A
Consolidação da Capacidade Processual dos Indivíduos na Evolução
da Proteção Internacional dos Direitos Humanos: Quadro Atual e
Perspectivas na Passagem do Século
Antônio
Augusto Cançado Trindade*
Os Avanços na Proteção
Internacional dos Direitos Humanos
A
proteção dos direitos humanos ocupa reconhecidamente uma posição
central na agenda internacional nesta passagem de século. Os múltiplos
instrumentos internacionais no presente domínio, revelando uma
unidade fundamental de concepção e propósito, têm partido da
premissa de que os direitos protegidos são inerentes a todos os
seres humanos, sendo assim anteriores e superiores ao Estado e a
todas as formas de organização política. Por conseguinte, estes
instrumentos têm sido postos em operação no entendimento de que
as iniciativas de proteção de tais direitos não se exaurem - não
podem se exaurir - na ação do Estado.
A
evolução do presente domínio de proteção foi objeto de duas
avaliações globais até o presente. A I Conferência Mundial de
Direitos Humanos (Teerã, 1968) representou, de certo modo, a
gradual passagem da fase legislativa, de elaboração dos
primeiros instrumentos internacionais de direitos humanos (a
exemplo dos dois Pactos de Direitos Humanos das Nações Unidas de
1966), à fase de implementação de tais instrumentos. A II
Conferência Mundial de Direitos Humanos (Viena, 1993) procedeu a
uma reavaliação global da aplicação de tais instrumentos e das
perspectivas para o novo século, abrindo campo ao exame do
processo de consolidação e aperfeiçoamento dos mecanismos de
proteção internacional dos direitos humanos. Decorridos cinco
anos desde esta última Conferência, encontram-se os órgãos
internacionais de proteção dos direitos humanos diante de
dilemas e desafios, próprios de nossos dias, para seu labor
futuro.
Cabe
ter sempre presente que, nas últimas décadas, graças à atuação
daqueles órgãos, inúmeras vítimas têm sido socorridas. Até o
início dos anos noventa, no plano global (Nações Unidas), por
exemplo, mais de 350 mil denúncias revelando um “quadro
persistente de violações” de direitos humanos foram enviadas
às Nações Unidas (sob o chamado sistema extraconvencional da
resolução 1503 do ECOSOC). Sob o Pacto de Direitos Civis e Políticos
e seu [primeiro] Protocolo Facultativo, o Comitê de Direitos
Humanos, tinha recebido, até abril de 1995, mais de 630 comunicações,
e em 73% dos casos examinados concluiu que haviam ocorrido violações
de direitos humanos. O Comitê para a Eliminação de Todas as
Formas de Discriminação Racial tinha examinado (sob a Convenção
do mesmo nome), a seu turno, em suas duas primeiras décadas de
operação, 810 relatórios (periódicos e complementares) dos
Estados Partes. E o Alto-Comissariado das Nações Unidas para os
Refugiados (ACNUR), decorridas quatro décadas de operação do
sistema, cuida hoje de mais de 17 milhões de refugiados em todo o
mundo[1],
a par do número considerável de deslocados internos em distintas
regiões.
No
plano regional, por exemplo, até o início desta década, no
continente europeu, a Comissão Européia de Direitos Humanos
tinha decidido cerca de 15 mil reclamações individuais sob a
Convenção Européia de Direitos Humanos, ao passo que a Corte
Européia de Direitos Humanos totalizava 191 casos submetidos a
seu exame, com 91 casos pendentes. No continente americano, a
Comissão Interamericana de Direitos Humanos ultrapassava o total
de 10 mil comunicações examinadas, enquanto a Corte
Interamericana de Direitos Humanos, atualmente com 15 pareceres
emitidos, passava a exercer regularmente sua competência
contenciosa, contando hoje com 22 casos contenciosos examinados,
alguns dos quais já decididos.
Em
meados dos anos noventa, a Corte Interamericana tinha examinado,
ou tomado conhecimento, de 22 casos contenciosos (alguns dos quais
ainda pendentes), em relação aos quais emitiu 28 julgamentos
(atinentes a objeções preliminares, mérito, reparações, e
interpretação de julgamentos)[2].
No
continente africano, a Comissão Africana de Direitos Humanos e
dos Povos tinha examinado, ao início desta década, quase 40
reclamações ou comunicações sob a Carta Africana de Direitos
Humanos e dos Povos, algumas das quais já decididas[3].
E, em fins de 1997, a Comissão Africana debruçava-se sobre um
Projeto de Protocolo à Carta Africana que prevê o
estabelecimento de uma Corte Africana de Direitos Humanos e dos
Povos[4].
O Conselho da Liga dos Estados Árabes, a seu turno, adotava, em
15.09.1994, a quarta Convenção regional de direitos humanos, a
Carta Árabe de Direitos Humanos[5].
Assim, neste final de século, somente os países asiáticos
encontram-se desprovidos de uma Convenção regional de direitos
humanos[6].
Cada sistema regional de direitos humanos vive um momento histórico
distinto, e, em todo caso, os instrumentos regionais e globais (Nações
Unidas) de proteção afiguram-se como essencialmente
complementares, operando todos eles no âmbito da universalidade
dos direitos humanos.
Graças
aos esforços dos órgãos internacionais de supervisão nos
planos global e regional, logrou-se salvar muitas vidas, reparar
muitos dos danos denunciados e comprovados, adotar ou alterar
medidas legislativas, por fim a práticas administrativas violatórias
dos direitos garantidos, alterar medidas legislativas impugnadas,
adotar programas educativos e outras medidas positivas por parte
dos governos. Não obstante todos estes resultados, estes órgãos
de supervisão internacionais defrontam-se hoje com grandes
problemas, gerados em parte pelas modificações do cenário
internacional, pela própria expansão e sofisticação de seu âmbito
de atuação, pelos continuados atentados aos direitos humanos em
numerosos países, pelas novas e múltiplas formas de violação
dos direitos humanos que deles requerem capacidade de readaptação
e maior agilidade, e pela manifesta falta de recursos humanos e
materiais para desempenhar com eficácia seu labor.
