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A Emancipação do Ser Humano como sujeito do Direito Internacional e os Limites da Razão de Estado

 

Vivemos, nesta passagem de século, um momento na história marcado por uma profunda reflexão, em escala universal, sobre as próprias bases da sociedade internacional e a formação gradual da agenda internacional do século XXI. Dificilmente poderia haver ocasião mais propícia para refletir sobre o futuro, tendo presentes as lições que nos deixa o século XX. Proponho-me, nas páginas seguin­tes, desenvolver algumas breves reflexões a respeito, entremeadas de um depoimento de minha própria experiência pessoal, acumulada no domínio do Direito Internacional dos Direitos Humanos, com atenção voltada a um ponto central de importância capital, que me permito denominar de emancipação do ser humano como sujeito do direito internacional em meio ao reconhecimento dos limites da razão de Estado.

Os grandes pensadores contemporâneos que se dispuseram a extrair as lições que levaremos deste século coincidem em um ponto fundamental, tão bem ressaltado, por exemplo, nos derradeiros escritos de Bertrand Russell, de Karl Popper, de Isaiah Berlim, den­tre outros: nunca, como no século XX, verificou-se tanto progresso na ciência e na tecnologia, acompanhado tragicamente de tanta des­truição e crueldade; nunca, como em nossos tempos, verificou-se tanto aumento da prosperidade acompanhado de modo igualmente trágico de tanto aumento — estatisticamente comprovado — das disparidades econômico-soclais e da pobreza extrema! O crepúsculo deste século desvenda um panorama e. progresso científico e tecnológico sem precedentes, acompanhado de padecimentos humanos indescritíveis.

Ao longo deste século de trágicas contradições, do divórcio entre a sabedoria e o conhecimento especializado, da antinomia en­tre o domínio das ciências e o descontrole dos impulsos humanos, das oscilações entre avanços e retrocessos, gradualmente se transfor­mou a função do direito internacional como instrumental jurídico já não só de regulação, como sobretudo de libertação. O direito interna­cional tradicional, vigente no início do século, marcava-se pelo voluntarismo estatal ilimitado, que se refletia na permissividade do re­curso a guerra, da celebração de tratados desiguais, da diplomacia secreta, da manutenção de colônias e protetorados e de zonas de influência. Contra essa ordem oligárquica e injusta se insurgiram princípios como os da proibição do uso e ameaça da força e da guerra de agressão (e do não-reconhecimento de situações por estas gera­das), da igualdade jurídica dos Estados e da solução pacifica das controvérsias internacionais. Deu-se, ademais, início ao combate às desigualdades (com a abolição das capitulações, o estabelecimento do) sistema de proteção de minorias sob a Liga das Nações, e as pri­meiras convenções internacionais do Trabalho da OIT.

um meados do século, reconheceu-se a necessidade da re­construção do direito internacional, com atenção aos direitos do ser humano, do que deu eloqüente testemunho a adoção da Declaração Universal de 1948, seguida, ao longo de cinco décadas, por mais de 70 tratados de proteção hoje vigentes nos planos global e regional. Na era das Nações Unidas, consolidou-se, paralelamente, o sistema de segurança coletiva, que, no entanto, deixou de operar a contento em razão dos impasses gerados pela Guerra Fria. O direito interna­cional passou a experimentar, no segundo meado deste século, uma extraordinária expansão, fomentada em grande parte pela atuação das Nações Unidas e agências especializadas, ademais das organiza­ções regionais, estendida também ao domínio econômico e social, a par do comércio internacional.

A emergência dos novos Estados, em meio ao processo his­tórico de descolonização, veio marcar profundamente sua evolução nas décadas de cinqüenta e sessenta, em meio ao grande impacto no seio das Nações Unidas do direito emergente de autodeterminação dos povos. Desencadeou-se o processo de desmocratização do direito internacional. Ao transcender os antigos parâmetros do direito clássico da paz e da guerra, equipou-se o direito internacional para res­ponder às novas demandas e desafios da vida internacional, com maior ênfase na cooperação internacional. Nas décadas de sessenta a oiten­ta, os foros multilaterais se engajaram em um intenso processo de elaboração e adoção de sucessivos tratados e resoluções de regula­mentação dos espaços, em áreas distintas como a do espaço exterior e a do direito do mar.

