Projeto DHnet
Ponto de Cultura
Podcasts
 
 Direitos Humanos
 Desejos Humanos
 Educação EDH
 Cibercidadania
 Memória Histórica
 Arte e Cultura
 Central de Denúncias
 Banco de Dados
 MNDH Brasil
 ONGs Direitos Humanos
 ABC Militantes DH
 Rede Mercosul
 Rede Brasil DH
 Redes Estaduais
 Rede Estadual RN
 Mundo Comissões
 Brasil Nunca Mais
 Brasil Comissões
 Estados Comissões
 Comitês Verdade BR
 Comitê Verdade RN
 Rede Lusófona
 Rede Cabo Verde
 Rede Guiné-Bissau
 Rede Moçambique


O Sistema Interamericano de Direitos Humanos no limiar do Novo Século: Recomendações para o fortalecimento de seu mecanismo de proteção1

Antônio Augusto Cançado Trindade2

I - Considerações Preliminares
O estudo dos sistemas regionais de proteção dos direitos humanos requer algumas precisões preliminares. A multiplicidade de instrumentos internacionais no presente domínio faz-se acompanhar de sua unidade básica e determinante de propósito: a proteção do ser humano. Os instrumentos globais e regionais sobre direitos humanos têm se inspirado em uma fonte comum, a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, ponto de irradiação dos esforços em prol da realização do ideal de universalidade dos direitos humanos. Com efeito, referências expressas à Declaração Universal encontram-se, significativamente, nos preâmbulos não só das Convenções de direitos humanos das Nações Unidas, como também nos das Convenções regionais vigentes – as Convenções Européia (1950) e Americana (1969) sobre Direitos Humanos e a Carta Africana sobre Direitos Humanos e dos Povos (1981).

No processo de generalização da proteção dos direitos humanos, a unidade conceitual dos direitos humanos – todos inerentes à pessoa humana – veio a transcender as distintas formulações de direitos reconhecidos em diferentes instrumentos.

Em nada surpreende que ao indivíduo seja concedida a liberdade de escolha do procedimento internacional a ser acionado (em nível global ou regional) – o que pode reduzir ou minimizar a possibilidade de conflito no plano normativo. Tampouco em nada surpreende que se aplique o critério da primazia da norma mais favorável à suposta vítima de violação de direitos humanos (seja tal norma de direito internacional – consagrada em um tratado universal ou regional – ou de direito interno). Tal complementaridade de instrumentos de direitos humanos em níveis global e regional reflete a especificidade e autonomia do Direito Internacional dos Direitos Humanos, caracterizado essencialmente como um direito de proteção3.

Ao se complementarem, os instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos que operam nos planos global e regional desviam assim o foco de atenção ou ênfase da questão clássica da estrita delimitação de competências para a da garantia de uma proteção cada mais eficaz dos direitos humanos4. E não poderia ser de outra forma, em um domínio do direito em que predominam interesses comuns superiores, considerações de ordre public e a noção de garantia coletiva dos direitos protegidos. Sob esta ótica, ficam descartadas quaisquer pretensões ou insinuações de supostos antagonismos entre soluções globais ou regionais, porquanto a multiplicação de instrumentos – globais e regionais, gerais ou especializados – sobre direitos humanos teve o propósito e a consequência de ampliar o âmbito da proteção devida às supostas vítimas5.
Tanto é assim que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969, por exemplo, teve o cuidado de incluir, em seu preâmbulo, referência igualmente aos princípios pertinentes “reafirmados e desenvolvidos” em distintos instrumentos “tanto de âmbito universal como regional”. E, duas décadas antes, a Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem de 1948, ao mesmo tempo em que afirmava que a proteção internacional dos direitos humanos deve ser guia principalísima del derecho americano en evolución, declarava que os direitos humanos essenciais reconhecidos em ocasiões reiteradas pelos Estados Americanos baseiam-se nos “atributos da pessoa humana”.