A
despeito dos sensíveis avanços logrados no presente domínio de
proteção nos últimos anos, ainda resta um longo caminho a
percorrer. Na maioria dos países que têm ratificado os tratados
de direitos humanos, até o presente lamentavelmente ainda não
parece haver se formado uma consciência da natureza e amplo
alcance das obrigações convencionais contraídas em matéria de
proteção dos direitos humanos. Urge que um claro entendimento
destas últimas se difunda, a começar pelas próprias autoridades
públicas.
O Amplo Alcance das Obrigações
Convencionais de Proteção
Os
tratados de proteção dos direitos humanos, distintamente dos
demais tratados que se mostram eivados de concessões mútuas pela
reciprocidade, inspiram-se em considerações de ordem superior,
de ordre public. Ao
criarem obrigações para os Estados vis-à-vis os seres humanos sob sua jurisdição, suas normas
aplicam-se não só na ação conjunta (exercício de garantia coletiva) dos Estados Partes na realização do propósito
comum de proteção, mas também e sobretudo no âmbito do
ordenamento jurídico interno de cada um deles, nas relações
entre o poder público e os indivíduos.
As
iniciativas de proteção no plano internacional não podem se
dissociar da adoção e do aperfeiçoamento das medidas nacionais
de implementação, porquanto destas últimas depende em grande
parte a evolução da própria proteção internacional
dos direitos humanos, sem prejuízo da preservação dos padrões
internacionais de proteção. É a própria proteção
internacional que requer tais medidas nacionais de implementação
assim como o fortalecimento das instituições nacionais
vinculadas à plena observância dos direitos humanos e ao Estado
de Direito[7].
Como
vimos sustentando há vários anos (cerca de duas décadas)[8],
no contexto da proteção dos direitos humanos a polêmica clássica
entre monistas e dualistas revela-se baseada em falsas premissas e
superada: verifica-se aqui uma interação
dinâmica entre o direito internacional e o direito interno, e os
próprios tratados de direitos humanos significativamente
consagram o critério da primazia da norma mais favorável aos seres humanos protegidos, seja
ela norma de direito internacional ou de direito interno. Na
vindicação de seus direitos, a pessoa humana é sujeito do
direito interno assim como do direito internacional, dotada em
ambos de personalidade e capacidade jurídicas. Em última análise,
a primazia é sempre da norma que melhor proteja.
A
responsabilidade primária
pela observância dos direitos humanos recai nos Estados, e os próprios
tratados de direitos humanos atribuem importantes funções de
proteção aos órgãos dos Estados. Ao ratificarem tais tratados
os Estados Partes contraem, a par das obrigações convencionais
específicas atinentes a cada um dos direitos protegidos, também obrigações
gerais da maior importância, consignadas naqueles tratados.
Uma delas é a de respeitar e assegurar
o respeito dos direitos protegidos - o que requer medidas
positivas por parte dos Estados, - e outra é a de adequar o ordenamento jurídico interno à normativa internacional
de proteção[9].
Esta última requer que se adote a legislação necessária para
dar efetividade às normas convencionais de proteção, suprindo
eventuais lacunas no direito interno, ou então que se alterem
disposições legais nacionais com o propósito de harmonizá-las
com as normas convencionais de proteção. Urge, assim, que as
leis nacionais sejam compatibilizadas com a normativa
internacional de proteção, e que os direitos consagrados nos
tratados de proteção possam ser invocados diretamente
ante os próprios tribunais nacionais. As obrigações gerais
supracitadas, a serem devidamente cumpridas, implicam naturalmente
o concurso de todos os poderes do Estado, de todos os seus órgãos
e agentes[10].
Como
ressaltamos em obra recente, as obrigações convencionais de
proteção vinculam os Estados
Partes (todos os seus poderes, órgãos e agentes), e não só
seus governos. Ao Poder Executivo incumbe tomar todas as medidas -
administrativas e outras - a seu alcance para dar fiel cumprimento
àquelas obrigações. A responsabilidade internacional pelas
violações dos direitos humanos sobrevive aos governos, e se
transfere a governos sucessivos, precisamente por se tratar de
responsabilidade do Estado.
Ao Poder Legislativo incumbe tomar todas as medidas dentro de seu
âmbito de competência, seja para regulamentar os tratados de
direitos humanos de modo a dar-lhes eficácia no plano do direito
interno, seja para harmonizar este último com o disposto naqueles
tratados. E ao Poder Judiciário incumbe aplicar efetivamente as
normas de tais tratados no plano do direito interno, e assegurar
que sejam respeitadas. Isto significa que o Legislativo e o Judiciário
nacionais têm o dever de prover e aplicar recursos internos
eficazes contra violações tanto dos direitos consignados na
Constituição como dos direitos consagrados nos tratados de
direitos humanos que vinculam o país em questão, ainda mais
quando a própria Constituição nacional assim expressamente o
determina[11].
O descumprimento das normas convencionais de proteção engaja de
imediato a responsabilidade internacional do Estado, por ato ou
omissão, seja do Poder Executivo, seja do Legislativo, seja do
Judiciário[12].
O Acesso Direto do Indivíduo à
Justiça no Plano Internacional: Natureza Jurídica e Alcance do
Direito de Petição Individual
O
direito de petição individual, mediante o qual é assegurado ao
indivíduo o acesso direto à justiça em nível internacional, é
uma conquista definitiva do Direito Internacional dos Direitos
Humanos. É da própria essência da proteção internacional dos
direitos humanos a contraposição entre os indivíduos
demandantes e os Estados demandados em casos de supostas violações
dos direitos protegidos. Foi precisamente neste contexto de proteção
que se operou o resgate histórico
da posição do ser humano como sujeito do Direito Internacional
dos Direitos Humanos, dotado de plena capacidade processual
internacional.