As notáveis transformações no cenário mundial contempo­râneo, desencadeadas, a partir de 1989, pelo fim da Guerra Fria e a irrupção de numerosos conflitos internos, têm caracterizado os anos noventa como um período de grande densidade histórica. O exercí­cio de reflexão universal que têm ensejado se reflete no ciclo das Conferências Mundiais das Nações Unidas deste final de século, que têm procedido a uma reavaliação global de muitos conceitos à luz da consideração de temas que afetam a humanidade como um todo. Seu denominador comum tem sido a atenção especial às condições de vida da população (particularmente dos grupos vulneráveis, em ne­cessidade especial de proteção), daí resultando o reconhecimento universal da necessidade de situar os seres humanos de modo defini­tivo no centro de todo processo de desenvolvimento.

Com efeito, os grandes desafios de nossos tempos — a prote­ção do ser humano e do meio ambiente, o desarmamento, a erradi­cação da pobreza crônica e o desenvolvimento humano, e a superação das disparidades alarmantes entre os países e dentro deles — têm incitado à revitalização dos próprios fundamentos e princípios do direito internacional contemporâneo, tendendo a fazer abstração de soluções jurisdicionais e espaciais (territoriais) clássicas e deslocan­do a ênfase para a noção de solidariedade. Compreende-se hoje, en­fim, que a ratão de Estado tem limites, no atendimento das necessidades e aspirações da população, e no tratamento equânime das questões que afetam toda a humanidade.

O ordenamento internacional tradicional, marcado pelo pre­domínio das soberanias estatais e pela exclusão dos indivíduos, não foi capaz de evitar a intensificação da produção e o uso de arma­mentos de destruição em massa, tampouco as violações maciças dos direitos humanos perpetradas em todas as regiões do mundo, e as sucessivas atrocidades de nosso século, inclusive as contemporâneas — como o holocausto, o gulag, seguidos de novos atos de genocídio, no sudeste asiático, na Europa Central (ex-Iugoslávia) e na Áfri­ca (Ruanda). Tais atrocidades têm despertado a consciência jurídica universal para a necessidade de reconceituar as próprias bases do ordenamento internacional.

Afirmam-se, assim, com maior vigor, os direitos humanos universais. Já não se sustentam o monopólio estatal da titularidade de direitos nem os excessos de um positivismo jurídico degenerado, que excluíram do ordenamento jurídico internacional o destinatário final das normas jurídicas: o ser humano. Reconhece-se hoje a neces­sidade de restituir a este último a  posição central — como sujeito do direito tanto interno corno internacional— de onde foi indevidamente alija­do, com as consequencias desastrosas já assinaladas. Em fl05505 dias o modelo westphaliano do ordenamento internacional afigura-se es­gotado e superado.

A própria dinâmica da vida internacional cuidou de desauto­rizar o entendimento tradicional de que as relações internacionais se regiam por regras derivadas inteiramente da livre vontade dos pró­prios Estados. O positivismo voluntarísta mostrou-se incapaz de explicar o processo de formação das normas do direito internacio­nal geral, e se tornou evidente que 50) se poderia encontrar uma resposta ao problema dos fundamentos e da validade deste último na consciência jurídica universal, a partir da asserção da idéia de uma justiça objetiva. Nesta linha de evolução também se insere a tendên­cia atual de “criminalização” de violações graves dos direitos da pes­soa humana, paralelamente à consagração do princípio da jurisdição universal. Neste final de século, temos o privilégio de testemunhar o processo de humanização do direito internacional, que passa a se ocu­par mais diretamente da realização de metas comuns superiores. O reconhecimento da centralidade dos direitos humanos corresponde a um novo ethos de nossos tempos.