A universalidade, no entanto, não equivale à uniformidade total; ao contrário, é enriquecida pelas particularidades regionais. Cada sistema regional vive seu próprio momento histórico. Assim, no âmbito do sistema africano de proteção, vem de ser aprovado (em Ouagadougou, Burkina Faso, em 8-10 de junho de 1998) o primeiro Protocolo à Carta Africana sobre Direitos Humanos e dos Povos, dispondo sobre a criação da Corte Africana de Direitos Humanos e dos Povos6 para complementar o labor da Comissão Africana de Direitos Humanos e dos Povos. No âmbito do sistema interamericano de proteção, contemplam-se as possibilidades de lograr uma coordenação mais estreita entre a Comissão e a Corte Interamericanas de Direitos Humanos. E, no âmbito do sistema europeu de proteção, por meio do Protocolo n. 11 à Convenção Européia de Direitos Humanos, adotado em maio de 1994, e que entrou em vigor em 1º de novembro de 1998, estabeleceu-se a nova Corte Européia de Direitos Humanos como único órgão jurisdicional do sistema7 (assumindo as funções das anteriores Corte e Comissão Européias de Direitos Humanos), e já operando atualmente como uma verdadeira Corte Constitucional Européia no domínio da proteção dos direitos humanos. Cada sistema regional funciona, pois, em seu próprio ritmo, e, atento à realidade de seu continente, segue sua própria trajetória histórica.
Qualquer prognóstico sobre o futuro dos sistemas regionais de proteção dos direitos humanos deve partir da experiência acumulada nas últimas décadas nesta área. No tocante à evolução do sistema interamericano de proteção em particular, podem-se hoje identificar cinco etapas básicas. A primeira, a dos antecedentes do sistema, encontrou-se marcada pela mescla de instrumentos de conteúdo e efeitos jurídicos variáveis (convenções e resoluções orientadas a determinadas situações ou categorias de direitos). A segunda, de formação do sistema interamericano de proteção, caracterizou-se pelo papel solitariamente primordial da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e pela expansão gradual das faculdades da mesma. A terceira, de institucionalização convencional do sistema, evoluiu a partir da entrada em vigor (em meados de 1978) da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

A quarta etapa, que se desenvolveu a partir do início da década de oitenta, corresponde à consolidação do sistema, mediante a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos e a adoção dos dois Protocolos Adicionais à Convenção Americana, respectivamente sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1988) e sobre a Abolição da Pena de Morte (1990). A estes Protocolos somam-se as Convenções interamericanas setoriais, como a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura (1985), a Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas (1994), a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (1994), e a Convenção Interamericana sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra Pessoas Portadoras de Deficiências (1999), ademais de outras iniciativas relevantes. Nos anos noventa ingressamos em uma quinta etapa, do fortalecimento – que se impõe em nossos dias – do sistema interamericano de proteção8. Ao considerarmos esta última etapa exporemos nossas reflexões e recomendações de lege ferenda com vistas a lograr o referido aperfeiçoamento do sistema de proteção, e em particular da aplicação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, neste limiar do novo século. Passemos, pois, ao exame da evolução, do estado atual e das perspectivas do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos.

II - Antecedentes e Formação do Sistema Interamericano de Proteção
Se tomamos como ponto de partida do sistema interamericano de proteção a Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem de 19489 (juntamente com a Carta Internacional Americana de Garantias Sociais do mesmo ano10), constatamos ter sido ela precedida ou acompanhada de instrumentos de conteúdo e efeitos jurídicos variáveis geralmente voltados a determinadas situações ou categorias de direitos: é o caso de convenções sobre direitos de estrangeiros e de cidadãos naturalizados11, convenções sobre asilo12, convenções sobre direitos da mulher13, de resoluções adotadas em Conferências Interamericanas sobre aspectos distintos da proteção dos direitos humanos14 e declarações daquelas Conferências contendo alusões à temática dos direitos humanos15.

Foi, no entanto, essencialmente a Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem de 1948 que formou a base normativa central da matéria no período que antecede a adoção da Convenção Americana sobre Direitos Humanos em 1969, e continua constituindo-se na principal base normativa vis-à-vis os Estados não-partes na Convenção Americana. A Declaração Americana de 1948 proclamou os direitos nela consagrados como inerentes à pessoa humana, avançou – distintamente da Convenção Americana (cf. infra) e de modo semelhante à Declaração Universal de 1948 – uma visão integral dos direitos humanos (civis, políticos, econômicos, sociais e culturais), e assinalou a correlação entre direitos e deveres.

