumará, p. 234.

11. Raízes do Brasil, 5. ed., Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, p. 119.

12. Apud José Murilo de Carvalho, op. cit.

13. É o termo usado por George Soros, em sua crítica do capitalismo atual: The crisis of global capitalism, Nova York: Public Affairs, 1998.

14. Política, III, 1287 b.

15. idem, ibidem, VIII, 1337 a, 20 ss.

16. O espírito das leis, livro XIX.

17. Formação do Brasil contemporâneo, 16. ed., São Paulo: Brasiliense, p. 341.

 

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