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A Consolidação da Capacidade Processual dos Indivíduos na Evolução da Proteção Internacional dos Direitos Humanos: Quadro Atual e Perspectivas na Passagem do Século

Antônio Augusto Cançado Trindade*

Os Avanços na Proteção Internacional dos Direitos Humanos

A proteção dos direitos humanos ocupa reconhecidamente uma posição central na agenda internacional nesta passagem de século. Os múltiplos instrumentos internacionais no presente domínio, revelando uma unidade fundamental de concepção e propósito, têm partido da premissa de que os direitos protegidos são inerentes a todos os seres humanos, sendo assim anteriores e superiores ao Estado e a todas as formas de organização política. Por conseguinte, estes instrumentos têm sido postos em operação no entendimento de que as iniciativas de proteção de tais direitos não se exaurem - não podem se exaurir - na ação do Estado.

A evolução do presente domínio de proteção foi objeto de duas avaliações globais até o presente. A I Conferência Mundial de Direitos Humanos (Teerã, 1968) representou, de certo modo, a gradual passagem da fase legislativa, de elaboração dos primeiros instrumentos internacionais de direitos humanos (a exemplo dos dois Pactos de Direitos Humanos das Nações Unidas de 1966), à fase de implementação de tais instrumentos. A II Conferência Mundial de Direitos Humanos (Viena, 1993) procedeu a uma reavaliação global da aplicação de tais instrumentos e das perspectivas para o novo século, abrindo campo ao exame do processo de consolidação e aperfeiçoamento dos mecanismos de proteção internacional dos direitos humanos. Decorridos cinco anos desde esta última Conferência, encontram-se os órgãos internacionais de proteção dos direitos humanos diante de dilemas e desafios, próprios de nossos dias, para seu labor futuro.

Cabe ter sempre presente que, nas últimas décadas, graças à atuação daqueles órgãos, inúmeras vítimas têm sido socorridas. Até o início dos anos noventa, no plano global (Nações Unidas), por exemplo, mais de 350 mil denúncias revelando um “quadro persistente de violações” de direitos humanos foram enviadas às Nações Unidas (sob o chamado sistema extraconvencional da resolução 1503 do ECOSOC). Sob o Pacto de Direitos Civis e Políticos e seu [primeiro] Protocolo Facultativo, o Comitê de Direitos Humanos, tinha recebido, até abril de 1995, mais de 630 comunicações, e em 73% dos casos examinados concluiu que haviam ocorrido violações de direitos humanos. O Comitê para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial tinha examinado (sob a Convenção do mesmo nome), a seu turno, em suas duas primeiras décadas de operação, 810 relatórios (periódicos e complementares) dos Estados Partes. E o Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), decorridas quatro décadas de operação do sistema, cuida hoje de mais de 17 milhões de refugiados em todo o mundo[1], a par do número considerável de deslocados internos em distintas regiões.

No plano regional, por exemplo, até o início desta década, no continente europeu, a Comissão Européia de Direitos Humanos tinha decidido cerca de 15 mil reclamações individuais sob a Convenção Européia de Direitos Humanos, ao passo que a Corte Européia de Direitos Humanos totalizava 191 casos submetidos a seu exame, com 91 casos pendentes. No continente americano, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos ultrapassava o total de 10 mil comunicações examinadas, enquanto a Corte Interamericana de Direitos Humanos, atualmente com 15 pareceres emitidos, passava a exercer regularmente sua competência contenciosa, contando hoje com 22 casos contenciosos examinados, alguns dos quais já decididos.

Em meados dos anos noventa, a Corte Interamericana tinha examinado, ou tomado conhecimento, de 22 casos contenciosos (alguns dos quais ainda pendentes), em relação aos quais emitiu 28 julgamentos (atinentes a objeções preliminares, mérito, reparações, e interpretação de julgamentos)[2].

No continente africano, a Comissão Africana de Direitos Humanos e dos Povos tinha examinado, ao início desta década, quase 40 reclamações ou comunicações sob a Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos, algumas das quais já decididas[3]. E, em fins de 1997, a Comissão Africana debruçava-se sobre um Projeto de Protocolo à Carta Africana que prevê o estabelecimento de uma Corte Africana de Direitos Humanos e dos Povos[4]. O Conselho da Liga dos Estados Árabes, a seu turno, adotava, em 15.09.1994, a quarta Convenção regional de direitos humanos, a Carta Árabe de Direitos Humanos[5]. Assim, neste final de século, somente os países asiáticos encontram-se desprovidos de uma Convenção regional de direitos humanos[6]. Cada sistema regional de direitos humanos vive um momento histórico distinto, e, em todo caso, os instrumentos regionais e globais (Nações Unidas) de proteção afiguram-se como essencialmente complementares, operando todos eles no âmbito da universalidade dos direitos humanos.

Graças aos esforços dos órgãos internacionais de supervisão nos planos global e regional, logrou-se salvar muitas vidas, reparar muitos dos danos denunciados e comprovados, adotar ou alterar medidas legislativas, por fim a práticas administrativas violatórias dos direitos garantidos, alterar medidas legislativas impugnadas, adotar programas educativos e outras medidas positivas por parte dos governos. Não obstante todos estes resultados, estes órgãos de supervisão internacionais defrontam-se hoje com grandes problemas, gerados em parte pelas modificações do cenário internacional, pela própria expansão e sofisticação de seu âmbito de atuação, pelos continuados atentados aos direitos humanos em numerosos países, pelas novas e múltiplas formas de violação dos direitos humanos que deles requerem capacidade de readaptação e maior agilidade, e pela manifesta falta de recursos humanos e materiais para desempenhar com eficácia seu labor.

A despeito dos sensíveis avanços logrados no presente domínio de proteção nos últimos anos, ainda resta um longo caminho a percorrer. Na maioria dos países que têm ratificado os tratados de direitos humanos, até o presente lamentavelmente ainda não parece haver se formado uma consciência da natureza e amplo alcance das obrigações convencionais contraídas em matéria de proteção dos direitos humanos. Urge que um claro entendimento destas últimas se difunda, a começar pelas próprias autoridades públicas.

O Amplo Alcance das Obrigações Convencionais de Proteção

Os tratados de proteção dos direitos humanos, distintamente dos demais tratados que se mostram eivados de concessões mútuas pela reciprocidade, inspiram-se em considerações de ordem superior, de ordre public. Ao criarem obrigações para os Estados vis-à-vis os seres humanos sob sua jurisdição, suas normas aplicam-se não só na ação conjunta (exercício de garantia coletiva) dos Estados Partes na realização do propósito comum de proteção, mas também e sobretudo no âmbito do ordenamento jurídico interno de cada um deles, nas relações entre o poder público e os indivíduos.

As iniciativas de proteção no plano internacional não podem se dissociar da adoção e do aperfeiçoamento das medidas nacionais de implementação, porquanto destas últimas depende em grande parte a evolução da própria proteção internacional dos direitos humanos, sem prejuízo da preservação dos padrões internacionais de proteção. É a própria proteção internacional que requer tais medidas nacionais de implementação assim como o fortalecimento das instituições nacionais vinculadas à plena observância dos direitos humanos e ao Estado de Direito[7].

Como vimos sustentando há vários anos (cerca de duas décadas)[8], no contexto da proteção dos direitos humanos a polêmica clássica entre monistas e dualistas revela-se baseada em falsas premissas e superada: verifica-se aqui uma interação dinâmica entre o direito internacional e o direito interno, e os próprios tratados de direitos humanos significativamente consagram o critério da primazia da norma mais favorável aos seres humanos protegidos, seja ela norma de direito internacional ou de direito interno. Na vindicação de seus direitos, a pessoa humana é sujeito do direito interno assim como do direito internacional, dotada em ambos de personalidade e capacidade jurídicas. Em última análise, a primazia é sempre da norma que melhor proteja.

A responsabilidade primária pela observância dos direitos humanos recai nos Estados, e os próprios tratados de direitos humanos atribuem importantes funções de proteção aos órgãos dos Estados. Ao ratificarem tais tratados os Estados Partes contraem, a par das obrigações convencionais específicas atinentes a cada um dos direitos protegidos, também obrigações gerais da maior importância, consignadas naqueles tratados. Uma delas é a de respeitar e assegurar o respeito dos direitos protegidos - o que requer medidas positivas por parte dos Estados, - e outra é a de adequar o ordenamento jurídico interno à normativa internacional de proteção[9]. Esta última requer que se adote a legislação necessária para dar efetividade às normas convencionais de proteção, suprindo eventuais lacunas no direito interno, ou então que se alterem disposições legais nacionais com o propósito de harmonizá-las com as normas convencionais de proteção. Urge, assim, que as leis nacionais sejam compatibilizadas com a normativa internacional de proteção, e que os direitos consagrados nos tratados de proteção possam ser invocados diretamente ante os próprios tribunais nacionais. As obrigações gerais supracitadas, a serem devidamente cumpridas, implicam naturalmente o concurso de todos os poderes do Estado, de todos os seus órgãos e agentes[10].