Em perspectiva histórica, são as seguintes, resumidamente, as principais contribuições da Declaração Americana de 1948 ao desenvolvimento do sistema interamericano de proteção: a) a já mencionada concepção dos direitos humanos como inerentes à pessoa humana; b) a concepção integral dos direitos humanos (abarcando os direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais); c) a base normativa vis-à-vis Estados não-partes na Convenção Americana sobre Direitos Humanos; d) a correlação entre direitos e deveres. Nos últimos anos a Declaração Americana de 1948 tem sido invocada, em ocasiões distintas, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, e.g. em seu primeiro Parecer (de 1982), no tocante à integração entre os sistemas global e regional de proteção; no sexto Parecer (1986), em relação ao conceito de bem comum (art. 32(2) da Convenção Americana); e no décimo Parecer (1989), no que tange à interação interpretativa entre a Declaração, a Convenção Americana, e as normas de direitos humanos da Carta da OEA16.

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos originou-se de uma resolução e não um tratado: a Resolução VIII da V Reunião de Consulta dos Ministros de Relações Exteriores (Santiago, 1959)17. Tinha, segundo seu Estatuto de 1960, um mandato limitado à promoção dos direitos humanos, e desfrutava de posição sui generis dentro do sistema regional. Não obstante, uma vez criada, a própria Comissão Interamericana, passou a assumir postura semelhante, cedo batendo-se por uma ampliação de suas faculdades. Assim, por exemplo, a VIII Reunião de Consulta de Ministros das Relações Exteriores (Punta del Este, 1962), através de outra resolução – a Resolução IX – recomendou ao Conselho da OEA a emenda do Estatuto da Comissão Interamericana de Direitos Humanos no sentido de ampliar suas atribuições e poderes. Foi o que veio a ocorrer na II Conferência Interamericana Extraordinária (Rio de Janeiro, 1965), que, pela Resolução XXII, ampliou os poderes da Comissão para inclusive receber petições ou comunicações sobre violações de direitos humanos.

Assim, os poderes da Comissão passaram a compreender, a par do sistema de relatórios (de tipos distintos, como relatórios de sessões, relatórios anuais e relatórios sobre determinados países), o exame de comunicações, visitas a Estados (com sua aquiescência), e preparo de estudos e seminários. Seus poderes, originalmente limitados, expandiram-se me-diante um processo de interpretação liberal e extensiva; o fato de que seus membros atuavam em sua capacidade pessoal – e não como representantes dos respectivos Estados – certamente favoreceu a interpretação liberal e ampla do Estatuto e Regulamento da Comissão18.

Ainda nos primeiros anos de sua existência, a Comissão foi mais além, já como órgão de proteção dos direitos humanos: no caso da República Dominicana (1965-1966), a Comissão transformou-se em verdadeiro órgão de ação, operando continuamente naquele país por mais de um ano, ultrapassando em muito suas atribuições de órgão de observação e recomendação; tal ação, sem precedentes, ampliou sua competência19; assim, a Comissão atuava pela primeira vez, com a extensão de seus poderes em 1965, em uma situação de guerra civil na República Dominicana, por um período longo e contínuo. Quatro anos após, durante o conflito armado entre Honduras e El Salvador (1969), membros da Comissão permaneceram naqueles países por um período de aproximadamente quatro meses20. Nesse altura, já não mais restava dúvida de que a Comissão havia se consolidado como órgão de ação efetiva na proteção dos direitos humanos.

Com o primeiro Protocolo de Reformas da Carta da OEA (Buenos Aires, 1967), que entrou em vigor em 1970, foi a Comissão enfim erigida em um dos órgãos principais da Organização regional21. Fortaleceu-se, assim, consideravelmente, seu status jurídico, pondo fim a eventuais objeções a sua competência: a Comissão passava assim a ser dotada, finalmente, de base convencional, com um mandato não mais apenas de promoção, mas também de controle e supervisão da proteção de direitos humanos. Revestiu-se, desse modo, de uma base convencional definida22. Estava aberto o campo ao fortalecimento “constitucional” do exercício de seus poderes e da significação política de suas decisões23.