Três
séculos de um ordenamento internacional cristalizado, a partir
dos tratados de paz de Westphalia (1648), com base na coordenação
de Estados-nações independentes, na justaposição de soberanias
absolutas, levaram à exclusão daquele ordenamento dos indivíduos
como sujeitos de direitos. No plano internacional, os Estados
assumiram o monopólio da titularidade de direitos; os indivíduos,
para sua proteção, foram deixados inteiramente à mercê da
intermediação discricionária de seus Estados nacionais. O
ordenamento internacional assim erigido, - que os excessos do
positivismo jurídico tentaram em vão justificar, - dele excluiu
precisamente o destinatário último das normas jurídicas: o ser
humano.
Três
séculos de um ordenamento internacional marcado pelo predomínio
soberanias estatais e pela exclusão dos indivíduos foram
incapazes de evitar as violações maciças dos direitos humanos,
perpetradas em todas as regiões do mundo, e as sucessivas
atrocidades de nosso século, inclusive as contemporâneas[13].
Tais atrocidades despertaram a consciência jurídica universal
para a necessidade de reconceitualizar as próprias bases do
ordenamento internacional, restituindo ao ser humano a posição
central de onde havia sido alijado. Esta reconstrução, sobre
bases humanas, tomou por fundamento conceitual os cânones
inteiramente distintos da realização de valores comuns
superiores, da titularidade de direitos do próprio ser humano, da
garantia coletiva de sua realização, e do caráter objetivo das
obrigações de proteção[14].
A ordem internacional das soberanias cedia terreno à da
solidariedade.
Esta
profunda transformação do ordenamento internacional,
desencadeada a partir das Declarações Universal e Americana de
Direitos Humanos de 1948, a completar este ano meio-século de
evolução, não se tem dado sem dificuldades, precisamente por
requerer uma nova mentalidade. Passou, ademais, por etapas,
algumas das quais já não mais suficientemente estudadas em
nossos dias, inclusive no tocante à consagração do direito de
petição individual. Já nos primórdios do exercício deste
direito se enfatizou que, ainda que motivado pela busca da reparação
individual, o direito de petição contribui também para
assegurar o respeito pelas obrigações de caráter objetivo que
vinculam os Estados Partes[15].
Em vários casos o exercício do direito de petição tem ido mais
além, ocasionando mudanças no ordenamento jurídico interno e na
prática dos órgãos públicos do Estado[16].
A significação do direito de petição individual só pode ser
apropriadamente avaliada em perspectiva histórica[17].
Esta
transformação, própria de nosso tempo, corresponde ao
reconhecimento da necessidade de que todos os Estados, para evitar
novas violações dos direitos humanos, respondam pela maneira
como tratam todos os seres humanos que se encontram sob sua
jurisdição. Esta prestação de contas simplesmente não teria
sido possível sem a consagração do direito de petição
individual, em meio ao reconhecimento do caráter objetivo das
obrigações de proteção e à aceitação da garantia coletiva
de cumprimento das mesmas. É este o sentido real do resgate
histórico do indivíduo como sujeito do Direito Internacional
dos Direitos Humanos.
Há
três décadas, por ocasião do vigésimo aniversário da Declaração
Universal de Direitos Humanos de 1948, René Cassin, que
participara do processo preparatório de sua elaboração[18],
ponderava que se ainda subsistem na terra “grandes zonas onde
milhões de homens ou mulheres, resignados a seu destino, não
ousam proferir a menor reclamação ou nem mesmo a conceber que um
recurso qualquer seja possível, estes territórios diminuem a
cada dia. A tomada de consciência de que uma emancipação é
possível, torna-se cada vez mais geral. (...) A primeira condição
de toda justiça, qual seja, a possibilidade de encurralar os
poderosos para sujeitar-se a (...) um controle público,
satisfaz-se hoje bem mais freqüentemente que outrora. (...) As
Convenções e Pactos [de direitos humanos] em sua maioria, (...)
incitam os Estados Partes a neles criar as instâncias de recursos
e prevêem certas medidas de proteção ou de controle
internacional. (...) O fato de que a resignação sem esperança,
de que o muro do silêncio e de que a ausência de todo recurso
estejam em vias de redução ou de desaparecimento, abre à
humanidade em marcha perspectivas encorajadoras”[19].
A
apreciação do direito de petição individual como método de
implementação internacional dos direitos humanos tem
necessariamente que levar em conta o aspecto central da legitimatio
ad causam dos peticionários e das condições do uso e da
admissibilidade das petições (consignadas nos distintos
instrumentos de direitos humanos que as prevêem)[20].
Tem sido particularmente sob a Convenção Européia de Direitos
Humanos que uma vasta jurisprudência sobre o direito de petição
individual tem se desenvolvido. O direito de petição individual
desfruta de autonomia, distinto que é dos direitos substantivos
enumerados no título I da Convenção Européia. Qualquer obstáculo
interposto pelo Estado Parte em questão a seu livre exercício
acarretaria, assim, uma violação adicional
da Convenção, paralelamente a outras violações que se
comprovem dos direitos substantivos nesta consagrados.
Reforçando
este ponto, tanto a Comissão como a Corte Européias de Direitos
Humanos têm entendido que o próprio conceito de vítima (à luz
do artigo 25 da Convenção) deve ser interpretado autonomamente
sob a Convenção. Este entendimento encontra-se hoje solidamente
respaldado pela jurisprudence
constante sob a Convenção. Assim, em várias decisões nos
últimos anos, a Comissão Européia tem consistente e
invariavelmente advertido que o conceito de “vítima”
utilizado no artigo 25 da Convenção deve ser interpretado de forma autônoma e independentemente
de conceitos de direito interno tais como os de interesse ou
qualidade para interpor uma ação judicial ou participar em um
processo legal[21].
A
Corte Européia, por sua vez, no caso Norris
versus Irlanda (1988), ponderou que as condições que
regem as petições individuais sob o artigo 25 da Convenção
“não coincidem necessariamente com os critérios nacionais
relativos ao locus
standi”, que podem inclusive servir a propósitos
distintos dos contemplados no mencionado artigo 25[1].