Como ressaltamos em obra recente, as obrigações convencionais de proteção vinculam os Estados Partes (todos os seus poderes, órgãos e agentes), e não só seus governos. Ao Poder Executivo incumbe tomar todas as medidas - administrativas e outras - a seu alcance para dar fiel cumprimento àquelas obrigações. A responsabilidade internacional pelas violações dos direitos humanos sobrevive aos governos, e se transfere a governos sucessivos, precisamente por se tratar de responsabilidade do Estado. Ao Poder Legislativo incumbe tomar todas as medidas dentro de seu âmbito de competência, seja para regulamentar os tratados de direitos humanos de modo a dar-lhes eficácia no plano do direito interno, seja para harmonizar este último com o disposto naqueles tratados. E ao Poder Judiciário incumbe aplicar efetivamente as normas de tais tratados no plano do direito interno, e assegurar que sejam respeitadas. Isto significa que o Legislativo e o Judiciário nacionais têm o dever de prover e aplicar recursos internos eficazes contra violações tanto dos direitos consignados na Constituição como dos direitos consagrados nos tratados de direitos humanos que vinculam o país em questão, ainda mais quando a própria Constituição nacional assim expressamente o determina[11]. O descumprimento das normas convencionais de proteção engaja de imediato a responsabilidade internacional do Estado, por ato ou omissão, seja do Poder Executivo, seja do Legislativo, seja do Judiciário[12].

O Acesso Direto do Indivíduo à Justiça no Plano Internacional: Natureza Jurídica e Alcance do Direito de Petição Individual

O direito de petição individual, mediante o qual é assegurado ao indivíduo o acesso direto à justiça em nível internacional, é uma conquista definitiva do Direito Internacional dos Direitos Humanos. É da própria essência da proteção internacional dos direitos humanos a contraposição entre os indivíduos demandantes e os Estados demandados em casos de supostas violações dos direitos protegidos. Foi precisamente neste contexto de proteção que se operou o resgate histórico da posição do ser humano como sujeito do Direito Internacional dos Direitos Humanos, dotado de plena capacidade processual internacional.

Três séculos de um ordenamento internacional cristalizado, a partir dos tratados de paz de Westphalia (1648), com base na coordenação de Estados-nações independentes, na justaposição de soberanias absolutas, levaram à exclusão daquele ordenamento dos indivíduos como sujeitos de direitos. No plano internacional, os Estados assumiram o monopólio da titularidade de direitos; os indivíduos, para sua proteção, foram deixados inteiramente à mercê da intermediação discricionária de seus Estados nacionais. O ordenamento internacional assim erigido, - que os excessos do positivismo jurídico tentaram em vão justificar, - dele excluiu precisamente o destinatário último das normas jurídicas: o ser humano.

Três séculos de um ordenamento internacional marcado pelo predomínio soberanias estatais e pela exclusão dos indivíduos foram incapazes de evitar as violações maciças dos direitos humanos, perpetradas em todas as regiões do mundo, e as sucessivas atrocidades de nosso século, inclusive as contemporâneas[13]. Tais atrocidades despertaram a consciência jurídica universal para a necessidade de reconceitualizar as próprias bases do ordenamento internacional, restituindo ao ser humano a posição central de onde havia sido alijado. Esta reconstrução, sobre bases humanas, tomou por fundamento conceitual os cânones inteiramente distintos da realização de valores comuns superiores, da titularidade de direitos do próprio ser humano, da garantia coletiva de sua realização, e do caráter objetivo das obrigações de proteção[14]. A ordem internacional das soberanias cedia terreno à da solidariedade.

Esta profunda transformação do ordenamento internacional, desencadeada a partir das Declarações Universal e Americana de Direitos Humanos de 1948, a completar este ano meio-século de evolução, não se tem dado sem dificuldades, precisamente por requerer uma nova mentalidade. Passou, ademais, por etapas, algumas das quais já não mais suficientemente estudadas em nossos dias, inclusive no tocante à consagração do direito de petição individual. Já nos primórdios do exercício deste direito se enfatizou que, ainda que motivado pela busca da reparação individual, o direito de petição contribui também para assegurar o respeito pelas obrigações de caráter objetivo que vinculam os Estados Partes[15]. Em vários casos o exercício do direito de petição tem ido mais além, ocasionando mudanças no ordenamento jurídico interno e na prática dos órgãos públicos do Estado[16]. A significação do direito de petição individual só pode ser apropriadamente avaliada em perspectiva histórica[17].

Esta transformação, própria de nosso tempo, corresponde ao reconhecimento da necessidade de que todos os Estados, para evitar novas violações dos direitos humanos, respondam pela maneira como tratam todos os seres humanos que se encontram sob sua jurisdição. Esta prestação de contas simplesmente não teria sido possível sem a consagração do direito de petição individual, em meio ao reconhecimento do caráter objetivo das obrigações de proteção e à aceitação da garantia coletiva de cumprimento das mesmas. É este o sentido real do resgate histórico do indivíduo como sujeito do Direito Internacional dos Direitos Humanos.

Há três décadas, por ocasião do vigésimo aniversário da Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, René Cassin, que participara do processo preparatório de sua elaboração[18], ponderava que se ainda subsistem na terra “grandes zonas onde milhões de homens ou mulheres, resignados a seu destino, não ousam proferir a menor reclamação ou nem mesmo a conceber que um recurso qualquer seja possível, estes territórios diminuem a cada dia. A tomada de consciência de que uma emancipação é possível, torna-se cada vez mais geral. (...) A primeira condição de toda justiça, qual seja, a possibilidade de encurralar os poderosos para sujeitar-se a (...) um controle público, satisfaz-se hoje bem mais freqüentemente que outrora. (...) As Convenções e Pactos [de direitos humanos] em sua maioria, (...) incitam os Estados Partes a neles criar as instâncias de recursos e prevêem certas medidas de proteção ou de controle internacional. (...) O fato de que a resignação sem esperança, de que o muro do silêncio e de que a ausência de todo recurso estejam em vias de redução ou de desaparecimento, abre à humanidade em marcha perspectivas encorajadoras”[19].

A apreciação do direito de petição individual como método de implementação internacional dos direitos humanos tem necessariamente que levar em conta o aspecto central da legitimatio ad causam dos peticionários e das condições do uso e da admissibilidade das petições (consignadas nos distintos instrumentos de direitos humanos que as prevêem)[20]. Tem sido particularmente sob a Convenção Européia de Direitos Humanos que uma vasta jurisprudência sobre o direito de petição individual tem se desenvolvido. O direito de petição individual desfruta de autonomia, distinto que é dos direitos substantivos enumerados no título I da Convenção Européia. Qualquer obstáculo interposto pelo Estado Parte em questão a seu livre exercício acarretaria, assim, uma violação adicional da Convenção, paralelamente a outras violações que se comprovem dos direitos substantivos nesta consagrados.

Reforçando este ponto, tanto a Comissão como a Corte Européias de Direitos Humanos têm entendido que o próprio conceito de vítima (à luz do artigo 25 da Convenção) deve ser interpretado autonomamente sob a Convenção. Este entendimento encontra-se hoje solidamente respaldado pela jurisprudence constante sob a Convenção. Assim, em várias decisões nos últimos anos, a Comissão Européia tem consistente e invariavelmente advertido que o conceito de “vítima” utilizado no artigo 25 da Convenção deve ser interpretado de forma autônoma e independentemente de conceitos de direito interno tais como os de interesse ou qualidade para interpor uma ação judicial ou participar em um processo legal[21].


* Vice-Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos; Professor Titular da Universidade de Brasília e do Instituto Rio Branco; Membro dos Conselhos Diretores do Instituto Internacional de Direitos Humanos (Estrasburgo) e do Instituto Interamericano de Direitos Humanos (Costa Rica); Associado do Institut de Droit International.

