
O Sistema Interamericano de Direitos Humanos no limiar do Novo
Século: Recomendações para o fortalecimento de seu mecanismo de
proteção1
Antônio Augusto
Cançado Trindade2
I - Considerações Preliminares
O estudo dos sistemas regionais de proteção dos direitos humanos
requer algumas precisões preliminares. A multiplicidade de
instrumentos internacionais no presente domínio faz-se acompanhar
de sua unidade básica e determinante de propósito: a proteção
do ser humano. Os instrumentos globais e regionais sobre direitos
humanos têm se inspirado em uma fonte comum, a Declaração
Universal de Direitos Humanos de 1948, ponto de irradiação dos
esforços em prol da realização do ideal de universalidade dos
direitos humanos. Com efeito, referências expressas à
Declaração Universal encontram-se, significativamente, nos
preâmbulos não só das Convenções de direitos humanos das
Nações Unidas, como também nos das Convenções regionais
vigentes – as Convenções Européia (1950) e Americana (1969)
sobre Direitos Humanos e a Carta Africana sobre Direitos Humanos e
dos Povos (1981).
No processo de generalização da
proteção dos direitos humanos, a unidade conceitual dos direitos
humanos – todos inerentes à pessoa humana – veio a
transcender as distintas formulações de direitos reconhecidos em
diferentes instrumentos.
Em nada surpreende que ao
indivíduo seja concedida a liberdade de escolha do procedimento
internacional a ser acionado (em nível global ou regional) – o
que pode reduzir ou minimizar a possibilidade de conflito no plano
normativo. Tampouco em nada surpreende que se aplique o critério
da primazia da norma mais favorável à suposta vítima de
violação de direitos humanos (seja tal norma de direito
internacional – consagrada em um tratado universal ou regional
– ou de direito interno). Tal complementaridade de instrumentos
de direitos humanos em níveis global e regional reflete a
especificidade e autonomia do Direito Internacional dos Direitos
Humanos, caracterizado essencialmente como um direito de
proteção3.
Ao se complementarem, os
instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos que
operam nos planos global e regional desviam assim o foco de
atenção ou ênfase da questão clássica da estrita
delimitação de competências para a da garantia de uma
proteção cada mais eficaz dos direitos humanos4. E não poderia
ser de outra forma, em um domínio do direito em que predominam
interesses comuns superiores, considerações de ordre public e a
noção de garantia coletiva dos direitos protegidos. Sob esta
ótica, ficam descartadas quaisquer pretensões ou insinuações
de supostos antagonismos entre soluções globais ou regionais,
porquanto a multiplicação de instrumentos – globais e
regionais, gerais ou especializados – sobre direitos humanos
teve o propósito e a consequência de ampliar o âmbito da
proteção devida às supostas vítimas5.
Tanto é assim que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos
de 1969, por exemplo, teve o cuidado de incluir, em seu
preâmbulo, referência igualmente aos princípios pertinentes “reafirmados
e desenvolvidos” em distintos instrumentos “tanto de âmbito
universal como regional”. E, duas décadas antes, a Declaração
Americana de Direitos e Deveres do Homem de 1948, ao mesmo tempo
em que afirmava que a proteção internacional dos direitos
humanos deve ser guia principalísima del derecho americano en
evolución, declarava que os direitos humanos essenciais
reconhecidos em ocasiões reiteradas pelos Estados Americanos
baseiam-se nos “atributos da pessoa humana”.
A universalidade, no entanto, não
equivale à uniformidade total; ao contrário, é enriquecida
pelas particularidades regionais. Cada sistema regional vive seu
próprio momento histórico. Assim, no âmbito do sistema africano
de proteção, vem de ser aprovado (em Ouagadougou, Burkina Faso,
em 8-10 de junho de 1998) o primeiro Protocolo à Carta Africana
sobre Direitos Humanos e dos Povos, dispondo sobre a criação da
Corte Africana de Direitos Humanos e dos Povos6 para complementar
o labor da Comissão Africana de Direitos Humanos e dos Povos. No
âmbito do sistema interamericano de proteção, contemplam-se as
possibilidades de lograr uma coordenação mais estreita entre a
Comissão e a Corte Interamericanas de Direitos Humanos. E, no
âmbito do sistema europeu de proteção, por meio do Protocolo n.