Resulta, pois, claríssima a autonomia do direito de petição
individual no plano internacional vis-à-vis
disposições do direito interno. Os elementos singularizados
nesta jurisprudência protetora aplicam-se igualmente sob
procedimentos de outros tratados de direitos humanos que
requerem a condição de “vítima” para o exercício do
direito de petição individual[2].
No
sistema interamericano de proteção dos direitos humanos, o
direito de petição individual tem se constituído em um meio
eficaz de enfrentar casos não só individuais como também de
violações maciças e sistemáticas dos direitos humanos[3],
antes mesmo da entrada em vigor da Convenção Americana sobre
Direitos Humanos (i.e., na prática inicial da Comissão
Interamericana de Direitos Humanos). Sua importância tem sido
fundamental, e não poderia jamais ser minimizada. A consagração
do direito de petição individual sob o artigo 44 da Convenção
Americana sobre Direitos Humanos revestiu-se de significação
especial. Não só foi sua importância, para o mecanismo da
Convenção como um todo, devidamente enfatizada nos travaux
préparatoires daquela disposição da Convenção[4],
como também representou um avanço em relação ao que, até
a adoção do Pacto de San José em 1969, se havia logrado a
respeito, no âmbito do Direito Internacional dos Direitos
Humanos.
A
outra Convenção regional então em vigor, a Convenção
Européia, só aceitara o direito de petição individual
originalmente consubstanciado em uma cláusula facultativa (o
artigo 25 da Convenção), condicionando a legitimatio
ad causam à demonstração da condição de vítima
pelo demandante individual, - o que, a seu turno, propiciou um
notável desenvolvimento jurisprudencial da noção de “vítima”
sob a Convenção Européia. A Convenção Americana,
distintamente, tornou o direito de petição individual
(artigo 44 da Convenção) mandatório, de aceitação automática
pelos Estados ratificantes, abrindo-o a “qualquer pessoa ou
grupo de pessoas, ou entidade não-governamental legalmente
reconhecida em um ou mais Estados membros da Organização”
dos Estados Americanos (OEA), - o que revela a importância
capital atribuída ao mesmo[5].
Foi
este, reconhecidamente, um dos grandes avanços logrados pela
Convenção Americana, nos planos tanto conceitual e
normativo, assim como operacional. A matéria encontra-se
analisada detalhadamente em nosso Voto Concordante no recente
caso Castillo Petruzzi versus Peru (1998)[6].
Há que ter sempre presente a autonomia do direito de petição
individual vis-à-vis o direito interno dos Estados. Sua relevância
não pode ser minimizada, porquanto pode ocorrer que, em um
determinado ordenamento jurídico interno, um indivíduo se
veja impossibilitado, pelas circunstâncias de uma situação
jurídica, a tomar providências judiciais por si próprio.
Nem por isso estará ele privado de fazê-lo no exercício do
direito de petição individual sob a Convenção Americana,
ou outro tratado de direitos humanos.
Mas
a Convenção Americana vai mais além: a legitimatio
ad causam, que estende a todo e qualquer peticionário,
pode prescindir até mesmo de alguma manifestação por parte
da própria vítima. O direito de petição individual, assim
amplamente concebido, tem como efeito imediato ampliar o
alcance da proteção, mormente em casos em que as vítimas
(e.g., detidos incomunicados, desaparecidos, entre outras
situações) se vêem impossibilitadas de agir por conta própria,
e necessitam da iniciativa de um terceiro como peticionário
em sua defesa.
A
desnacionalização da proteção e dos requisitos da ação
internacional de salvaguarda dos direitos humanos, além de
ampliar sensivelmente o círculo de pessoas protegidas,
possibilitou aos indivíduos exercer direitos emanados
diretamente do direito internacional (direito
das gentes), implementados à luz da noção supracitada
de garantia coletiva, e não mais simplesmente
“concedidos” pelo Estado. Com o acesso dos indivíduos à
justiça em nível internacional, por meio do exercício do
direito de petição individual, deu-se enfim expressão
concreta ao reconhecimento de que os direitos humanos a ser
protegidos são inerentes à pessoa humana e não derivam do
Estado. Por conseguinte, a ação em sua proteção não se
esgota - não pode se esgotar - na ação do Estado.
Cada
um dos procedimentos que regulam o direito de petição
individual sob tratados e instrumentos internacionais de
direitos humanos, apesar de diferenças em sua natureza jurídica,
tem contribuído, a seu modo, ao gradual fortalecimento da
capacidade processual do demandante no plano internacional. Em
reconhecimento expresso da relevância do direito de petição
individual, a Declaração e Programa de Ação de Viena,
principal documento adotado pela II Conferência Mundial de
Direitos Humanos (1993), conclamou sua adoção, como método
adicional de proteção, por meio de Protocolos Facultativos
à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra a Mulher ao Pacto de Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais[7].
Aquele documento recomendou, ademais, aos Estados Partes nos
tratados de direitos humanos, a aceitação de todos os
procedimentos facultativos disponíveis de petições ou
comunicações individuais[8].
De
todos os mecanismos de proteção internacional dos direitos
humanos, o direito de petição individual é, efetivamente, o
mais dinâmico, ao inclusive atribuir a iniciativa de ação
ao próprio indivíduo (a parte ostensivamente mais fraca vis-à-vis
o poder público), distintamente do exercício ex
officio de outros métodos (como os de relatórios e
investigações) por parte dos órgãos de supervisão
internacional. É o que melhor reflete a especificidade do
Direito Internacional dos Direitos Humanos, em comparação
com outras soluções próprias do Direito Internacional Público
(como se pode depreender da sentença de 1995 da Corte Européia
de Direitos Humanos no importante caso Loizidou versus Turquia, que certamente se tornará locus
classicus sobre a matéria)[9].