A titularidade jurídica internacional do ser humano, tal como a anteviam os chamados fundadores do direito internacional (o di­reito) das gentes, é hoje uma realidade. Para alcançar esse grau de evo­lução, foi necessário superar inúmeros obstáculos, nos planos tanto nacional como internacional. Permito-me recordar alguns episódios de minha própria experiência pessoal. Desde que apresentei meu Parecer, de 16.8.1985, com os fundamentos jurídicos para a adesão do Brasil aos tratados gerais de direitos humanos, como então Consultor Jurídico do ltamaraty, foi necessário aguardar por mais de seis anos sua aprovação congressual, para que o Brasil enfim se tornasse Parte nos dois Pactos de Direitos Humanos (de Direitos Civis e Po­líticos, e de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais) das Nações Unidas (em 24.1.1992), e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (em 25.9.1992). Durante essa longa espera, tive o ensejo de criar na Universidade de Brasília a disciplina “Proteção Internacio­nal dos Direitos Humanos”, e de organizar em várias cidades, com o respaldo de entidades humanitárias, uma série de seminários de mobilização da opinião pública nacional neste propósito, que contaram com a valiosa participação de diversos colegas de nossos círculos acadêmicos.

Desde que apresentei outro Parecer, de 18.10.1989, ainda como Consultor Jurídico do Itamaraty, com os fundamentos jurídicos para a aceitação, pelo Brasil, da competência da Corte interame­ricana de Direitos Humanos em matéria contenciosa, foi necessário esperar quase uma década, até que, em 10.12.1998, se efetuasse o deposito do respectivo instrumento de aceitação pelo Brasil. Feliz­mente essas decisões foram tomadas, reconciliando a posição de nosso pais com seu pensamento jurídico mais lúcido, e congregando as instituições do poder público e as organizações não-governamen­tais e demais entidades de nossa sociedade civil em torno da causa comum da proteção do ser humano.

No tocante à aplicação da normativa internacional de prote­ção no direito interno, o quadro não tem sido distinto. Desde que apresentei, em audiência pública na Assembléia Nacional Constituin­te, em 29.4.1987, a proposta que se transformou no art. 5», § 2», de nossa Constituição Federal de 1988, em virtude do qual 05 direitos constitucionalmente consagrados abarcam igualmente os constantes dos tratados de direitos humanos em que o Brasil é Parte, até hoje continuamos esperando pelo dia em que se venha a dar a devida aplicação a essa disposição constitucional. A Constituição de um país não é um menu, de onde se possam extrair as disposições a aplicar, ignorando as demais. Estou convencido de que, em mais de uma década da vigência de nossa Constituição Federal, muito mais poderíamos ter avançado na proteção dos direitos humanos em nosso pais se todos os setores do Poder judiciário estivessem dando aplicação cabal aquela disposição.

Outras ilustrações poderiam ser mencionadas: por exemplo, desde que o brasil ratificou as duas Convenções contra a Tortura que hoje o vinculam — a das Nações Unidas, em 28.9. 1989, e a Interame­ricana, de 20.7.1989 —, foi necessário esperar quase oito anos até que a Lei n» 9.455, de 7.4.1997, viesse a tipificar o crime de tortura em nosso direito interno, e ainda assim com algumas falhas, guardando um paralelismo apenas imperfeito com as duas Convenções supraci­tadas. Assim é trabalhar no campo da proteção dos direitos huma­nos: e como nadar contra a correnteza, para fazer uso de expressão consagrada cm um dos escritos de Isaiah Berlin.

Se passamos do plano nacional ao internacional, o mesmo quadro de dificuldades se nos apresenta. Sempre me recordarei dos momentos finais da II Conferência Mundial de Direitos Humanos em junho de 1993, quando, a duras penas — e aparentemente mais pela exaustão do que pela convicção da maioria dos delegados —, logramos em incluir, no art. 1º da Declaração e Programa de Ação de Viena, a simples reasserção da universalidade dos direitos humanos, que as delegações partidárias do chamado relativismo cultural buscavam evitar. Os que hoje lêem aquele documento não se dão conta da luta que travamos para evitar o grave retrocesso conceitual de uma relativização — que teria sido desastrosa — dos direitos humanos universais. Naqueles momentos dramáticos da Conferência Mundial de Viena, o teor da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 me parecia demasiado avançado para o mundo de 1993.