11 à Convenção Européia de Direitos Humanos, adotado em maio
de 1994, e que entrou em vigor em 1º de novembro de 1998,
estabeleceu-se a nova Corte Européia de Direitos Humanos como
único órgão jurisdicional do sistema7 (assumindo as funções
das anteriores Corte e Comissão Européias de Direitos Humanos),
e já operando atualmente como uma verdadeira Corte Constitucional
Européia no domínio da proteção dos direitos humanos. Cada
sistema regional funciona, pois, em seu próprio ritmo, e, atento
à realidade de seu continente, segue sua própria trajetória
histórica.
Qualquer prognóstico sobre o futuro dos sistemas regionais de
proteção dos direitos humanos deve partir da experiência
acumulada nas últimas décadas nesta área. No tocante à
evolução do sistema interamericano de proteção em particular,
podem-se hoje identificar cinco etapas básicas. A primeira, a dos
antecedentes do sistema, encontrou-se marcada pela mescla de
instrumentos de conteúdo e efeitos jurídicos variáveis
(convenções e resoluções orientadas a determinadas situações
ou categorias de direitos). A segunda, de formação do sistema
interamericano de proteção, caracterizou-se pelo papel
solitariamente primordial da Comissão Interamericana de Direitos
Humanos e pela expansão gradual das faculdades da mesma. A
terceira, de institucionalização convencional do sistema,
evoluiu a partir da entrada em vigor (em meados de 1978) da
Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
A quarta etapa, que se desenvolveu
a partir do início da década de oitenta, corresponde à
consolidação do sistema, mediante a jurisprudência da Corte
Interamericana de Direitos Humanos e a adoção dos dois
Protocolos Adicionais à Convenção Americana, respectivamente
sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1988) e sobre a
Abolição da Pena de Morte (1990). A estes Protocolos somam-se as
Convenções interamericanas setoriais, como a Convenção
Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura (1985), a
Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de
Pessoas (1994), a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir
e Erradicar a Violência contra a Mulher (1994), e a Convenção
Interamericana sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra Pessoas Portadoras de Deficiências (1999),
ademais de outras iniciativas relevantes. Nos anos noventa
ingressamos em uma quinta etapa, do fortalecimento – que se
impõe em nossos dias – do sistema interamericano de
proteção8. Ao considerarmos esta última etapa exporemos nossas
reflexões e recomendações de lege ferenda com vistas a lograr o
referido aperfeiçoamento do sistema de proteção, e em
particular da aplicação da Convenção Americana sobre Direitos
Humanos, neste limiar do novo século. Passemos, pois, ao exame da
evolução, do estado atual e das perspectivas do sistema
interamericano de proteção dos direitos humanos.
II - Antecedentes e Formação do
Sistema Interamericano de Proteção
Se tomamos como ponto de partida do sistema interamericano de
proteção a Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem
de 19489 (juntamente com a Carta Internacional Americana de
Garantias Sociais do mesmo ano10), constatamos ter sido ela
precedida ou acompanhada de instrumentos de conteúdo e efeitos
jurídicos variáveis geralmente voltados a determinadas
situações ou categorias de direitos: é o caso de convenções
sobre direitos de estrangeiros e de cidadãos naturalizados11,
convenções sobre asilo12, convenções sobre direitos da
mulher13, de resoluções adotadas em Conferências
Interamericanas sobre aspectos distintos da proteção dos
direitos humanos14 e declarações daquelas Conferências contendo
alusões à temática dos direitos humanos15.
Foi, no entanto, essencialmente a
Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem de 1948 que
formou a base normativa central da matéria no período que
antecede a adoção da Convenção Americana sobre Direitos
Humanos em 1969, e continua constituindo-se na principal base
normativa vis-à-vis os Estados não-partes na Convenção
Americana. A Declaração Americana de 1948 proclamou os direitos
nela consagrados como inerentes à pessoa humana, avançou –
distintamente da Convenção Americana (cf. infra) e de modo
semelhante à Declaração Universal de 1948 – uma visão
integral dos direitos humanos (civis, políticos, econômicos,
sociais e culturais), e assinalou a correlação entre direitos e
deveres.