Nas
audiências públicas perante as Cortes Européia e
Interamericana de Direitos Humanos, - sobretudo nas audiências
atinentes a reparações, - um ponto que tem particularmente
chamado nossa atenção tem sido a observação, cada vez mais
freqüente, por parte das vítimas ou seus parentes, no
sentido de que, se não fosse pelo acesso à instância
internacional, jamais se teria feito justiça em seus casos
concretos. Sejamos realistas: sem o direito de petição
individual, e o conseqüente acesso à justiça no plano
internacional, os direitos consagrados nos tratados regionais
de direitos humanos seriam reduzidos a pouco mais que letra
morta. É pelo livre e pleno exercício do direito de petição
individual que os direitos consagrados em tais tratados se
tornam efetivos. O direito de petição individual abriga, com efeito, a última
esperança dos que não encontraram justiça em nível
nacional.
O
direito de petição individual é uma cláusula pétrea dos
tratados de direitos humanos que o consagram, - a exemplo do
artigo 25 da Convenção Européia e do artigo 44 da Convenção
Americana, - sobre a qual se erige o mecanismo jurídico da
emancipação do ser humano vis-à-vis
o próprio Estado para a proteção de seus direitos no âmbito
do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Outra cláusula
pétrea é a da aceitação da competência contenciosa das
Cortes Européia e Interamericana de Direitos Humanos, que não
admite limitações outras que as expressamente contidas no
artigo 46 da Convenção Européia e no artigo 62 da Convenção
Americana.
As
cláusulas pétreas supracitadas - o direito de petição
individual e a jurisdição obrigatória das Cortes Européia
e Interamericana em casos contenciosos - constituem matéria
de ordre public
internacional, que não poderia estar à mercê de limitações
não previstas nos tratados de proteção, invocadas pelos
Estados Partes por razões ou vicissitudes de direito interno.
Se desse modo não tivesse sido originalmente concebido e
consistentemente entendido o direito de petição individual,
muito pouco teria avançado a proteção internacional dos
direitos humanos neste meio-século de evolução. Com a
consolidação do direito de petição individual perante
tribunais internacionais de direitos humanos (como as Cortes
Européia e Interamericana de Direitos Humanos), é a proteção
internacional que terá alcançado sua maturidade.
O Locus Standi dos Indivíduos
nos Procedimentos perante os Tribunais Internacionais de
Direitos Humanos
Uma
das grandes conquistas da proteção internacional dos
direitos humanos, em perspectiva histórica, é sem dúvida o
acesso dos indivíduos às instâncias internacionais de proteção
e o reconhecimento de sua capacidade processual internacional
em casos de violações dos direitos humanos. Ao serem
concebidos os sistemas de proteção das Convenções Européia
e Americana sobre Direitos Humanos, os mecanismos enfim
adotados não consagraram originalmente a representação
direta dos indivíduos nos procedimentos perante os dois
tribunais internacionais de direitos humanos criados pelas
duas Convenções (as Cortes Européia e Interamericana de
Direitos Humanos), - os únicos tribunais do gênero
existentes sob tratados de direitos humanos até o presente.
As resistências, então manifestadas, - próprias de outra época
e sob o espectro da soberania estatal, - ao estabelecimento de
uma nova jurisdição internacional para a salvaguarda dos
direitos humanos, fizeram com que, pela intermediação das
Comissões Européia e Interamericana de Direitos Humanos, se
buscasse evitar o acesso direto dos indivíduos aos dois
tribunais regionais de direitos humanos (as Cortes Européia e
Interamericana de Direitos Humanos).
Desenvolvimentos no Sistema
Europeu de Proteção
Já
no exame de seus primeiros
casos contenciosos, tanto a Corte Européia como a Corte
Interamericana de Direitos Humanos se insurgiram contra a
artificialidade do esquema da intermediação das respectivas
Comissões (supra).
Recorde-se que, bem cedo, já desde o caso Lawless
versus Irlanda (1960), a Corte Européia passou a receber,
por meio dos delegados da Comissão Européia, argumentos
escritos dos próprios demandantes, que freqüentemente se
mostravam bastante críticas no tocante à própria Comissão.
Encarou-se esta providência com certa naturalidade, pois os
argumentos das supostas vítimas não tinham que coincidir
inteiramente com os dos delegados da Comissão. Uma década
depois, durante o procedimento nos casos Vagrancy,
relativos à Bélgica (1970), a Corte Européia aceitou a
solicitação da Comissão de dar a palavra a um advogado dos
três demandantes; ao tomar a palavra, este advogado criticou,
em um determinado ponto, a opinião expressada pela Comissão
em seu relatório[10].
Os
desenvolvimentos seguintes são conhecidos: a concessão de locus standi aos representantes legais dos indivíduos demandantes
perante a Corte (por meio da reforma do Regulamento de 1982,
em vigor a partir de 01.01.1983) em casos a esta submetidos
pela Comissão ou os Estados Partes, seguida da adoção do célebre
Protocolo nº 9 (de 1990, já em vigor) à Convenção Européia.
Como ressalta o Relatório
Explicativo do Conselho da Europa sobre a matéria, o
Protocolo nº 9 concedeu “um tipo de locus
standi” aos indivíduos perante a Corte,
indubitavelmente um avanço, mas que ainda não lhes
assegurava a “equality
of arms/égalité des armes” com os Estados demandados e
o benefício pleno da utilização do mecanismo da Convenção
Européia para a vindicação de seus direitos[11]
(cf. infra).
De
todo modo, as relações da Corte Européia com os indivíduos
demandantes passaram a ser, pois, diretas, sem contar
necessariamente com a intermediação dos delegados da Comissão.
Isto obedece a uma certa lógica, porquanto os papéis ou funções
dos demandantes e da Comissão são distintos; como a Corte
Européia assinalou já em seu primeiro
caso (Lawless), a
Comissão se configura antes como um órgão auxiliar da
Corte. Têm sido freqüentes os casos de opiniões divergentes
entre os delegados da Comissão e os representantes das vítimas
nas audiências perante a Corte, e tem-se considerado isto
como normal e, até mesmo, inevitável. Os governos se
acomodaram, por assim dizer, à prática dos delegados da
Comissão de recorrer quase sempre à assistência de um
representante das vítimas, ou, pelo menos, a ela não
objetaram.