A partir de então a Comissão pode atuar com ampla margem de ação, como ilustrado, por exemplo, pelo caso chileno, em que a Comissão se engajou na coleta de dados relevantes sobre a situação, realizou missões de investigação in loco, e elaborou recomendações e uma série de relatórios a partir de 197324. Este foi apenas um dentre vários outros casos de participação ativa da Comissão na década de setenta25. Uma das mais completas investigações jamais realizadas pela Comissão encontra-se no relatório de 1979 sobre os desaparecidos na Argentina26. Ao final dos anos setenta, a Comissão havia efetuado 11 visitas in loco, total este que duplicou ao final da década de oitenta27. Tais observações in loco têm tido, ademais, uma função preventiva. A Comissão Interamericana é certamente um dos órgãos de supervisão internacional dos direitos humanos que mais uso tem feito de missões de observação in loco28.

Os Relatórios Anuais da Comissão passaram a incluir uma seção contendo informações fornecidas por governos de Estados-membros da OEA sobre o progresso alcançado na realização dos objetivos consagrados nos instrumentos básicos do sistema interamericano de proteção29. A Comissão não deixou de instar os Estados-membros da OEA a incorporar nos textos de suas Constituições certas categorias de direitos (ou a incorporar os direitos internacionalmente consagrados em seu direito interno) e a harmonizar suas legislações respectivas com os preceitos contidos nos tratados de direitos humanos30. Alguns Estados têm assim procedido até o presente.
No tocante ao exame das petições ou comunicações recebidas, contendo alegações de violações de direitos humanos, a natureza dos procedimentos adotados permitiu à Comissão Interamericana agir com flexibilidade e evitar a pronta rejeição de certas comunicações com base nas condições de admissibilidade (tais como, e.g., o requisito do prévio esgotamento, pelos demandantes, dos recursos de direito interno). À Comissão tem sido possível, mediante uma série de técnicas processuais31, e pelo motivo básico acima indicado, usar presunções mais a favor dos reclamantes no que tange às condições de admissibilidade de suas petições ou comunicações32.
Assim, em relação ao requisito de admissibilidade do prévio esgotamento dos recursos internos, por exemplo, a Comissão tem adotado uma diversidade de soluções, que incluem a solicitação de informações adicionais e o adiamento da decisão (ao invés da simples rejeição das petições), e a reabertura subseqüente dos casos33. Em virtude de uma regra de interpretação adotada na II Conferência Interamericana Extraordinária (Rio de Janeiro, 1965)34, admitiu-se que o requisito de admissibilidade do prévio esgotamento de recursos do direito interno não se aplicaria aos chamados “casos gerais” (de violações generalizadas de direitos humanos). A questão foi objeto de estudos em dezembro de 1968 e maio de 197235, e em 1971-1972 aquela regra de interpretação era aplicada no Caso n. 1.68436. Pouco depois, em outro caso, em 1974, a Comissão voltou a aplicar aquela regra de interpretação em alguns casos concernentes à suspensão de garantias do devido processo legal e a outras irregularidades, e à ineficácia dos recursos de amparo e de habeas corpus; com a dispensa do pré-requisito do esgotamento dos recursos internos, pode a Comissão proceder de imediato ao exame do mérito dos casos37.