Em perspectiva histórica, são as
seguintes, resumidamente, as principais contribuições da
Declaração Americana de 1948 ao desenvolvimento do sistema
interamericano de proteção: a) a já mencionada concepção dos
direitos humanos como inerentes à pessoa humana; b) a concepção
integral dos direitos humanos (abarcando os direitos civis,
políticos, econômicos, sociais e culturais); c) a base normativa
vis-à-vis Estados não-partes na Convenção Americana sobre
Direitos Humanos; d) a correlação entre direitos e deveres. Nos
últimos anos a Declaração Americana de 1948 tem sido invocada,
em ocasiões distintas, pela Corte Interamericana de Direitos
Humanos, e.g. em seu primeiro Parecer (de 1982), no tocante à
integração entre os sistemas global e regional de proteção; no
sexto Parecer (1986), em relação ao conceito de bem comum (art.
32(2) da Convenção Americana); e no décimo Parecer (1989), no
que tange à interação interpretativa entre a Declaração, a
Convenção Americana, e as normas de direitos humanos da Carta da
OEA16.
A Comissão Interamericana de
Direitos Humanos originou-se de uma resolução e não um tratado:
a Resolução VIII da V Reunião de Consulta dos Ministros de
Relações Exteriores (Santiago, 1959)17. Tinha, segundo seu
Estatuto de 1960, um mandato limitado à promoção dos direitos
humanos, e desfrutava de posição sui generis dentro do sistema
regional. Não obstante, uma vez criada, a própria Comissão
Interamericana, passou a assumir postura semelhante, cedo
batendo-se por uma ampliação de suas faculdades. Assim, por
exemplo, a VIII Reunião de Consulta de Ministros das Relações
Exteriores (Punta del Este, 1962), através de outra resolução
– a Resolução IX – recomendou ao Conselho da OEA a emenda do
Estatuto da Comissão Interamericana de Direitos Humanos no
sentido de ampliar suas atribuições e poderes. Foi o que veio a
ocorrer na II Conferência Interamericana Extraordinária (Rio de
Janeiro, 1965), que, pela Resolução XXII, ampliou os poderes da
Comissão para inclusive receber petições ou comunicações
sobre violações de direitos humanos.
Assim, os poderes da Comissão
passaram a compreender, a par do sistema de relatórios (de tipos
distintos, como relatórios de sessões, relatórios anuais e
relatórios sobre determinados países), o exame de
comunicações, visitas a Estados (com sua aquiescência), e
preparo de estudos e seminários. Seus poderes, originalmente
limitados, expandiram-se me-diante um processo de interpretação
liberal e extensiva; o fato de que seus membros atuavam em sua
capacidade pessoal – e não como representantes dos respectivos
Estados – certamente favoreceu a interpretação liberal e ampla
do Estatuto e Regulamento da Comissão18.
Ainda nos primeiros anos de sua
existência, a Comissão foi mais além, já como órgão de
proteção dos direitos humanos: no caso da República Dominicana
(1965-1966), a Comissão transformou-se em verdadeiro órgão de
ação, operando continuamente naquele país por mais de um ano,
ultrapassando em muito suas atribuições de órgão de
observação e recomendação; tal ação, sem precedentes,
ampliou sua competência19; assim, a Comissão atuava pela
primeira vez, com a extensão de seus poderes em 1965, em uma
situação de guerra civil na República Dominicana, por um
período longo e contínuo. Quatro anos após, durante o conflito
armado entre Honduras e El Salvador (1969), membros da Comissão
permaneceram naqueles países por um período de aproximadamente
quatro meses20. Nesse altura, já não mais restava dúvida de que
a Comissão havia se consolidado como órgão de ação efetiva na
proteção dos direitos humanos.
Com o primeiro Protocolo de
Reformas da Carta da OEA (Buenos Aires, 1967), que entrou em vigor
em 1970, foi a Comissão enfim erigida em um dos órgãos
principais da Organização regional21. Fortaleceu-se, assim,
consideravelmente, seu status jurídico, pondo fim a eventuais
objeções a sua competência: a Comissão passava assim a ser
dotada, finalmente, de base convencional, com um mandato não mais
apenas de promoção, mas também de controle e supervisão da
proteção de direitos humanos. Revestiu-se, desse modo, de uma
base convencional definida22. Estava aberto o campo ao
fortalecimento “constitucional” do exercício de seus poderes
e da significação política de suas decisões23.