[1] Para um exame destes e outros dados, cf. A.A. Cançado Trindade, Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos, volume I, Porto Alegre, S.A. Fabris Ed., 1997, capítulo II, pp. 61 e seguintes.

 [2] OEA, The Inter-American Court and the Inter-American System of Human Rights: Projections and Goals (pelo Secretariado da Corte), OEA doc. OEA/Ser.G-CP/CAJP-1130, de 26.11.1996, p. 7; para um estudo, cf. A.A. Cançado Trindade, “El Sistema Interamericano de Protección de los Derechos Humanos (1948-1995): Evolución, Estado Actual y Perspectivas”, Derecho Internacional y Derechos Humanos/Droit international et droits de l'homme (Libro Conmemorativo de la XXIV Sesión del Programa Exterior de la Academia de Derecho Internacional de La Haya, San José de Costa Rica, abril/maio de 1995), La Haye/San José, IIDH/Académie de Droit International de La Haye, 1996, pp. 47-95.

 [3] A.A. Cançado Trindade, Tratado de Direito Internacional..., op. cit. supra nº (1), pp. 62-63.

 [4] Para o texto do referido Projeto de Protocolo, cf. documento OAU/LEG/EXP/AFC/HPR(I), reproduzido in: 8 African Journal of International and Comparative Law (1996) pp. 493-500.

 [5] Texto reproduzido in: 7 Revue universelle des droits de l'homme (1995) pp. 212-214. Para comentários, cf. M.A. Al Midani, “Introduction à la Charte Arabe des Droits de l'Homme”, 104/106 Boletim da Sociedade Brasileira de Direito Internacional (1996) pp. 183-189.

 [6] Cf. a respeito, inter alia, e.g., J. Chan, “The Asian Challenge to Universal Human Rights: A Philosophical Appraisal”, in Human Rights and International Relations in the Asia-Pacific Region (ed. J.T.H. Tang), London/NºY., Pinter, 1995, pp. 25-38.

 [7] K. Vasak, “Human Rights as a Legal Reality”, The International Dimensions of Human Rights (eds. K. Vasak e Ph. Alston), vol. I, Paris, UNESCO/Greenwood, 1982, pp. 3-10; e cf. P.Nº Drost, Human Rights as Legal Rights, Leyden, Sijthoff, 1965, pp. 61-75.

 [8] Cf. A.A. Cançado Trindade, “Exhaustion of Local Remedies in International Law and the Role of National Courts”, 17 Archiv des Völkerrechts (1977-1978) pp. 333-370; A.A. Cançado Trindade, The Application of the Rule of Exhaustion of Local Remedies in International Law, Cambridge, Cambridge University Press, 1983, pp. 1-443; A.A. Cançado Trindade, “A Interação entre o Direito Internacional e o Direito Interno na Proteção dos Direitos Humanos”, 46 Arquivos do Ministério da Justiça (1993) nº 182, pp. 27-54; A.A. Cançado Trindade, “Desafíos de la Protección Internacional de los Derechos Humanos al Final del Siglo XX”, Seminario sobre Derechos Humanos (Actas del Seminario de La Habana, Cuba, Mayo-Junio de 1996), San José de Costa Rica/La Habana, IIDH/Unión Nacional de Juristas de Cuba, 1997, pp. 99-124; A.A. Cançado Trindade, “Prefácio: Direito Internacional e Direito Interno - Sua Interação na Proteção dos Direitos Humanos”, in Instrumentos Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos, São Paulo, Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, 1996, pp. 13-46.

 [9] No tocante ao direito brasileiro, cf. A.A. Cançado Trindade (Editor), A Incorporação das Normas Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos no Direito Brasileiro (Seminários de Brasília e Fortaleza de 1993), 2a. edição, Brasília/San José, IIDH/CICV/ACNUR/CUE/ASDI, 1996, pp. 7-845; A.A. Cançado Trindade (Editor), A Proteção dos Direitos Humanos nos Planos Nacional e Internacional: Perspectivas Brasileiras, San José/Brasília, IIDH/Fund. F. Naumann, 1991, pp. 1-357; F. Piovesan, Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, São Paulo, Max Limonad, 1996, pp. 11-332; C.D. de Albuquerque Mello, Direito Constitucional Internacional, Rio de Janeiro, Ed. Renovar, 1994, pp. 165-191.

 [10] A.A. Cançado Trindade, Tratado de Direito Internacional..., op. cit. supra nº (1), pp. 441-442.

 [11] A exemplo do que dispõe o artigo 5(2) da Constituição Brasileira de 1988. Sobre a gênese, o conteúdo normativo e o alcance do artigo 5(2) da Constituição Brasileira de 1988, cf. A.A. Cançado Trindade, A Proteção Internacional dos Direitos Humanos e o Brasil (1948-1997): As Primeiras Cinco Décadas, Brasília, Editora Universidade de Brasília (Edições Humanidades), 1998, pp. 11-208.

 [12] A.A. Cançado Trindade, Tratado de Direito Internacional..., op. cit. supra nº (1), p. 442.

 [13] Como o holocausto, o gulag, seguidos de novos atos de genocídio, e.g., no sudeste asiático, na Europa central (ex-Iugoslávia), na África (Ruanda).

 [14] Com incidência direta destes cânones nos métodos de interpretação das normas internacionais de proteção, sem necessariamente se afastar das regras gerais de interpretação dos tratados consagradas nos artigos 31-33 das duas Convenções de Viena sobre Direito dos Tratados (de 1969 e 1986).

 [15] Por exemplo, sob o artigo 25 da Convenção Européia de Direitos Humanos; cf. H. Rolin, “Le rôle du requérant dans la procédure prévue par la Commission européenne des droits de l'homme”, 9 Revue hellénique de droit international (1956) pp. 3-14, esp. p. 9; C.Th. Eustathiades, “Les recours individuels à la Commission européenne des droits de l'homme”, in Grundprobleme des internationalen Rechts - Festschrift für Jean Spiropoulos, Bonn, Schimmelbusch & Co., 1957, p. 121; F. Durante, Ricorsi Individuali ad Organi Internazionali, Milano, Giuffrè, 1958, pp. 125-152, esp. pp. 129-130; K. Vasak, La Convention européenne des droits de l'homme, Paris, LGDJ, 1964, pp. 96-98; M. Virally, “L'accès des particuliers à une instance internationale: la protection des droits de l'homme dans le cadre européen”, 20 Mémoires Publiés par la Faculté de Droit de Genève (1964) pp. 67-89; H. Mosler, “The Protection of Human Rights by International Legal Procedure”, 52 Georgetown Law Journal (1964) pp. 818-819.

 [16] Há que ter sempre presente que, distintamente das questões regidas pelo Direito Internacional Público, em sua maioria levantadas horizontalmente sobretudo em nível inter-estatal, as questões atinentes aos direitos humanos situam-se verticalmente em nível intra-estatal, na contraposição entre os Estados e os seres humanos sob suas respectivas jurisdições. Por conseguinte, pretender que os órgãos de proteção internacional não possam verificar a compatibilidade das normas e práticas de direito interno, e suas omissões, com as normas internacionais de proteção, seria um contrasenso. Também aqui a especificidade do Direito Internacional dos Direitos Humanos torna-se evidente. O fato de que este último vai mais além do Direito Internacional Público em matéria de proteção, de modo a abarcar o tratamento dispensado pelos Estados aos seres humanos sob suas jurisdições, não significa que uma interpretação conservadora deva se aplicar; muito ao contrário, o que se aplica é uma interpretação em conformidade com o caráter inovador - em relação aos dogmas do passado, tais como o da “competência nacional exclusiva” ou domínio reservado dos Estados, como emanação da soberania estatal, - das normas internacionais de proteção dos direitos humano. Com o desenvolvimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos, é o próprio Direito Internacional Público que se enriquece, na asserção de cânones e princípios próprios do presente domínio de proteção, baseados em premissas fundamentalmente distintas das que têm guiado seus postulados no plano das relações puramente inter-estatais. O Direito Internacional dos Direitos Humanos vem assim afirmar a aptidão do Direito Internacional Público para assegurar, no presente contexto, o cumprimento das obrigações internacionais de proteção por parte dos Estados vis-à-vis todos os seres humanos sob suas jurisdições.

 [17] Como assinalado in A.A. Cançado Trindade, Tratado de Direito Internacional..., op. cit. supra nº (1), pp. 68-87.

 [18] Como rapporteur do Grupo de Trabalho da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, encarregado de preparar o projeto da Declaração (maio de 1947 a junho de 1948).