A prática da Comissão Interamericana a respeito, mesmo antes da adoção e entrada em vigor da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, tem demonstrado que aquele requisito de admissibilidade não é sacrossanto, imutável ou absoluto, e tem sido aplicado – à luz do critério da eficácia dos recursos internos – com muito mais flexibilidade no contexto da proteção internacional dos direitos humanos. Aqui os recursos internos formam parte integrante do próprio sistema de proteção internacional dos direitos humanos, com ênfase no elemento de reparação (redress) e não no processo de um esgotamento mecânico de recursos. Tal requisito dá testemunho da interação entre o direito internacional e o direito interno no presente contexto de proteção, fundamentalmente orientado às vítimas, aos direitos dos seres humanos e não dos Estados. As regras geralmente reconhecidas do direito internacional – às quais se refere a formulação do requisito do esgotamento nos tratados e instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos – ademais de seguirem uma evolução própria nos distintos contextos em que se aplicam, sofrem necessa-riamente, quando inseridas em tratados e instrumentos de direitos humanos, um certo grau de ajuste ou adaptação, ditado pelo caráter especial do objeto e propósito destes e pela especificidade amplamente reconhecida da proteção internacional dos direitos humanos38. A prática da Comissão Interamericana neste particular constitui uma clara ilustração deste entendimento.
Em sua vasta prática de exame de petições ou comunicações individuais, a Comissão tem adotado resoluções de conteúdo variável de caso a caso: em tais resoluções a Comissão tem declarado que os atos relatados no caso constituíam prima facie uma violação de direitos humanos, ou recomendado uma ampla investigação do que parecia constituir uma violação de direitos humanos, ou decidido suspender a consideração do caso até que os resultados de uma investigação em curso se tornassem conhecidos, ou declarado enfim não ter ocorrido a violação de direitos humanos alegada na petição39. Em alguns casos tem a Comissão logrado uma solução amistosa com os Estados demandados40.
A atuação da Comissão Interamericana, já bem antes da entrada em vigor da Convenção Americana, foi certamente um elemento decisivo para a evolução do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos. Até 1975, por exemplo, tinha a Comissão examinado mais de 1.800 comunicações sobre direitos humanos, obra considerável para um órgão até então operando solitariamente, sem que a Convenção tivesse entrado em vigor. Em fins de 1978 (ano da entrada em vigor da Convenção Americana), já chegavam a 3.200 os casos examinados pela Comissão (compreendendo mais de dez mil vítimas, de 18 ou 19 países); isto significa que a Comissão considerou 20% dos casos em seus primeiros quinze anos de atuação, e aproximadamente 80% dos casos – até a entrada em vigor da Convenção Americana – no período de cinco anos entre 1973 e 197841.

Posteriormente, de 1978 até meados de 1985, outras 6.666 petições ou comunicações foram recebidas pela Comissão, – total que, ao início dos anos noventa, ultrapassou as 10.000 comunicações42.
Aos resultados concretos em inúmeros casos individuais acrescente-se a importante função preventiva exercida pela Comissão. Em decorrência de suas recomendações de caráter geral dirigidas a determinados Estados (demandados), ou formuladas em seus relatórios anuais, “foram derrogados ou modificados leis, decretos e outros dispositivos que afetavam negativamente a vigência dos direitos humanos”, foram criados ou fortalecidos mecanismos de proteção no ordenamento jurídico interno ou nacional, e “se estabeleceram ou aperfeiçoaram recursos e procedimentos para a melhor tutela” dos direitos humanos43. A par do sistema de petições ou comunicações, têm também se revestido de relevância o sistema de investigações (observações in loco) e a elaboração dos relatórios por si-tuações gerais em países e os relatórios periódicos apresentados pela Comissão à Assembléia Geral da OEA contendo considerações por vezes inclusive de caráter doutrinário44.

III - Institucionalização Convencional do Sistema Interamericano de Proteção
Outro marco importante na evolução do sistema interamericano de proteção reside na entrada em vigor, em meados de 1978, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 196945, que corresponde à institucionalização convencional do sistema interamericano de proteção. Para alcançar este estágio, foi necessário esperar quase uma década, desde a adoção da Convenção em 1969. Quatro anos antes, já em 1965, pela Resolução XXIV, a II Conferência Extraordinária Interamericana decidira-se pela preparação de uma Convenção Americana sobre Direitos Humanos, cujo anteprojeto original foi elaborado pela Comissão Interamericana em 1967, e por esta adotado no ano seguinte. O texto foi submetido à consideração dos Estados-membros da OEA e, um ano após, a Conferência Interamericana Especial sobre Direitos Humanos (realizada em San José de Costa Rica, de 7 a 22 de novembro de 1969) enfim preparou e adotou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos – também conhecida como Pacto de San José de Costa Rica46 – que entrou em vigor aos 18 de julho de 1978.
O processo preparatório do chamado Pacto de San José teve presente a questão da coexistência e coordenação da nova Convenção regional com os instrumentos internacionais de direitos humanos das Nações Unidas47. Com a entrada em vigor da Convenção, prevendo o estabelecimento de uma Comissão e uma Corte Interamericanas de Direitos Humanos, surgiram questões como a “transição” entre o regime preexistente e o da Convenção no tocante ao labor da Comissão48. Ficou esclarecido que a Comissão passava a ser dotada de uma dualidade de funções: efetivamente continuou aplicando as normas que vinham regendo sua atuação, inclusive em relação aos Estados não-partes na Convenção Americana, e passou naturalmente a aplicar aos Estados-partes as disposições relevantes da Convenção49. Com efeito, em outubro de 1979, a Assembléia Geral da OEA aprovou o novo Estatuto da Comissão, incluindo atribuições em relação seja a todos os Estados-membros da OEA (inclusive os não-ratificantes da Convenção Americana – arts. 18 e 20), seja aos Estados-partes na Convenção em particular (art. 19)50.