A partir de então a Comissão pode
atuar com ampla margem de ação, como ilustrado, por exemplo,
pelo caso chileno, em que a Comissão se engajou na coleta de
dados relevantes sobre a situação, realizou missões de
investigação in loco, e elaborou recomendações e uma série de
relatórios a partir de 197324. Este foi apenas um dentre vários
outros casos de participação ativa da Comissão na década de
setenta25. Uma das mais completas investigações jamais
realizadas pela Comissão encontra-se no relatório de 1979 sobre
os desaparecidos na Argentina26. Ao final dos anos setenta, a
Comissão havia efetuado 11 visitas in loco, total este que
duplicou ao final da década de oitenta27. Tais observações in
loco têm tido, ademais, uma função preventiva. A Comissão
Interamericana é certamente um dos órgãos de supervisão
internacional dos direitos humanos que mais uso tem feito de
missões de observação in loco28.
Os Relatórios Anuais da Comissão
passaram a incluir uma seção contendo informações fornecidas
por governos de Estados-membros da OEA sobre o progresso
alcançado na realização dos objetivos consagrados nos
instrumentos básicos do sistema interamericano de proteção29. A
Comissão não deixou de instar os Estados-membros da OEA a
incorporar nos textos de suas Constituições certas categorias de
direitos (ou a incorporar os direitos internacionalmente
consagrados em seu direito interno) e a harmonizar suas
legislações respectivas com os preceitos contidos nos tratados
de direitos humanos30. Alguns Estados têm assim procedido até o
presente.
No tocante ao exame das petições ou comunicações recebidas,
contendo alegações de violações de direitos humanos, a
natureza dos procedimentos adotados permitiu à Comissão
Interamericana agir com flexibilidade e evitar a pronta rejeição
de certas comunicações com base nas condições de
admissibilidade (tais como, e.g., o requisito do prévio
esgotamento, pelos demandantes, dos recursos de direito interno).
À Comissão tem sido possível, mediante uma série de técnicas
processuais31, e pelo motivo básico acima indicado, usar
presunções mais a favor dos reclamantes no que tange às
condições de admissibilidade de suas petições ou
comunicações32.
Assim, em relação ao requisito de admissibilidade do prévio
esgotamento dos recursos internos, por exemplo, a Comissão tem
adotado uma diversidade de soluções, que incluem a solicitação
de informações adicionais e o adiamento da decisão (ao invés
da simples rejeição das petições), e a reabertura subseqüente
dos casos33. Em virtude de uma regra de interpretação adotada na
II Conferência Interamericana Extraordinária (Rio de Janeiro,
1965)34, admitiu-se que o requisito de admissibilidade do prévio
esgotamento de recursos do direito interno não se aplicaria aos
chamados “casos gerais” (de violações generalizadas de
direitos humanos). A questão foi objeto de estudos em dezembro de
1968 e maio de 197235, e em 1971-1972 aquela regra de
interpretação era aplicada no Caso n. 1.68436. Pouco depois, em
outro caso, em 1974, a Comissão voltou a aplicar aquela regra de
interpretação em alguns casos concernentes à suspensão de
garantias do devido processo legal e a outras irregularidades, e
à ineficácia dos recursos de amparo e de habeas corpus; com a
dispensa do pré-requisito do esgotamento dos recursos internos,
pode a Comissão proceder de imediato ao exame do mérito dos
casos37.