 [19] R. Cassin, “Vingt ans après la Déclaration Universelle”, 8 Revue de la Commission Internationale de Juristes (1967) nº 2, pp. 9-10.

 [20] Para um exame da matéria, cf. A.A. Cançado Trindade, Tratado de Direito Internacional..., op. cit. supra nº (1), pp. 68-87.

 [21] Cf. nesse sentido: Comissão Européia de Direitos Humanos (ComEDH), caso Scientology Kirche Deutschland e.V. versus Alemanha (appl. nº 34614/96), decisão de 07.04.1997, 89 Decisions and Reports (1997) p. 170; ComEDH, caso Zentralrat Deutscher Sinti und Roma e R. Rose versus Alemanha (appl. nº 35208/97) decisão de 27.05.1997, p. 4 (não-publicada); ComEDH, caso Federação Grega de Funcionários de Alfândega, Nº Gialouris, G. Christopoulos e 3333 Outros Funcionários de Alfândega versus Grécia (appl. nº 24581/94), decisão de 06.04.1995, 81-B Decisions and Reports (1995) p. 127; ComEDH, caso NºNº Tauira e 18 Outros versus França (appl. nº 28204/95), decisão de 04.12.1995, 83-A Decisions and Reports (1995) p. 130 (petições contra os testes nucleares franceses no atol de Mururoa e no de Fangataufa, na Polinésia francesa); ComEDH, caso K. Sygounis, I. Kotsis e Sindicato de Policiais versus Grécia (appl. nº 18598/91), decisão de 18.05.1994, 78 Decisions and Reports (1994) p. 77; ComEDH, caso Asociación de Aviadores de la República, J. Mata el Al. versus Espanha (appl. nº 10733/84), decisão de 11.03.1985, 41 Decisions and Reports (1985) p. 222. - Segundo esta mesma jurisprudência, para atender à condição de “vítima” (sob o artigo 25 da Convenção) deve haver um “vínculo suficientemente direto” entre o indivíduo demandante e o dano alegado, resultante da suposta violação da Convenção.

A Corte Européia, por sua vez, no caso Norris versus Irlanda (1988), ponderou que as condições que regem as petições individuais sob o artigo 25 da Convenção “não coincidem necessariamente com os critérios nacionais relativos ao locus standi”, que podem inclusive servir a propósitos distintos dos contemplados no mencionado artigo 25[1]. Resulta, pois, claríssima a autonomia do direito de petição individual no plano internacional vis-à-vis disposições do direito interno. Os elementos singularizados nesta jurisprudência protetora aplicam-se igualmente sob procedimentos de outros tratados de direitos humanos que requerem a condição de “vítima” para o exercício do direito de petição individual[2].

No sistema interamericano de proteção dos direitos humanos, o direito de petição individual tem se constituído em um meio eficaz de enfrentar casos não só individuais como também de violações maciças e sistemáticas dos direitos humanos[3], antes mesmo da entrada em vigor da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (i.e., na prática inicial da Comissão Interamericana de Direitos Humanos). Sua importância tem sido fundamental, e não poderia jamais ser minimizada. A consagração do direito de petição individual sob o artigo 44 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos revestiu-se de significação especial. Não só foi sua importância, para o mecanismo da Convenção como um todo, devidamente enfatizada nos travaux préparatoires daquela disposição da Convenção[4], como também representou um avanço em relação ao que, até a adoção do Pacto de San José em 1969, se havia logrado a respeito, no âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos.

A outra Convenção regional então em vigor, a Convenção Européia, só aceitara o direito de petição individual originalmente consubstanciado em uma cláusula facultativa (o artigo 25 da Convenção), condicionando a legitimatio ad causam à demonstração da condição de vítima pelo demandante individual, - o que, a seu turno, propiciou um notável desenvolvimento jurisprudencial da noção de “vítima” sob a Convenção Européia. A Convenção Americana, distintamente, tornou o direito de petição individual (artigo 44 da Convenção) mandatório, de aceitação automática pelos Estados ratificantes, abrindo-o a “qualquer pessoa ou grupo de pessoas, ou entidade não-governamental legalmente reconhecida em um ou mais Estados membros da Organização” dos Estados Americanos (OEA), - o que revela a importância capital atribuída ao mesmo[5].

Foi este, reconhecidamente, um dos grandes avanços logrados pela Convenção Americana, nos planos tanto conceitual e normativo, assim como operacional. A matéria encontra-se analisada detalhadamente em nosso Voto Concordante no recente caso Castillo Petruzzi versus Peru (1998)[6]. Há que ter sempre presente a autonomia do direito de petição individual vis-à-vis o direito interno dos Estados. Sua relevância não pode ser minimizada, porquanto pode ocorrer que, em um determinado ordenamento jurídico interno, um indivíduo se veja impossibilitado, pelas circunstâncias de uma situação jurídica, a tomar providências judiciais por si próprio. Nem por isso estará ele privado de fazê-lo no exercício do direito de petição individual sob a Convenção Americana, ou outro tratado de direitos humanos.

Mas a Convenção Americana vai mais além: a legitimatio ad causam, que estende a todo e qualquer peticionário, pode prescindir até mesmo de alguma manifestação por parte da própria vítima. O direito de petição individual, assim amplamente concebido, tem como efeito imediato ampliar o alcance da proteção, mormente em casos em que as vítimas (e.g., detidos incomunicados, desaparecidos, entre outras situações) se vêem impossibilitadas de agir por conta própria, e necessitam da iniciativa de um terceiro como peticionário em sua defesa.

A desnacionalização da proteção e dos requisitos da ação internacional de salvaguarda dos direitos humanos, além de ampliar sensivelmente o círculo de pessoas protegidas, possibilitou aos indivíduos exercer direitos emanados diretamente do direito internacional (direito das gentes), implementados à luz da noção supracitada de garantia coletiva, e não mais simplesmente “concedidos” pelo Estado. Com o acesso dos indivíduos à justiça em nível internacional, por meio do exercício do direito de petição individual, deu-se enfim expressão concreta ao reconhecimento de que os direitos humanos a ser protegidos são inerentes à pessoa humana e não derivam do Estado. Por conseguinte, a ação em sua proteção não se esgota - não pode se esgotar - na ação do Estado.

Cada um dos procedimentos que regulam o direito de petição individual sob tratados e instrumentos internacionais de direitos humanos, apesar de diferenças em sua natureza jurídica, tem contribuído, a seu modo, ao gradual fortalecimento da capacidade processual do demandante no plano internacional. Em reconhecimento expresso da relevância do direito de petição individual, a Declaração e Programa de Ação de Viena, principal documento adotado pela II Conferência Mundial de Direitos Humanos (1993), conclamou sua adoção, como método adicional de proteção, por meio de Protocolos Facultativos à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher ao Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais[7]. Aquele documento recomendou, ademais, aos Estados Partes nos tratados de direitos humanos, a aceitação de todos os procedimentos facultativos disponíveis de petições ou comunicações individuais[8].

De todos os mecanismos de proteção internacional dos direitos humanos, o direito de petição individual é, efetivamente, o mais dinâmico, ao inclusive atribuir a iniciativa de ação ao próprio indivíduo (a parte ostensivamente mais fraca vis-à-vis o poder público), distintamente do exercício ex officio de outros métodos (como os de relatórios e investigações) por parte dos órgãos de supervisão internacional. É o que melhor reflete a especificidade do Direito Internacional dos Direitos Humanos, em comparação com outras soluções próprias do Direito Internacional Público (como se pode depreender da sentença de 1995 da Corte Européia de Direitos Humanos no importante caso Loizidou versus Turquia, que certamente se tornará locus classicus sobre a matéria)[9].

Nas audiências públicas perante as Cortes Européia e Interamericana de Direitos Humanos, - sobretudo nas audiências atinentes a reparações, - um ponto que tem particularmente chamado nossa atenção tem sido a observação, cada vez mais freqüente, por parte das vítimas ou seus parentes, no sentido de que, se não fosse pelo acesso à instância internacional, jamais se teria feito justiça em seus casos concretos. Sejamos realistas: sem o direito de petição individual, e o conseqüente acesso à justiça no plano internacional, os direitos consagrados nos tratados regionais de direitos humanos seriam reduzidos a pouco mais que letra morta. É pelo livre e pleno exercício do direito de petição individual que os direitos consagrados em tais tratados se tornam efetivos. O direito de petição individual abriga, com efeito, a última esperança dos que não encontraram justiça em nível nacional.