Não
há que passar despercebido que toda esta evolução tem-se
desencadeado, no sistema europeu de proteção, gradualmente,
mediante a reforma do Regulamento da Corte e a adoção do
Protocolo nº 9 à Convenção. A Corte Européia tem
determinado o alcance de seus próprios poderes mediante a
reforma de seu interna corporis, afetando inclusive a própria condição das
partes no procedimento perante ela. Alguns casos já tem sido
resolvidos sob o Protocolo nº 9, com relação aos Estados
Partes na Convenção Européia que ratificaram também este
último. Daí a atual coexistência dos Regulamentos A e B da
Corte Européia[12].
É
certo que, a partir de 01 de novembro de 1998, dia da entrada
em vigor do Protocolo nº 11 (de 1994) à Convenção Européia
(sobre a reforma do mecanismo desta Convenção e o
estabelecimento de uma nova Corte Européia como único órgão
jurisdicional de supervisão da Convenção)[13],
o Protocolo nº 9 tornar-se-á anacrônico, de interesse
somente histórico no âmbito do sistema europeu de proteção.
Ao contrário do que previam os céticos, em relativamente
pouco tempo todos os Estados Partes na Convenção Européia
de Direitos Humanos, em inequívoca demonstração de
maturidade, se tornaram Partes também no Protocolo nº 11 à
referida Convenção, possibilitando a entrada em vigor deste
último ainda em 1998.
O
início da vigência deste Protocolo, em 01 de novembro de
1998, representa um passo altamente gratificante para todos os
que atuamos em prol do fortalecimento da proteção
internacional dos direitos humanos. O indivíduo passa assim a
ter, finalmente, acesso
direto a um tribunal internacional (jus
standi), como verdadeiro sujeito - e com plena capacidade
jurídica - do Direito Internacional dos Direitos Humanos.
Isto tem sido possível sobretudo em razão de uma nova
mentalidade quanto à proteção dos direitos humanos nos
planos internacional e nacional.
Superado,
desse modo, o Protocolo nº 9 para o sistema europeu de proteção,
não obstante retém sua grande utilidade para a atual
consideração de eventuais aperfeiçoamentos do mecanismo de
proteção do sistema interamericano de direitos humanos (cf. infra).
Os sistemas regionais - situados todos na universalidade dos
direitos humanos - vivem, como já indicado, momentos históricos
distintos. No sistema africano de proteção, por exemplo, só
recentemente está concluindo a elaboração do Projeto de
Protocolo à Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos
sobre o Estabelecimento de uma Corte Africana de Direitos
Humanos e dos Povos. E apenas em setembro de 1994 o Conselho
da Liga dos Estados Árabes, a seu turno, adotou a Carta Árabe
de Direitos Humanos (supra).
Desenvolvimentos no Sistema
Interamericano de Proteção
Os
desenvolvimentos que hoje têm lugar no sistema interamericano
de proteção são semelhantes aos do sistema europeu de proteção
na última década, no tocante à matéria em exame. Na agenda
atual de nosso sistema regional de proteção, ocupa hoje posição
central a questão da condição das partes em casos de direitos humanos sob a Convenção Americana
sobre Direitos Humanos, e, em particular, da representação
legal ou locus standi in
judicio das vítimas (ou seus representantes legais) diretamente
ante a Corte Interamericana, em casos que a ela já tenham
sido enviados pela Comissão[14].
É
certo que a Convenção Americana determina que só os Estados
Partes e a Comissão têm direito a “submeter um caso” à
decisão da Corte (artigo 61(1)); mas a Convenção, por
exemplo, ao dispor sobre reparações, também se refere à
“parte lesada” (artigo 63(1)), i.e., as vítimas e não a
Comissão. Com efeito, reconhecer o locus
standi in judicio das vítimas (ou seus representantes)
ante a Corte (em casos já submetidos a esta pela Comissão)
contribui à “jurisdicionalização” do mecanismo de proteção
(na qual deve recair toda a ênfase), pondo fim à ambigüidade
da função da Comissão, a qual não é rigorosamente
“parte” no processo, mas antes guardiã da aplicação
correta da Convenção.
A
Convenção Americana (artigos 61(1) e 57) seguiu neste
particular a disposição original correspondente da Convenção
Européia de Direitos Humanos (artigo 44); apesar desta última,
no sistema sob a Convenção Européia aos indivíduos
demandantes, como já visto, foi gradualmente concedida
representação legal direta ante a Corte Européia, de início
por meio de seu Regulamento revisto de 1982, seguido anos após
da adoção do Protocolo nº 9 (de 1990) à Convenção Européia.
A exemplo da experiência acumulada pela Corte Européia de
Direitos Humanos, desde seu primeiro caso (o caso Lawless
versus Irlanda, 1960), a Corte Interamericana de Direitos
Humanos, também no curso do exame de seus primeiros
casos contenciosos, relativos a Honduras, defrontou-se com a
artificialidade do esquema inicial, e reagiu contra o mesmo
(cf. infra).
No
tocante ao sistema interamericano de proteção dos direitos
humanos, os desenvolvimentos que a esse respeito hoje se
desencadeiam parecem semelhantes aos que ocorreram no sistema
europeu na última década, em relação à matéria em questão.
No procedimento perante a Corte Interamericana, por exemplo,
os representantes legais das vítimas têm sido integrados à
delegação da Comissão com a designação eufemística de
“assistentes” da mesma. Esta solução “pragmática”
contou com o aval, com a melhor das intenções, da decisão
tomada em uma reunião conjunta da Comissão e da Corte
Interamericanas, realizada em Miami em janeiro de 1994. Em
lugar de resolver o problema, criou, não obstante, ambigüidades
que têm persistido até hoje. O mesmo ocorria no sistema
europeu de proteção até 1982, quando a ficção dos
“assistentes” da Comissão Européia foi finalmente
superada pela reforma naquele ano do Regulamento da Corte
Européia[15].