A prática da Comissão
Interamericana a respeito, mesmo antes da adoção e entrada em
vigor da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, tem
demonstrado que aquele requisito de admissibilidade não é
sacrossanto, imutável ou absoluto, e tem sido aplicado – à luz
do critério da eficácia dos recursos internos – com muito mais
flexibilidade no contexto da proteção internacional dos direitos
humanos. Aqui os recursos internos formam parte integrante do
próprio sistema de proteção internacional dos direitos humanos,
com ênfase no elemento de reparação (redress) e não no
processo de um esgotamento mecânico de recursos. Tal requisito
dá testemunho da interação entre o direito internacional e o
direito interno no presente contexto de proteção,
fundamentalmente orientado às vítimas, aos direitos dos seres
humanos e não dos Estados. As regras geralmente reconhecidas do
direito internacional – às quais se refere a formulação do
requisito do esgotamento nos tratados e instrumentos
internacionais de proteção dos direitos humanos – ademais de
seguirem uma evolução própria nos distintos contextos em que se
aplicam, sofrem necessa-riamente, quando inseridas em tratados e
instrumentos de direitos humanos, um certo grau de ajuste ou
adaptação, ditado pelo caráter especial do objeto e propósito
destes e pela especificidade amplamente reconhecida da proteção
internacional dos direitos humanos38. A prática da Comissão
Interamericana neste particular constitui uma clara ilustração
deste entendimento.
Em sua vasta prática de exame de petições ou comunicações
individuais, a Comissão tem adotado resoluções de conteúdo
variável de caso a caso: em tais resoluções a Comissão tem
declarado que os atos relatados no caso constituíam prima facie
uma violação de direitos humanos, ou recomendado uma ampla
investigação do que parecia constituir uma violação de
direitos humanos, ou decidido suspender a consideração do caso
até que os resultados de uma investigação em curso se tornassem
conhecidos, ou declarado enfim não ter ocorrido a violação de
direitos humanos alegada na petição39. Em alguns casos tem a
Comissão logrado uma solução amistosa com os Estados
demandados40.
A atuação da Comissão Interamericana, já bem antes da entrada
em vigor da Convenção Americana, foi certamente um elemento
decisivo para a evolução do sistema interamericano de proteção
dos direitos humanos. Até 1975, por exemplo, tinha a Comissão
examinado mais de 1.800 comunicações sobre direitos humanos,
obra considerável para um órgão até então operando
solitariamente, sem que a Convenção tivesse entrado em vigor. Em
fins de 1978 (ano da entrada em vigor da Convenção Americana),
já chegavam a 3.200 os casos examinados pela Comissão
(compreendendo mais de dez mil vítimas, de 18 ou 19 países);
isto significa que a Comissão considerou 20% dos casos em seus
primeiros quinze anos de atuação, e aproximadamente 80% dos
casos – até a entrada em vigor da Convenção Americana – no
período de cinco anos entre 1973 e 197841.
Posteriormente, de 1978 até meados
de 1985, outras 6.666 petições ou comunicações foram recebidas
pela Comissão, – total que, ao início dos anos noventa,
ultrapassou as 10.000 comunicações42.
Aos resultados concretos em inúmeros casos individuais
acrescente-se a importante função preventiva exercida pela
Comissão. Em decorrência de suas recomendações de caráter
geral dirigidas a determinados Estados (demandados), ou formuladas
em seus relatórios anuais, “foram derrogados ou modificados
leis, decretos e outros dispositivos que afetavam negativamente a
vigência dos direitos humanos”, foram criados ou fortalecidos
mecanismos de proteção no ordenamento jurídico interno ou
nacional, e “se estabeleceram ou aperfeiçoaram recursos e
procedimentos para a melhor tutela” dos direitos humanos43. A
par do sistema de petições ou comunicações, têm também se
revestido de relevância o sistema de investigações
(observações in loco) e a elaboração dos relatórios por
si-tuações gerais em países e os relatórios periódicos
apresentados pela Comissão à Assembléia Geral da OEA contendo
considerações por vezes inclusive de caráter doutrinário44.
III - Institucionalização
Convencional do Sistema Interamericano de Proteção
Outro marco importante na evolução do sistema interamericano de
proteção reside na entrada em vigor, em meados de 1978, da
Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 196945, que
corresponde à institucionalização convencional do sistema
interamericano de proteção. Para alcançar este estágio, foi
necessário esperar quase uma década, desde a adoção da
Convenção em 1969. Quatro anos antes, já em 1965, pela
Resolução XXIV, a II Conferência Extraordinária Interamericana
decidira-se pela preparação de uma Convenção Americana sobre
Direitos Humanos, cujo anteprojeto original foi elaborado pela
Comissão Interamericana em 1967, e por esta adotado no ano
seguinte. O texto foi submetido à consideração dos
Estados-membros da OEA e, um ano após, a Conferência
Interamericana Especial sobre Direitos Humanos (realizada em San
José de Costa Rica, de 7 a 22 de novembro de 1969) enfim preparou
e adotou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos –
também conhecida como Pacto de San José de Costa Rica46 – que
entrou em vigor aos 18 de julho de 1978.