O direito de petição individual é uma cláusula pétrea dos tratados de direitos humanos que o consagram, - a exemplo do artigo 25 da Convenção Européia e do artigo 44 da Convenção Americana, - sobre a qual se erige o mecanismo jurídico da emancipação do ser humano vis-à-vis o próprio Estado para a proteção de seus direitos no âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Outra cláusula pétrea é a da aceitação da competência contenciosa das Cortes Européia e Interamericana de Direitos Humanos, que não admite limitações outras que as expressamente contidas no artigo 46 da Convenção Européia e no artigo 62 da Convenção Americana.

As cláusulas pétreas supracitadas - o direito de petição individual e a jurisdição obrigatória das Cortes Européia e Interamericana em casos contenciosos - constituem matéria de ordre public internacional, que não poderia estar à mercê de limitações não previstas nos tratados de proteção, invocadas pelos Estados Partes por razões ou vicissitudes de direito interno. Se desse modo não tivesse sido originalmente concebido e consistentemente entendido o direito de petição individual, muito pouco teria avançado a proteção internacional dos direitos humanos neste meio-século de evolução. Com a consolidação do direito de petição individual perante tribunais internacionais de direitos humanos (como as Cortes Européia e Interamericana de Direitos Humanos), é a proteção internacional que terá alcançado sua maturidade.

O Locus Standi dos Indivíduos nos Procedimentos perante os Tribunais Internacionais de Direitos Humanos

Uma das grandes conquistas da proteção internacional dos direitos humanos, em perspectiva histórica, é sem dúvida o acesso dos indivíduos às instâncias internacionais de proteção e o reconhecimento de sua capacidade processual internacional em casos de violações dos direitos humanos. Ao serem concebidos os sistemas de proteção das Convenções Européia e Americana sobre Direitos Humanos, os mecanismos enfim adotados não consagraram originalmente a representação direta dos indivíduos nos procedimentos perante os dois tribunais internacionais de direitos humanos criados pelas duas Convenções (as Cortes Européia e Interamericana de Direitos Humanos), - os únicos tribunais do gênero existentes sob tratados de direitos humanos até o presente. As resistências, então manifestadas, - próprias de outra época e sob o espectro da soberania estatal, - ao estabelecimento de uma nova jurisdição internacional para a salvaguarda dos direitos humanos, fizeram com que, pela intermediação das Comissões Européia e Interamericana de Direitos Humanos, se buscasse evitar o acesso direto dos indivíduos aos dois tribunais regionais de direitos humanos (as Cortes Européia e Interamericana de Direitos Humanos).

Desenvolvimentos no Sistema Europeu de Proteção

Já no exame de seus primeiros casos contenciosos, tanto a Corte Européia como a Corte Interamericana de Direitos Humanos se insurgiram contra a artificialidade do esquema da intermediação das respectivas Comissões (supra). Recorde-se que, bem cedo, já desde o caso Lawless versus Irlanda (1960), a Corte Européia passou a receber, por meio dos delegados da Comissão Européia, argumentos escritos dos próprios demandantes, que freqüentemente se mostravam bastante críticas no tocante à própria Comissão. Encarou-se esta providência com certa naturalidade, pois os argumentos das supostas vítimas não tinham que coincidir inteiramente com os dos delegados da Comissão. Uma década depois, durante o procedimento nos casos Vagrancy, relativos à Bélgica (1970), a Corte Européia aceitou a solicitação da Comissão de dar a palavra a um advogado dos três demandantes; ao tomar a palavra, este advogado criticou, em um determinado ponto, a opinião expressada pela Comissão em seu relatório[10].

Os desenvolvimentos seguintes são conhecidos: a concessão de locus standi aos representantes legais dos indivíduos demandantes perante a Corte (por meio da reforma do Regulamento de 1982, em vigor a partir de 01.01.1983) em casos a esta submetidos pela Comissão ou os Estados Partes, seguida da adoção do célebre Protocolo nº 9 (de 1990, já em vigor) à Convenção Européia. Como ressalta o Relatório Explicativo do Conselho da Europa sobre a matéria, o Protocolo nº 9 concedeu “um tipo de locus standi” aos indivíduos perante a Corte, indubitavelmente um avanço, mas que ainda não lhes assegurava a “equality of arms/égalité des armes” com os Estados demandados e o benefício pleno da utilização do mecanismo da Convenção Européia para a vindicação de seus direitos[11] (cf. infra).

De todo modo, as relações da Corte Européia com os indivíduos demandantes passaram a ser, pois, diretas, sem contar necessariamente com a intermediação dos delegados da Comissão. Isto obedece a uma certa lógica, porquanto os papéis ou funções dos demandantes e da Comissão são distintos; como a Corte Européia assinalou já em seu primeiro caso (Lawless), a Comissão se configura antes como um órgão auxiliar da Corte. Têm sido freqüentes os casos de opiniões divergentes entre os delegados da Comissão e os representantes das vítimas nas audiências perante a Corte, e tem-se considerado isto como normal e, até mesmo, inevitável. Os governos se acomodaram, por assim dizer, à prática dos delegados da Comissão de recorrer quase sempre à assistência de um representante das vítimas, ou, pelo menos, a ela não objetaram.

Não há que passar despercebido que toda esta evolução tem-se desencadeado, no sistema europeu de proteção, gradualmente, mediante a reforma do Regulamento da Corte e a adoção do Protocolo nº 9 à Convenção. A Corte Européia tem determinado o alcance de seus próprios poderes mediante a reforma de seu interna corporis, afetando inclusive a própria condição das partes no procedimento perante ela. Alguns casos já tem sido resolvidos sob o Protocolo nº 9, com relação aos Estados Partes na Convenção Européia que ratificaram também este último. Daí a atual coexistência dos Regulamentos A e B da Corte Européia[12].

É certo que, a partir de 01 de novembro de 1998, dia da entrada em vigor do Protocolo nº 11 (de 1994) à Convenção Européia (sobre a reforma do mecanismo desta Convenção e o estabelecimento de uma nova Corte Européia como único órgão jurisdicional de supervisão da Convenção)[13], o Protocolo nº 9 tornar-se-á anacrônico, de interesse somente histórico no âmbito do sistema europeu de proteção. Ao contrário do que previam os céticos, em relativamente pouco tempo todos os Estados Partes na Convenção Européia de Direitos Humanos, em inequívoca demonstração de maturidade, se tornaram Partes também no Protocolo nº 11 à referida Convenção, possibilitando a entrada em vigor deste último ainda em 1998.

O início da vigência deste Protocolo, em 01 de novembro de 1998, representa um passo altamente gratificante para todos os que atuamos em prol do fortalecimento da proteção internacional dos direitos humanos. O indivíduo passa assim a ter, finalmente, acesso direto a um tribunal internacional (jus standi), como verdadeiro sujeito - e com plena capacidade jurídica - do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Isto tem sido possível sobretudo em razão de uma nova mentalidade quanto à proteção dos direitos humanos nos planos internacional e nacional.

Superado, desse modo, o Protocolo nº 9 para o sistema europeu de proteção, não obstante retém sua grande utilidade para a atual consideração de eventuais aperfeiçoamentos do mecanismo de proteção do sistema interamericano de direitos humanos (cf. infra). Os sistemas regionais - situados todos na universalidade dos direitos humanos - vivem, como já indicado, momentos históricos distintos. No sistema africano de proteção, por exemplo, só recentemente está concluindo a elaboração do Projeto de Protocolo à Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos sobre o Estabelecimento de uma Corte Africana de Direitos Humanos e dos Povos. E apenas em setembro de 1994 o Conselho da Liga dos Estados Árabes, a seu turno, adotou a Carta Árabe de Direitos Humanos (supra).

Desenvolvimentos no Sistema Interamericano de Proteção

Os desenvolvimentos que hoje têm lugar no sistema interamericano de proteção são semelhantes aos do sistema europeu de proteção na última década, no tocante à matéria em exame. Na agenda atual de nosso sistema regional de proteção, ocupa hoje posição central a questão da condição das partes em casos de direitos humanos sob a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, e, em particular, da representação legal ou locus standi in judicio das vítimas (ou seus representantes legais) diretamente ante a Corte Interamericana, em casos que a ela já tenham sido enviados pela Comissão[14].