A insensatez humana parece não ter limites, e a memória do sofrimento de gerações passadas parece não resistir a erosão do tem­po. Assim é trabalhar no campo da proteção dos direitos humanos, onde o progresso parece dar-se em forma não linear, mas pendular. No plano regional, por exemplo, há poucas semanas em 26 de maio passado, entrou em vigor uma denúncia, sem precedentes, da Con­venção Americana sobre Direitos Humanos, efetuada por Trinidad e Tobago. Jamais me esquecerei das últimas horas do dia 25 de maio, em que, em sessão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, cinco horas antes da entrada em vigor da referida denúncia, logra­mos ordenar a tempo, sempre sob a pressão impiedosa do  relógio, medidas provisórias de proteção, no sentido de suspender a execu­ção de condenados à pena de morte naquele país. Poderia aqui evo­car, como fiel ilustração das dificuldades que permeiam a luta em prol dos direitos humanos, o mito do Sísifo, nas imorredouras refle­xões de um dos maiores escritores deste século, Albert Camus: e um trabalho de perseverança que simplesmente não tem fim.

Por outro lado, e talvez em razão da dimensão humana do desafio sempre a defrontar, dificilmente poderia haver labor mais gratificante do que o empreendido no presente domínio — sobretu­do quando, uma vez resolvido um litigio, recebemos a visita de uma vítima para dizer-nos, como já ocorreu, que em seu caso enfim se fez justiça graças à operação dos mecanismos internacionais de prote­ção. Considero um privilégio poder estar atuando, em benefício de tantos seres humanos no contencioso internacional que já faz parte da história contemporânea da proteção internacional dos direitos humanos na América Latina.

A par dos casos decididos pela Corte Interamericana de Di­reitos Humanos, que me eximo de comentar (referindo-me a meus votos nas respectivas sentenças da Corte), guardo a melhor das lem­branças, por exemplo, do desfecho de dois importantes casos para cuja solução fui convocado: um relativo à Nicarágua, no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA), e outro relativo à Rússia, no âmbito do Conselho da Europa. O relatório sobre o pri­meiro caso, entregue ao Secretário-Geral da OEA em 4.2.1994, con­tribuiu decisivamente a pôr fim a uma gravíssima crise institucional que ocasionara a suspensão por alguns meses dos trabalhos do Par­lamento nicaraguense.

No continente europeu, transcorrido pouco mais de um ano, ante a fragmentação da União Soviética e a emergência e consolida­ção da Comunidade dos Estados Independentes (CEI), o Conselho da Europa solicitou-me um parecer sobre as implicações jurídicas da coexistência entre a Convenção Européia de Direitos Humanos e a Convenção de Minsk sobre Direitos Humanos, de 1995. Recordo-me de que, na época, havia muitos em Estrasburgo que temiam que uma aproximação com a Rússia ‘poderia baixar 05 padrões de proteção dos direitos humanos em um Conselho da Europa ampliado. Pon­derei que a preocupação não deveria ser esta, mas sim auxiliar a Rús­sia a que elevasse seus próprios padrões de proteção, trazendo-a para dentro do Conselho da Europa, e não excluindo-a, como ocorrera no passado com Cuba no sistema interamericano. O Parecer que apresentei ao Conselho da Europa em 6.10.1995, acatado por sua Assembléia Parlamentar, contribuiu, para minha satisfação, ao ingresso da Federação Russa no Conselho da Europa e a que se tornasse ela Parte na Convenção Européia de Direitos Humanos.

Espero que o mesmo desfecho positivo tenha o mais recente caso submetido a minha consideração: em 25.6.1999, no âmbito do atual processo negociador tripartite Nações Unidas/Portugal/Indo­nésia sobre o futuro do Timor Leste, fiz entrega do Parecer que me foi solicitado sobre a matéria, em que desenvolvo os fundamentos jurídicos em defesa do direito de autodeterminação do povo do Timor Leste, e os argumentos em favor da opção pela independência (ao invés de simples autonomia mitigada) no referendo popular a realizar-se na ilha, programado em princípio para agosto, sob a su­pervisão das Nações Unidas. A ação, no presente domínio de proteção, não visa a reger as relações entre iguais, mas proteger os osten­sívamente mais fracos e vulneráveis, e quando sentimos que contri­buímos para assegurar a proteção do Direito àqueles que dela mais necessitam, a satisfação é redobrada, e — ousaria acrescentar — possi­velmente maior do que em qualquer outra área da ciência jurídica contemporânea.