Uma ilustração da interação de instrumentos de direitos humanos de bases jurídicas distintas na prática subseqüente da Comissão foi fornecida pelo tratamento dispensado ao Caso n. 9.247, concernente aos Estados Unidos (Estado não-ratificante), em que a Comissão chegou a afirmar que, em decorrência das obrigações contidas nos artigos 3º(j), 16, 51(e), 112 e 150 da Carta da OEA, as disposições de outros instrumentos da OEA sobre direitos humanos – seu Estatuto e Regulamento, e a Declaração Americana de 1948 – adquiriram “força obrigatória”. Por “direitos humanos” entenderam-se tanto os direitos definidos na Convenção Americana como os consagrados na Declaração Americana de 1948. Além disso, a Comissão, como “órgão autônomo” da OEA, entendeu que as disposições sobre direitos humanos da Declaração Americana derivavam, seu caráter normativo ou “força obrigatória” de sua interação com as disposições relevantes da própria Carta da OEA51.

No tocante ao mecanismo de proteção, a Convenção Americana distingue-se significativamente da Européia em que, anteriormente à entrada em vigor, em 1º.11.1998, do Protocolo n. XI, o direito de petição indivi-dual tinha, tal como originalmente concebido, uma base facultativa, e o de petição interestatal mandatória (arts. 25 e 24, respectivamente), sob a Convenção Americana passou-se ao contrário, sendo concebido como mandatório o direito de petição individual, e facultativo o de queixa interestatal (arts. 44 e 45, respectivamente). Provavelmente uma reclamação interestatal teria repercussões bem mais amplas e profundas nas relações internacionais na região do que muitas das petições individuais (não raro rejeitadas como inadmissíveis); enquanto no sistema europeu as petições interestatais têm raramente sido utilizadas52, apesar de seu caráter mandatório, no sistema interamericano – em que foi relegado a mecanismo facultativo53 – jamais o foram, até o presente. A Convenção Americana previu a possibilidade de solução amistosa baseada no respeito aos direitos humanos nela consagrados (art. 48(1)(f)), o que tem sido alcançado na prática em diversos casos.

A Convenção Americana determinou que a Comissão Interamericana seria composta – a exemplo do que ocorria anteriormente – de sete membros, “de alta autoridade moral e de reconhecido saber em matéria de direitos humanos” (art. 34), eleitos a título pessoal pelos Estados-membros da OEA em sua Assembléia Geral (art. 36), para um mandato de quatro anos, podendo ser reeleitos uma vez (art. 37). Além da Comissão, a Convenção Americana estabeleceu, como seu órgão judicial autônomo, aCorte Interamericana de Direitos Humanos, encarregada de sua interpretação e aplicação, e com o propósito principal de julgar

Desde 1995 © www.dhnet.org.br Copyleft - Telefones: 055 84 3211.5428 e 9977.8702 WhatsApp
Skype:direitoshumanos Email: enviardados@gmail.com Facebook: DHnetDh
Busca DHnet Google
Notícias de Direitos Humanos
Loja DHnet
DHnet 18 anos - 1995-2013
Linha do Tempo
Sistemas Internacionais de Direitos Humanos
Sistema Nacional de Direitos Humanos
Sistemas Estaduais de Direitos Humanos
Sistemas Municipais de Direitos Humanos
História dos Direitos Humanos no Brasil - Projeto DHnet
MNDH
Militantes Brasileiros de Direitos Humanos
Projeto Brasil Nunca Mais
Direito a Memória e a Verdade
Banco de Dados  Base de Dados Direitos Humanos
Tecido Cultural Ponto de Cultura Rio Grande do Norte
1935 Multimídia Memória Histórica Potiguar