É certo que a Convenção Americana determina que só os Estados Partes e a Comissão têm direito a “submeter um caso” à decisão da Corte (artigo 61(1)); mas a Convenção, por exemplo, ao dispor sobre reparações, também se refere à “parte lesada” (artigo 63(1)), i.e., as vítimas e não a Comissão. Com efeito, reconhecer o locus standi in judicio das vítimas (ou seus representantes) ante a Corte (em casos já submetidos a esta pela Comissão) contribui à “jurisdicionalização” do mecanismo de proteção (na qual deve recair toda a ênfase), pondo fim à ambigüidade da função da Comissão, a qual não é rigorosamente “parte” no processo, mas antes guardiã da aplicação correta da Convenção.

A Convenção Americana (artigos 61(1) e 57) seguiu neste particular a disposição original correspondente da Convenção Européia de Direitos Humanos (artigo 44); apesar desta última, no sistema sob a Convenção Européia aos indivíduos demandantes, como já visto, foi gradualmente concedida representação legal direta ante a Corte Européia, de início por meio de seu Regulamento revisto de 1982, seguido anos após da adoção do Protocolo nº 9 (de 1990) à Convenção Européia. A exemplo da experiência acumulada pela Corte Européia de Direitos Humanos, desde seu primeiro caso (o caso Lawless versus Irlanda, 1960), a Corte Interamericana de Direitos Humanos, também no curso do exame de seus primeiros casos contenciosos, relativos a Honduras, defrontou-se com a artificialidade do esquema inicial, e reagiu contra o mesmo (cf. infra).

No tocante ao sistema interamericano de proteção dos direitos humanos, os desenvolvimentos que a esse respeito hoje se desencadeiam parecem semelhantes aos que ocorreram no sistema europeu na última década, em relação à matéria em questão. No procedimento perante a Corte Interamericana, por exemplo, os representantes legais das vítimas têm sido integrados à delegação da Comissão com a designação eufemística de “assistentes” da mesma. Esta solução “pragmática” contou com o aval, com a melhor das intenções, da decisão tomada em uma reunião conjunta da Comissão e da Corte Interamericanas, realizada em Miami em janeiro de 1994. Em lugar de resolver o problema, criou, não obstante, ambigüidades que têm persistido até hoje. O mesmo ocorria no sistema europeu de proteção até 1982, quando a ficção dos “assistentes” da Comissão Européia foi finalmente superada pela reforma naquele ano do Regulamento da Corte Européia[15]. É chegado o tempo de superar tais ambigüidades também em nosso sistema interamericano de proteção, dado que os papéis ou funções da Comissão (como guardiã da Convenção assistindo à Corte) e dos indivíduos (como verdadeira parte demandante) são claramente distintos.

A evolução no sentido da consagração final destas funções distintas deve dar-se pari passu com a gradual jurisdicionalização do mecanismo de proteção. Desta forma se afastam definitivamente as tentações de politização da matéria, que passa a ser tratada exclusivamente à luz de regras do direito. Não há como negar que a proteção jurisdicional é a forma mais evoluída de salvaguarda dos direitos humanos, e a que melhor atende aos imperativos do direito e da justiça.

O Regulamento anterior da Corte Interamericana (de 1991) previa, em termos oblíquos, uma tímida participação das vítimas ou seus representantes no procedimento ante a Corte, sobretudo na etapa de reparações e quando convidados por esta[16]. Bem cedo, nos casos Godínez Cruz e Velásquez Rodríguez (reparações, 1989), relativos a Honduras, a Corte recebeu escritos dos familiares e advogados das vítimas, e tomou nota dos mesmos[17].

Mas o passo realmente significativo foi dado mais recentemente, no caso El Amparo (reparações, 1996), relativo à Venezuela, verdadeiro “divisor de águas” nesta matéria. Na audiência pública sobre este caso celebrada pela Corte Interamericana em 27 de janeiro de 1996, um de seus magistrados, ao manifestar expressamente seu entendimento de que ao menos naquela etapa do processo não podia haver dúvida de que os representantes das vítimas eram “a verdadeira parte demandante ante a Corte”, em um determinado momento do interrogatório passou a dirigir perguntas a eles, aos representantes das vítimas (e não aos delegados da Comissão ou aos agentes do governo), que apresentaram suas respostas[18].


 [1] Corte Européia de Direitos Humanos, caso Norris versus Irlanda, Julgamento de 26.10.1988, Série A, vol. 142, p. 15, par. 31.

 [2] A evolução da noção de “vítima” (incluindo a vítima potencial) no Direito Internacional dos Direitos Humanos encontra-se examinada em nosso curso: A.A. Cançado Trindade, “Co-existence and Co-ordination of Mechanisms of International Protection of Human Rights (At Global and Regional Levels)”, 202 Recueil des Cours de l'Académie de Droit International de La Haye (1987) pp. 243-299, esp. pp. 262-283.

 [3] Lamentamos, pois, não poder compartilhar a insinuação constante em parte da bibliografia especializada européia contemporânea sobre a matéria, no sentido de que o direito de petição individual talvez não seja eficaz no tocante a violações sistemáticas e maciças de direitos humanos. A experiência acumulada no sistema interamericano de proteção aponta exatamente no sentido contrário, e graças ao direito de petição individual muitas vidas foram salvas e se logrou realizar a justiça em casos concretos em meio a situações generalizadas de violações de direitos humanos.

 [4] Cf. OEA, Conferencia Especializada Interamericana sobre Derechos Humanos - Actas y Documentos (San José de Costa Rica, 07-22 de noviembre de 1969), doc. OEA/Ser.K/XVI/1.2 [cf.], Washington D.C., Secretaría General de la OEA, 1978, pp. 43 e 47.

 [5] A outra modalidade de petiçãõ, a inter-estatal, só foi consagrada em base facultativa (artigo 45 da Convenção Americana, a contrário do esquema da Convenção Européia - artigo 24 - neste particular), o que realça a relevância atribuída ao direito de petição individual. Este ponto não passou despercebido da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que, em seu segundo Parecer, sobre o Efecto de las Reservas sobre la Entrada en Vigencia de la Convención Americana sobre Derechos Humanos (de 24.09.1982), invocou esta particularidade como ilustrativa da “grande importância” atribuída pela Convenção Americana às obrigações dos Estados Partes vis-à-vis os indivíduos, por estes exigíveis sem a intermediação de outro Estado (parágrafo 32).

 [6] Corte Interamericana de Direitos Humanos, caso Castillo Petruzzi versus Peru (Exceções Preliminares), Sentença de 04.09.1998, Voto Concordante do Juiz A.A. Cançado Trindade, parágrafos 1-46.

 [7] Declaração e Programa de Ação de Viena de 1993, parte II, pars. 40 e 75, respectivamente. - A elaboração de ambos Projetos de Protocolos encontra-se virtualmente concluída, em seus traços essenciais, aguardando agora a aprovação por parte dos Estados.

 [8] Declaração e Programa de Ação de Viena de 1993, parte II, par. 90.

 [9] Recorde-se que, no caso Loizidou versus Turquia (sentença sobre exceções preliminares de 23.03.1995), a Corte Européia de Direitos Humanos descartou a possibilidade de restrições - pelas declarações turcas - em relação às disposições-chave do artigo 25 (direito de petição individual), e do artigo 46 (aceitação de sua jurisdição em matéria contenciosa) da Convenção Européia. Sustentar outra posição, agregou, “não só debilitaria seriamente a função da Comissão e da Corte no desempenho de suas atribuições mas também diminuiria a eficácia da Convenção como um instrumento constitucional da ordem pública (ordre public) européia” (parágrafo 75). A Corte descartou o argumento do Estado demandado de que se poderia inferir a possibilidade de restrições às claúsulas facultativas dos artigos 25 e 46 da Convenção por analogia com a prática estatal sob o artigo 36 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça. A Corte Européia não só lembrou a prática em contrário (aceitando tais cláusulas sem restrições) dos Estados Partes na Convenção Européia, mas também ressaltou o contexto fundamentalmente distinto em que os dois tribunais operam, sendo a Corte Internacional de Justiça “a free-standing international tribunal which has no links to a standard-setting treaty such as the Convention” (parágrafos 82 e 68). A Corte da Haia, - reiterou a Corte Européia, - dirime questões jurídicas no contencioso inter-estatal, distintamente das funções dos órgãos de supervisão de um “tratado normativo” (law-making treaty) como a Convenção Européia. Por conseguinte, a “aceitação incondicional” das cláusulas facultativas dos artigos 25 e 46 da Convenção não comporta analogia com a prática estatal sob o artigo 36 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça (parágrafos 84-85).