Em meio a muitos percalços, alguns avanços inequívocos se têm efetivamente registrado no presente domínio de proteção. Por exemplo, em fl0550 continente, desde sua instalação em 1979 até hoje, a Corte Interamericana de Direitos Humanos já realizou 44 perío­dos ordinários e 23 extraordinários de sessões, ao longo dos quais emitiu, até o presente, 53 sentenças (sobre exceções preliminares, mérito, reparações e interpretação) e 15 pareceres, além de 55 medi­das provisórias de proteção. Graças a essa jurisprudência protetora, ainda virtualmente desconhecida no Brasil, temos logrado salvar vi­cias, pôr fim a violações dos direitos humanos, modificar práticas administrativas e medidas legislativas, e prover reparações às víti­mas OU a seus familiares.

Fim sua jurisprudência recente, a Corte Interamericana tem enfatizado o papel central, no sistema de proteção, das garantias ju­diciais e do direito a um recurso rápido e eficaz perante as instâncias judiciais nacionais competentes. A consagração de tal direito, originalmente no art. 8.0 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, constituiu a contribuição talvez mais importante dos países latino-americanos à elaboração daquele histórico documento de 1948, que desencadeou o processo de generalização da proteção internacional dos direitos humanos. Esse direito encontra-se hoje consagrado no art. 25 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, e a Corte Interamericana, em sentenças recentes, tem assinalado que o direito a um recurso efetivo ante os juizes ou tribunais nacionais competentes Constitui um dos pilares básicos não só da Convenção Americana, como do próprio Estado de Direito em uma sociedade democráti­ca, no sentido da Convenção, uma vez que se encontra diretamente ligado ao direito de acesso à justiça.

E este um tema que me parece de importância capital: im­põe-se o direito de acesso à justiça nos planos tanto nacional como internacional. A proteção judicial constitui a forma mais aperfeiçoa­da de salvaguarda dos direitos humanos. Em meu entender, deve­mos assegurar a maior participação possível dos indivíduos, das su­postas vítimas, no procedimento perante a Corte Interamericana, sem a intermediação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

E esta uma bandeira que venho empunhando já há algum tem­po nos foros internacionais e que, apesar das costumeiras resistências, vem ganhando ultimamente crescentes e importantes adesões. E esta a causa que continuarei defendendo, no plano internacional, até suas últimas conseqüências. Os europeus tiveram de esperar por mais de quatro décadas, até a entrada em vigor, em 1.11.1998, do Protoco­lo Xl à Convenção Européia de Direitos Humanos, que veio enfim assegurar jus standi dos indivíduos diretamente à Corte Européia de Direitos Humanos, em todos 05 casos.

Entendo que ao reconhecimento de direitos deve correspon­der a capacidade processual de vindicá-los ou exercê-los igualmente no plano internacional. E este um imperativo de equidade que con­tribui à instrução e transparência do processo. Ao direito de acesso à justiça no plano internacional deve corresponder a garantia da igual­dade processual das partes — os indivíduos demandantes e os Esta­dos demandados —, que é da própria essência da proteção internacional dos direitos humanos. A jurisdicionalização do mecanismo de proteção convencional interessa a todos, inclusive aos indivíduos demandantes e aos Estados demandados. Impõe-se a consolidação da plena capacidade processual dos indivíduos, como sujeitos do Direito Internacional dos Direitos Humanos.

A despeito dos avanços logrados no presente domínio de proteção, resta, no entanto, um longo caminho a percorrer. Ainda falta muito para que a linguagem dos direitos humanos alcance as bases das sociedades nacionais; nestas, há que se superar freqüentemente a inércia e a indiferença do próprio meio social, que por vezes parece não se aperceber de que o destino de cada um de seus mem­bros está inelutavelmente ligado à sorte de todos. Daí a importância da educação em direitos humanos. Durante o biênio em que dirigi o Instituto Interamericano de Direitos Humanos  (1994-1996), elegi como países-piloto, para suprir suas carências e atender às suas ne­cessidades nessa área, três Estados da região: na América do Sul, o Brasil (com a realização de numerosos projetos); na América Cen­tral, a Guatemala (com o lançamento do Plano Integral em Direitos Humanos para aquele país); e no Caribe, Cuba (com a realização do primeiro grande Seminário de Direitos Humanos naquele pais, em parceria com a União Nacional de Juristas Cubanos). Somente com a educação formal e não formal em direitos humanos em todos os níveis alcançarão tais direitos as bases das sociedades nacionais.