É chegado o tempo de superar tais ambigüidades também em
nosso sistema interamericano de proteção, dado que os papéis
ou funções da Comissão (como guardiã da Convenção
assistindo à Corte) e dos indivíduos (como verdadeira parte
demandante) são claramente distintos.
A
evolução no sentido da consagração final destas funções
distintas deve dar-se pari
passu com a gradual jurisdicionalização do mecanismo de
proteção. Desta forma se afastam definitivamente as tentações
de politização da matéria, que passa a ser tratada
exclusivamente à luz de regras do direito. Não há como
negar que a proteção jurisdicional é a forma mais evoluída
de salvaguarda dos direitos humanos, e a que melhor atende aos
imperativos do direito e da justiça.
O
Regulamento anterior da Corte Interamericana (de 1991) previa,
em termos oblíquos, uma tímida participação das vítimas
ou seus representantes no procedimento ante a Corte, sobretudo
na etapa de reparações e quando convidados por esta[16].
Bem cedo, nos casos Godínez
Cruz e Velásquez
Rodríguez (reparações, 1989), relativos a Honduras, a
Corte recebeu escritos dos familiares e advogados das vítimas,
e tomou nota dos mesmos[17].
Mas
o passo realmente significativo foi dado mais recentemente, no
caso El Amparo
(reparações, 1996), relativo à Venezuela, verdadeiro
“divisor de águas” nesta matéria. Na audiência pública
sobre este caso celebrada pela Corte Interamericana em 27 de
janeiro de 1996, um de seus magistrados, ao manifestar
expressamente seu entendimento de que ao menos naquela etapa
do processo não podia haver dúvida de que os representantes
das vítimas eram “a
verdadeira parte demandante ante a Corte”, em um
determinado momento do interrogatório passou a dirigir
perguntas a eles, aos representantes das vítimas (e não aos
delegados da Comissão ou aos agentes do governo), que
apresentaram suas respostas[18].
Pouco
depois desta memorável audiência no caso El
Amparo, os representantes das vítimas apresentaram
dois escritos à Corte (datados de 13.05.1996 e
29.05.1996). Paralelamente, com relação ao cumprimento
da sentença de interpretação de sentença prévia de
indenização compensatória nos casos anteriores Godínez
Cruz e Velásquez
Rodríguez, os representantes das vítimas
apresentaram igualmente dois escritos à Corte (datados de
29.03.1996 e 02.05.1996). A Corte, com sua composição de
setembro de 1996, só determinou por término ao processo
destes dois casos depois de constatado o cumprimento, por
parte de Honduras, das sentenças de indenização
compensatória e de interpretação desta, e depois de
haver tomado nota dos pontos de vista não só da Comissão
e do Estado demandado, mas também dos peticionários e
dos representantes legais das famílias das vítimas[1].
O
campo estava aberto à modificação, neste particular,
das disposições pertinentes do Regulamento da Corte,
sobretudo a partir dos desenvolvimentos no procedimento no
caso El Amparo.
O próximo passo, decisivo, foi dado no novo Regulamento
da Corte, adotado em 16.09.1996 e vigente a partir de
01.01.1997, - de cujo projeto original tivemos a honra de
ser relator por designação da Corte, - cujo artigo 23
dispõe que “na etapa de reparações, os representantes
das vítimas ou de seus familiares poderão apresentar
seus próprios argumentos e provas de forma autônoma”.
Este passo significativo abre o caminho para
desenvolvimentos subseqüentes na mesma direção, ou
seja, de modo a assegurar que, no futuro previsível, os
indivíduos tenham locus
standi no procedimento ante a Corte não só na etapa
de reparações como também na do mérito dos casos a ela
submetidos pela Comissão, ou seja, em última análise,
em todas as
etapas do procedimento ante a Corte Interamericana (um
antigo propósito nosso).
O Direito Individual de
Acesso Direto (Jus Standi) aos Tribunais Internacionais de
Direitos Humanos
São
sólidos os argumentos que, em nosso entendimento, militam
em favor do pronto reconhecimento do locus
standi das supostas vítimas no procedimento ante a
Corte Interamericana em casos já enviados a esta pela
Comissão. Tais argumentos encontram-se desenvolvidos em
nosso curso na Sessão Externa (para a América Central)
da Academia de Direito Internacional da Haia, realizada na
Costa Rica em abril - maio de 1995[2],
que são resumidos a seguir.
Em
primeiro lugar, ao reconhecimento de direitos, nos planos
tanto nacional como internacional, corresponde a
capacidade processual de vindicá-los ou exercê-los. A
proteção de direitos deve ser dotada do locus standi in judicio das supostas vítimas (ou seus
representantes legais), que contribui para melhor instruir
o processo, e sem o qual estará este último desprovido
em parte do elemento do contraditório (essencial na busca
da verdade e da justiça), ademais de irremediavelmente
mitigado e em flagrante desequilíbrio processual. A
jurisdicionalização do procedimento em muito contribui
para remediar e por um fim a estas insuficiências e
deficiências, que não mais encontram qualquer
justificativa em nossos dias.
É
da própria essência do contencioso internacional dos
direitos humanos o contraditório entre as vítimas de
violações e os Estados demandados. Tal locus
standi dos indivíduos em questão é a conseqüência
lógica, no plano processual, de um sistema de proteção
que consagra direitos individuais no plano internacional,
porquanto não é razoável conceber direitos sem a
capacidade processual de vindicá-los. Ademais, o direito
de livre expressão das supostas vítimas é elemento
integrante do próprio devido processo legal, nos planos
tanto nacional como internacional. A equidade e a transparência
do processo, que se aplicam igualmente aos órgãos
internacionais de supervisão, são benéficas a todos,
inclusive os indivíduos demandantes e os Estados
demandados.