 [10] Cf. M.-A. Eissen, El Tribunal Europeo de Derechos Humanos, Madrid, Civitas, 1985, pp. 28-36.

 [11] Council of Europe, Protocol nº 9 to the Convention for the Protection of Human Rights and Fundamental Freedoms - Explanatory Report, Strasbourg, C.E., 1992, pp. 8-9, e cf. pp. 3-18; para outros comentários, cf. J.-F. Flauss, “Le droit de recours individuel devant la Cour européenne des droits de l'homme - Le Protocole nº 9 à la Convention Européenne des Droits de l'Homme”, 36 Annuaire français de droit international (1990) pp. 507-519; G. Janssen-Pevtschin, “Le Protocole Additionnel nº 9 à la Convention Européenne des Droits de l'Homme”, 2 Revue trimestrielle des droits de l'homme (1991) nº 6, pp. 199-202; M. de Salvia, “Il Nono Protocollo alla Convenzione Europea dei Diritti dell'Uomo: Punto di Arrivo o Punto di Partenza?”, 3 Rivista Internazionale dei Diritti dell'Uomo (1990) pp. 474-482.

 [12] O Regulamento A aplicável a casos relativos a Estados Partes na Convenção Européia que não ratificaram o Protocolo nº 9, e o Regulamento B aplicável a casos referentes a Estados Partes na Convenção que ratificaram o Protocolo nº 9.

 [13] Para o mais completo estudo deste último até o presente, cf. Andrew Drzemczewski, “A Major Overhaul of the European Human Rights Convention Control Mechanism: Protocol nº 11”, 6 Collected Courses of the Academy of European Law (1997)-II, pp. 121-244. Cf. também: S. Marcus Helmons, “Le Onzième Protocole Additionnel à la Convention Europénne des Droits de l'Homme”, 113 Journal des Tribunaux - Bruxelles (1994) nº 5725, pp. 545-547; R. Bernhardt, “Reform of the Control Machinery under the European Convention on Human Rights: Protocol nº 11”, 89 American Journal of International Law (1995) pp. 145-154; J.A. Carrillo Salcedo, “Vers la réforme dy système européen de protection des droits de l'homme”, in Présence du droit public et des droits de l'homme - Mélanges offerts à Jacques Velu, vol. II, Bruxelles, Bruylant, 1992, pp. 1319-1325; H. Golsong, “On the Reform of the Supervisory System of the European Convention on Human Rights”, 13 Human Rights Law Journal (1992) pp. 265-269; K. de V. Mestdagh, “Reform of the European Convention on Human Rights in a Changing Europe”, in The Dynamics of the Protection of Human Rights in Europe - Essays in Honour of H.G. Schermers (eds. R. Lawson e M. de Blois), vol. III, Dordrecht, Nijhoff, 1994, pp. 337-360.

 [14] Para um estudo geral, cf. A.A. Cançado Trindade, “El Sistema Interamericano de Protección de los Derechos Humanos (1948-1995): Evolución, Estado Actual y Perspectivas”, in Derecho Internacional y Derechos Humanos / Droit international et droits de l'homme (eds. D. Bardonnet and A.A. Cançado Trindade), La Haye/San José de Costa Rica, Académie de Droit International de La Haye/IIDH, 1996, pp. 47-95, esp. pp. 81-89; C. Grossman, “Desapariciones en Honduras: La Necesidad de Representación Directa de las Víctimas en Litigios sobre Derechos Humanos”, in The Modern World of Human Rights - Essays in Honour of Th. Buergenthal (ed. A.A. Cançado Trindade), San José of Costa Rica, IIDH, 1996, pp. 335-373; J.E. Méndez, “La Participación de la Víctima ante la Corte Interamericana de Derechos Humanos”, in La Corte y el Sistema Interamericanos de Derechos Humanos (ed. R.Nº Navia), San José de Costa Rica, Corte I.D.H., 1994, pp. 321-332.

 [15] Cf. P. Mahoney e S. Prebensen, “The European Court of Human Rights”, The European System for the Protection of Human Rights (eds. R.St.J. Macdonald, F. Matscher y H. Petzold), Dordrecht, Nijhoff, 1993, p. 630.

 [16] Cf. Regulamento anterior da Corte Interamericana, de 1991, artigos 44(2) e 22(2), e cf. também artigos 34(1) e 43(1) e (2).

 [17] Corte Interamericana de Derechos Humanos, casos Godínez Cruz e Velásquez Rodríguez (Indemnización Compensatoria), Sentenças de 21.07.1989.

 [18] Cf. a intervenção do Juiz A.A. Cançado Trindade, e as respostas do Sr. Walter Márquez e da Sra. Ligia Bolívar, como representantes das vítimas, in: Corte Interamericana de Derechos Humanos, Transcripción de la Audiencia Pública Celebrada en la Sede de La Corte el Día 27 de Enero de 1996 sobre Reparaciones - Caso El Amparo, pp. 72-76 (mimeografado, circulação interna).

Pouco depois desta memorável audiência no caso El Amparo, os representantes das vítimas apresentaram dois escritos à Corte (datados de 13.05.1996 e 29.05.1996). Paralelamente, com relação ao cumprimento da sentença de interpretação de sentença prévia de indenização compensatória nos casos anteriores Godínez Cruz e Velásquez Rodríguez, os representantes das vítimas apresentaram igualmente dois escritos à Corte (datados de 29.03.1996 e 02.05.1996). A Corte, com sua composição de setembro de 1996, só determinou por término ao processo destes dois casos depois de constatado o cumprimento, por parte de Honduras, das sentenças de indenização compensatória e de interpretação desta, e depois de haver tomado nota dos pontos de vista não só da Comissão e do Estado demandado, mas também dos peticionários e dos representantes legais das famílias das vítimas[1].

O campo estava aberto à modificação, neste particular, das disposições pertinentes do Regulamento da Corte, sobretudo a partir dos desenvolvimentos no procedimento no caso El Amparo. O próximo passo, decisivo, foi dado no novo Regulamento da Corte, adotado em 16.09.1996 e vigente a partir de 01.01.1997, - de cujo projeto original tivemos a honra de ser relator por designação da Corte, - cujo artigo 23 dispõe que “na etapa de reparações, os representantes das vítimas ou de seus familiares poderão apresentar seus próprios argumentos e provas de forma autônoma”. Este passo significativo abre o caminho para desenvolvimentos subseqüentes na mesma direção, ou seja, de modo a assegurar que, no futuro previsível, os indivíduos tenham locus standi no procedimento ante a Corte não só na etapa de reparações como também na do mérito dos casos a ela submetidos pela Comissão, ou seja, em última análise, em todas as etapas do procedimento ante a Corte Interamericana (um antigo propósito nosso).

O Direito Individual de Acesso Direto (Jus Standi) aos Tribunais Internacionais de Direitos Humanos

São sólidos os argumentos que, em nosso entendimento, militam em favor do pronto reconhecimento do locus standi das supostas vítimas no procedimento ante a Corte Interamericana em casos já enviados a esta pela Comissão. Tais argumentos encontram-se desenvolvidos em nosso curso na Sessão Externa (para a América Central) da Academia de Direito Internacional da Haia, realizada na Costa Rica em abril - maio de 1995[2], que são resumidos a seguir.

Em primeiro lugar, ao reconhecimento de direitos, nos planos tanto nacional como internacional, corresponde a capacidade processual de vindicá-los ou exercê-los. A proteção de direitos deve ser dotada do locus standi in judicio das supostas vítimas (ou seus representantes legais), que contribui para melhor instruir o processo, e sem o qual estará este último desprovido em parte do elemento do contraditório (essencial na busca da verdade e da justiça), ademais de irremediavelmente mitigado e em flagrante desequilíbrio processual. A jurisdicionalização do procedimento em muito contribui para remediar e por um fim a estas insuficiências e deficiências, que não mais encontram qualquer justificativa em nossos dias.

É da própria essência do contencioso internacional dos direitos humanos o contraditório entre as vítimas de violações e os Estados demandados. Tal locus standi dos indivíduos em questão é a conseqüência lógica, no plano processual, de um sistema de proteção que consagra direitos individuais no plano internacional, porquanto não é razoável conceber direitos sem a capacidade processual de vindicá-los. Ademais, o direito de livre expressão das supostas vítimas é elemento integrante do próprio devido processo legal, nos planos tanto nacional como internacional. A equidade e a transparência do processo, que se aplicam igualmente aos órgãos internacionais de supervisão, são benéficas a todos, inclusive os indivíduos demandantes e os Estados demandados.