O processo preparatório do chamado Pacto de San José teve
presente a questão da coexistência e coordenação da nova
Convenção regional com os instrumentos internacionais de
direitos humanos das Nações Unidas47. Com a entrada em vigor da
Convenção, prevendo o estabelecimento de uma Comissão e uma
Corte Interamericanas de Direitos Humanos, surgiram questões como
a “transição” entre o regime preexistente e o da Convenção
no tocante ao labor da Comissão48. Ficou esclarecido que a
Comissão passava a ser dotada de uma dualidade de funções:
efetivamente continuou aplicando as normas que vinham regendo sua
atuação, inclusive em relação aos Estados não-partes na
Convenção Americana, e passou naturalmente a aplicar aos
Estados-partes as disposições relevantes da Convenção49. Com
efeito, em outubro de 1979, a Assembléia Geral da OEA aprovou o
novo Estatuto da Comissão, incluindo atribuições em relação
seja a todos os Estados-membros da OEA (inclusive os
não-ratificantes da Convenção Americana – arts. 18 e 20),
seja aos Estados-partes na Convenção em particular (art. 19)50.
Uma ilustração da interação de
instrumentos de direitos humanos de bases jurídicas distintas na
prática subseqüente da Comissão foi fornecida pelo tratamento
dispensado ao Caso n. 9.247, concernente aos Estados Unidos
(Estado não-ratificante), em que a Comissão chegou a afirmar
que, em decorrência das obrigações contidas nos artigos 3º(j),
16, 51(e), 112 e 150 da Carta da OEA, as disposições de outros
instrumentos da OEA sobre direitos humanos – seu Estatuto e
Regulamento, e a Declaração Americana de 1948 – adquiriram “força
obrigatória”. Por “direitos humanos” entenderam-se tanto os
direitos definidos na Convenção Americana como os consagrados na
Declaração Americana de 1948. Além disso, a Comissão, como “órgão
autônomo” da OEA, entendeu que as disposições sobre direitos
humanos da Declaração Americana derivavam, seu caráter
normativo ou “força obrigatória” de sua interação com as
disposições relevantes da própria Carta da OEA51.
No tocante ao mecanismo de
proteção, a Convenção Americana distingue-se
significativamente da Européia em que, anteriormente à entrada
em vigor, em 1º.11.1998, do Protocolo n. XI, o direito de
petição indivi-dual tinha, tal como originalmente concebido, uma
base facultativa, e o de petição interestatal mandatória (arts.
25 e 24, respectivamente), sob a Convenção Americana passou-se
ao contrário, sendo concebido como mandatório o direito de
petição individual, e facultativo o de queixa interestatal (arts.
44 e 45, respectivamente). Provavelmente uma reclamação
interestatal teria repercussões bem mais amplas e profundas nas
relações internacionais na região do que muitas das petições
individuais (não raro rejeitadas como inadmissíveis); enquanto
no sistema europeu as petições interestatais têm raramente sido
utilizadas52, apesar de seu caráter mandatório, no sistema
interamericano – em que foi relegado a mecanismo facultativo53
– jamais o foram, até o presente. A Convenção Americana
previu a possibilidade de solução amistosa baseada no respeito
aos direitos humanos nela consagrados (art. 48(1)(f)), o que tem
sido alcançado na prática em diversos casos.
A Convenção Americana determinou
que a Comissão Interamericana seria composta – a exemplo do que
ocorria anteriormente – de sete membros, “de alta autoridade
moral e de reconhecido saber em matéria de direitos humanos”
(art. 34), eleitos a título pessoal pelos Estados-membros da OEA
em sua Assembléia Geral (art. 36), para um mandato de quatro
anos, podendo ser reeleitos uma vez (art. 37). Além da Comissão,
a Convenção Americana estabeleceu, como seu órgão judicial
autônomo, aCorte Interamericana de Direitos Humanos, encarregada
de sua interpretação e aplicação, e com o propósito principal
de julgar
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