Em
segundo lugar, o direito de acesso à justiça em nível
internacional deve fazer-se acompanhar da garantia da
igualdade processual das partes (equality of arms/égalité des armes), essencial em todo sistema
jurisdicional de proteção dos direitos humanos. Em
terceiro lugar, em casos de comprovadas violações de
direitos humanos, são as próprias vítimas - a
verdadeira parte demandante ante a Corte - (ou seus
parentes ou herdeiros) que recebem as reparações e
indenizações. Estando as vítimas presentes no início
e no final do processo, não há sentido em negar-lhes presença durante
o mesmo.
A
estas considerações de princípio se agregam outras, de
ordem prática, igualmente em favor da representação
direta das vítimas ante a Corte, em casos já a ela
submetidos pela Comissão. Os avanços neste sentido convêm
não só às supostas vítimas, mas a todos: aos Estados
demandados, na medida em que contribuem à
jurisdicionalização do mecanismo de proteção[3];
à Corte, para ter melhor instruído o processo; e à
Comissão, para por fim à ambigüidade de seu papel[4],
atendo-se à sua função própria de guardiã da aplicação
correta e justa da Convenção (e não mais com a função
adicional de “intermediário” entre os indivíduos e a
Corte). Os avanços nesta direção, na atual etapa de
evolução do sistema interamericano de proteção, são
responsabilidade conjunta da Corte e da Comissão.
A
isto há que agregar que os avanços neste sentido (da
representação direta dos indivíduos perante a Corte), -
já consolidados no sistema europeu de proteção, - hão
de se lograr em nossa região mediante critérios e regras
prévia e claramente definidos, com as necessárias adaptações
às realidades da operação de nosso sistema
interamericano de proteção. Isto requereria, e.g., a
previsão de assistência jurídica ex
officio aos indivíduos demandantes por parte da
Comissão Interamericana, sempre que não estiverem eles
em condições de contar com os serviços profissionais de
um representante legal.
Neste
final de século, encontram-se definitivamente superadas
as razões históricas que levaram à denegação - a
nosso ver injustificável, desde o inicio, - do locus
standi das supostas vítimas. Com efeito, nos sistemas
europeu e interamericano de direitos humanos, a própria
prática cuidou de revelar as insuficiências, deficiências
e distorções do mecanismo paternalista da intermediação
das Comissões Européia e Interamericana entre os indivíduos
e as respectivas Cortes - Européia e Interamericana - de
Direitos Humanos, que, não surpreendentemente, não
resistiu à erosão do tempo.
Enfim,
e voltando às considerações de princípio, é mediante
o locus standi in judicio das supostas vítimas ante os tribunais
internacionais de direitos humanos (nos sistemas regionais
de proteção) que se logrará a consolidação da plena
personalidade e capacidade jurídicas internacionais da
pessoa humana, para fazer valer seus direitos, quando as
instâncias nacionais se mostrarem incapazes de assegurar
a realização da justiça. Nos esforços de aprimoramento
do mecanismo de proteção sob a Convenção Americana, a
ênfase deve recair na jurisdicionalização de tal
mecanismo, particularmente no que tange à operação do método
de petições ou reclamações, - sem prejuízo do uso
continuado pela Comissão Interamericana dos métodos de
relatórios e determinação dos fatos.
O
aperfeiçoamento do mecanismo do sistema interamericano de
proteção deve ser objeto de considerações de ordem
essencialmente jurídico-humanitária, inclusive como
garantia adicional às partes - tanto os indivíduos
demandantes como os Estados demandados - em casos
contenciosos de direitos humanos. Como advertimos já há
uma década em curso ministrado na Academia de Direito
Internacional da Haia, todo jusinternacionalista, fiel às
origens históricas da disciplina, saberá contribuir a
resgatar a posição do ser humano no direito das gentes (droit des gens),
e a sustentar o reconhecimento e a cristalização de sua
personalidade e plena capacidade jurídica internacionais[5].
A
mesma advertência voltamos a formular, recentemente, em
Explicações de Votos nos casos Castillo
Páez e Loayza
Tamayo (exceções preliminares, janeiro de 1996), e
no caso Castillo
Petruzzi (exceções preliminares, setembro de 1998),
relativos ao Peru, no sentido da necessidade de superar a capitis
diminutio de que padecem os indivíduos peticionários
no sistema interamericano de proteção, em razão de
considerações dogmáticas próprias de outra época histórica
que buscavam evitar seu acesso direto ao órgão judicial
internacional. Tais considerações, agregamos, mostram-se
inteiramente sem sentido, ainda mais em se tratando de um
tribunal internacional de
direitos humanos. Propugnamos, em nossos Votos
supracitados, pela superação da concepção paternalista
e anacrônica da total intermediação da Comissão
Interamericana de Direitos Humanos entre os indivíduos
peticionários (a verdadeira parte demandante) e a Corte,
de modo a conceder-lhes acesso direto (jus standi) à Corte[6].
O
necessário reconhecimento do locus
standi in judicio das supostas vítimas (ou seus
representantes legais) ante a Corte Interamericana
constitui, nesta linha de pensamento, um avanço dos mais
importantes, mas não necessariamente a etapa final do
aperfeiçoamento do sistema interamericano de proteção,
pelo menos tal como concebemos tal aperfeiçoamento. De
tal locus standi
há que se evoluir rumo ao reconhecimento futuro do
direito de acesso
direto dos indivíduos à Corte (jus
standi), para submeter um caso concreto diretamente a
ela, prescindindo totalmente da Comissão para isto. O dia
em que o logremos, - na linha da entrada em vigor
iminente, em 01 de novembro de 1998, do Protocolo nº 11
(de 1994) à Convenção Européia de Direitos Humanos (supra),
- teremos alcançado o ponto culminante, também em nosso
sistema interamericano de proteção, de um grande
movimento de dimensão universal a lograr o resgate do ser
humano como sujeito do Direito Internacional dos Direitos
Humanos, dotado de plena capacidade jurídica
internacional.
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