Em segundo lugar, o direito de acesso à justiça em nível internacional deve fazer-se acompanhar da garantia da igualdade processual das partes (equality of arms/égalité des armes), essencial em todo sistema jurisdicional de proteção dos direitos humanos. Em terceiro lugar, em casos de comprovadas violações de direitos humanos, são as próprias vítimas - a verdadeira parte demandante ante a Corte - (ou seus parentes ou herdeiros) que recebem as reparações e indenizações. Estando as vítimas presentes no início e no final do processo, não há sentido em negar-lhes presença durante o mesmo.

A estas considerações de princípio se agregam outras, de ordem prática, igualmente em favor da representação direta das vítimas ante a Corte, em casos já a ela submetidos pela Comissão. Os avanços neste sentido convêm não só às supostas vítimas, mas a todos: aos Estados demandados, na medida em que contribuem à jurisdicionalização do mecanismo de proteção[3]; à Corte, para ter melhor instruído o processo; e à Comissão, para por fim à ambigüidade de seu papel[4], atendo-se à sua função própria de guardiã da aplicação correta e justa da Convenção (e não mais com a função adicional de “intermediário” entre os indivíduos e a Corte). Os avanços nesta direção, na atual etapa de evolução do sistema interamericano de proteção, são responsabilidade conjunta da Corte e da Comissão.

A isto há que agregar que os avanços neste sentido (da representação direta dos indivíduos perante a Corte), - já consolidados no sistema europeu de proteção, - hão de se lograr em nossa região mediante critérios e regras prévia e claramente definidos, com as necessárias adaptações às realidades da operação de nosso sistema interamericano de proteção. Isto requereria, e.g., a previsão de assistência jurídica ex officio aos indivíduos demandantes por parte da Comissão Interamericana, sempre que não estiverem eles em condições de contar com os serviços profissionais de um representante legal.

Neste final de século, encontram-se definitivamente superadas as razões históricas que levaram à denegação - a nosso ver injustificável, desde o inicio, - do locus standi das supostas vítimas. Com efeito, nos sistemas europeu e interamericano de direitos humanos, a própria prática cuidou de revelar as insuficiências, deficiências e distorções do mecanismo paternalista da intermediação das Comissões Européia e Interamericana entre os indivíduos e as respectivas Cortes - Européia e Interamericana - de Direitos Humanos, que, não surpreendentemente, não resistiu à erosão do tempo.

Enfim, e voltando às considerações de princípio, é mediante o locus standi in judicio das supostas vítimas ante os tribunais internacionais de direitos humanos (nos sistemas regionais de proteção) que se logrará a consolidação da plena personalidade e capacidade jurídicas internacionais da pessoa humana, para fazer valer seus direitos, quando as instâncias nacionais se mostrarem incapazes de assegurar a realização da justiça. Nos esforços de aprimoramento do mecanismo de proteção sob a Convenção Americana, a ênfase deve recair na jurisdicionalização de tal mecanismo, particularmente no que tange à operação do método de petições ou reclamações, - sem prejuízo do uso continuado pela Comissão Interamericana dos métodos de relatórios e determinação dos fatos.

O aperfeiçoamento do mecanismo do sistema interamericano de proteção deve ser objeto de considerações de ordem essencialmente jurídico-humanitária, inclusive como garantia adicional às partes - tanto os indivíduos demandantes como os Estados demandados - em casos contenciosos de direitos humanos. Como advertimos já há uma década em curso ministrado na Academia de Direito Internacional da Haia, todo jusinternacionalista, fiel às origens históricas da disciplina, saberá contribuir a resgatar a posição do ser humano no direito das gentes (droit des gens), e a sustentar o reconhecimento e a cristalização de sua personalidade e plena capacidade jurídica internacionais[5].

A mesma advertência voltamos a formular, recentemente, em Explicações de Votos nos casos Castillo Páez e Loayza Tamayo (exceções preliminares, janeiro de 1996), e no caso Castillo Petruzzi (exceções preliminares, setembro de 1998), relativos ao Peru, no sentido da necessidade de superar a capitis diminutio de que padecem os indivíduos peticionários no sistema interamericano de proteção, em razão de considerações dogmáticas próprias de outra época histórica que buscavam evitar seu acesso direto ao órgão judicial internacional. Tais considerações, agregamos, mostram-se inteiramente sem sentido, ainda mais em se tratando de um tribunal internacional de direitos humanos. Propugnamos, em nossos Votos supracitados, pela superação da concepção paternalista e anacrônica da total intermediação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos entre os indivíduos peticionários (a verdadeira parte demandante) e a Corte, de modo a conceder-lhes acesso direto (jus standi) à Corte[6].

O necessário reconhecimento do locus standi in judicio das supostas vítimas (ou seus representantes legais) ante a Corte Interamericana constitui, nesta linha de pensamento, um avanço dos mais importantes, mas não necessariamente a etapa final do aperfeiçoamento do sistema interamericano de proteção, pelo menos tal como concebemos tal aperfeiçoamento. De tal locus standi há que se evoluir rumo ao reconhecimento futuro do direito de acesso direto dos indivíduos à Corte (jus standi), para submeter um caso concreto diretamente a ela, prescindindo totalmente da Comissão para isto. O dia em que o logremos, - na linha da entrada em vigor iminente, em 01 de novembro de 1998, do Protocolo nº 11 (de 1994) à Convenção Européia de Direitos Humanos (supra), - teremos alcançado o ponto culminante, também em nosso sistema interamericano de proteção, de um grande movimento de dimensão universal a lograr o resgate do ser humano como sujeito do Direito Internacional dos Direitos Humanos, dotado de plena capacidade jurídica internacional.



 [1] Cf. as duas resoluções da Corte, de 10.09.1996, sobre os casos Velásquez Rodríguez e Godínez Cruz, respectivamente, in: Corte I.D.H., Informe Anual de la Corte Interamericana de Derechos Humanos 1996, pp. 207-213.

 [2] A.A. Cançado Trindade, “El Sistema Interamericano de Protección de los Derechos Humanos (1948-1995): Evolución, Estado Actual y Perspectivas”, in Derecho Internacional y Derechos Humanos / Droit international et droits de l'homme (eds. D. Bardonnet y A.A. Cançado Trindade), La Haye/San José de Costa Rica, Académie de Droit International de La Haye/IIDH, 1996, pp. 47-95, esp. pp. 81-89. Cf. os mesmos argumentos in A.A. Cançado Trindade, “Perfeccionamiento del Sistema Interamericano de Protección: Reflexiones y Recomendaciones De Lege Ferenda”, 4 Journal of Latin American Affairs (1996) pp.31-34.

 [3] Recorde-se que, sob a Convenção Européia de Direitos Humanos, já há algum tempo todos os Estados Partes, sem exceção, reconhecem a competência obrigatória da Corte Européia de Direitos Humanos em matéria contenciosa (sob o artigo 46).

 [4] Nos casos contenciosos, enquanto que na etapa anterior ante a Comissão as partes são os indivíduos reclamantes e os Estados demandados, ante a Corte comparecem a Comissão e os Estados demandados. Vê-se, assim, a Comissão no papel ambíguo de ao mesmo tempo defender os interesses das supostas vítimas e defender igualmente os “interesses públicos” como uma espécie de Ministério Público do sistema interamericano de proteção. Cabe evitar esta ambigüidade.

 [5] A.A. Cançado Trindade, “Co-existence and Co-ordination of Mechanisms of International Protection of Human Rights (At Global and Regional Levels)”, 202 Recueil des Cours de l'Académie de Droit International de La Haye (1987) pp. 410-412.

 [6] Corte Interamericana de Direitos Humanos, caso Castillo Páez versus Peru (exceções preliminares), Julgamento de 30.01.1996, Explicação de Voto do Juiz A.A. Cançado Trindade, parágrafos 16-17; Corte Interamericana de Direitos Humanos, caso Loayza Tamayo versus Peru (exceções preliminares), Julgamento de 31.01.1996, Explicação de Voto do Juiz A.A. Cançado Trindade, parágrafos 16-17; textos in: OEA, Informe Anual de la Corte Interamericana de Derechos Humanos -1996, pp. 56-57 e 72-73, respectivamente. - A decisão citada sobre o recente caso Castillo Petruzzi ainda não foi publicada.

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