Ainda não existe uma clara compreensão do amplo alcance das obrigações convencionais de proteção, que vinculam todos os poderes e agentes do Estado. Há que adotar e aplicar as medidas nacionais de implementação, assegurando a aplicabilidade direta das normas internacionais de proteção dos direitos humanos no plano do direito interno. Há que garantir o acesso direto dos indivíduos à justiça nos planos tanto nacional como internacional. Há que assegu­rar o fiel cumprimento das sentenças dos tribunais internacionais de direitos humanos no âmbito do direito interno dos Estados-Partes nos respectivos tratados de proteção. Há que estender a proteção convencional aos direitos econômicos sociais e culturais, de modo a lograr a indivisibilidade dos direitos humanos não só na teoria, como também na prática. Há que assegurar melhor coordenação entre os múltiplos mecanismos e procedimentos internacionais de direitos humanos, nos planos global e regional, como assinalei em curso mi­nistrado na Academia de Direito Internacional da Haia, em 1987.

Há que conceber novas formas de proteção do ser humano ante a diversificação das fontes de violação de seus direitos. Para contribuir a assegurar a observância dos direitos da pessoa humana em quaisquer circunstâncias, inclusive em emergências públicas e es­tados de sitio, e evitar a vacatio legis, há que fomentar as convergências — nos planos normativo, hermenêutico e operacional — entre o Di­reito Internacional dos Direitos Humanos, o Direito internacional dos Refugiados e o Direito Internacional Humanitário, inclusive pro­piciando, quando for o caso, a aplicação simultânea ou concomitante de suas normas. Foi o que sustentei na avaliação a que procedi, em 1994, por solicitação do Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), do processo desenvolvido no período de 1989-1994 pela Conferência Internacional sobre Refugiados Centro-americanos (CIREECA); foi igualmente a conclusão a que chegaram os Seminários, convocados pelo Instituto Interamericano de Direi­tos Humanos, de atualização da aplicação, no continente americano, da normativa do Direito Internacional dos Refugiados (San José da Costa Rica, dezembro de 1994) e do Direito Internacional Humani­tário (Santa Cruz de la Sierra, junho de 1995).

Para concluir, permito-me retornar brevemente a meu pon­to de partida: o das contradições de nosso século, e da premente necessidade de superá-las. Em luminoso livro, publicado há mais de cinqüenta anos, ao questionar as próprias bases do que entendemos por civilização (conquistas modestíssimas nos planos moral e soci­al), o historiador Arnold Toynbee lamentava que o domínio, alcançado pelos homens, da natureza humana infelizmente aio se estendeu ao plano espiritual. Outro historiador, contemporâneo, Eric Ilobsbawn, vem de diagnosticar o século XX como um período da história marcado sobretudo pelos crimes e loucuras da humanidade. Com um toque de esperança, eu me permitiria acrescentar que, em meio a tanta violência e destruição, nos é dado resgatar, talvez como o mais precioso legado para o próximo século, a evolução, impulsio­nada em raros momentos ou lampejos de lucidez, da proteção internacional dos direitos humanos ao longo das cinco últimas décadas.

Na construção do ordenamento jurídico internacional do novo século, testemunhamos, com a gradual erosão da reciprocida­de, a emergência pari para de considerações superiores de ordre public, refletidas nas concepções das normas imperativas do direito in­ternacional geral (o jus cogens), dos direitos fundamentais inderrogá­veis, das obrigações erga omnes de proteção (devidas à comunidade internacional como um todo). A consagração dessas obrigações re­presenta a superação de um padrão de conduta erigido sobre a pre­tensa autonomia da vontade do Estado, do qual o próprio direito internacional buscou gradualmente se libertar ao consagrar o con­ceito de jus cogens. Há que dar seguimento à evolução auspiciosa da consagração das normas de jus cogens e das correspondentes obriga­ções erga omnes, buscando assegurar sua plena aplicação prática, em beneficio de todos os seres humanos. Estas novas concepções se impõem em nossos dias, e de sua fiel observância dependerá em grande parte a evolução futura do direito internacional. É este, em meu entender, o caminho a seguir, para que não mais tenhamos de conti­nuar a conviver com as contradições trágicas que marcaram este sé­culo próximo ao final.

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