
Direito
Internacional e Direito Interno: Sua Interação na proteção dos
Direitos Humanos
Antônio Augusto Cançado Trindade
Ph.D. (Cambridge), Juiz da
Corte Interamericana de Direitos Humanos, Professor Titular da
Universidade de Brasília,Diretor Executivo do Instituto Interamericano
de Direitos Humanos
I. Introdução.
Um dos aspectos básicos
do labor de promoção dos direitos humanos reside na difusão da
normativa de proteção. A presente iniciativa atende a esse propósito.
É, assim, com satisfação, que acedemos ao honroso convite da
Procuradoria Geral do Estado de São Paulo para elaborar, em forma de
estudo doutrinário introdutório, o Prefácio desta coletânea
intitulada Os Instrumentos Internacionais de Proteção aos Direitos
Humanos. Há que somar esforços em prol da causa comum da plena vigência
dosA?t?U? direitos humanos em nosso país; a presente publicação se dá em
meio a um alentador florescimento de interesse em nossos círculos jurídicos
pela aplicação dos instrumentos internacionais de proteção dos
direitos humanos em nosso direito interno.
Ainda há pouco, a coletânea
de ensaios que editamos intitulada A Incorporação das Normas
Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos no Direito Brasileiro
(Instituto Interamericano de Direitos Humanos, 1996, págs. 1-845),
reunindo contribuições de cerca de cinqüenta autores, em sua grande
maioria brasileiros, alcançou sua segunda edição duas semanas depois
de seu lançamento em Brasília e São Paulo. Nossas Universidades
passam, enfim, a incluir em seus currículos e cursos regulares, a temática
dos Direitos Humanos, ainda que com denominações distintas. O
despertar de nossos círculos jurídicos e universitários para os
direitos humanos como disciplina autônoma é, além de alentador,
irreversível. A presente e louvável iniciativa da Procuradoria Geral
do Estado de São Paulo vem reforçar os esforços envidados em nosso país
por todos os que acreditamos que só pode haver democracia e Estado de
Direito com a plena observância dos direitos humanos, tomados estes em
sua concepção integral, a abarcar os direitos civis, políticos,
econômicos, sociais e culturais.
Uma publicação como a
presente atende, com efeito, a dois objetivos básicos e complementares:
em primeiro lugar, alcançar a mais ampla difusão dos instrumentos
internacionais de proteção dos direitos humanos, o que se reveste de
A?t?U? suma importância, porquanto o passo inicial para a vindicação dos
direitos consiste em bem conhecê-los. Em segundo lugar, visa contribuir
à fiel aplicação dos instrumentos internacionais relacionados, no
plano do direito interno. A tarefa de legislação internacional no
presente domínio já se encontra bastante avançada; cumpre agora dar
real efetividade aos múltiplos instrumentos internacionais coexistentes
no plano do direito interno.
A incorporação da
normativa internacional de proteção no direito interno dos Estados
constitui alta prioridade em nossos dias: pensamos que, da adoção e
aperfeiçoamento de medidas nacionais de implementação depende
em grande parte o futuro da própria proteção internacional dos
direitos humanos. Na verdade, como se pode depreender de um exame
cuidadoso da matéria, no presente domínio de proteção o direito
internacional e o direito interno conformam um todo indivisível:
apontam na mesma direção, desvendando o propósito comum de proteção
da pessoa humana. O direito internacional e o direito interno aqui se
mostram, desse modo, em constante interação, em benefício dos seres
humanos protegidos. Senão vejamos.
O antagonismo irreconciliável
entre as posições monista e dualista clássicas provavelmente levou os
juristas a abordar mais recentemente a relação entre o direito
internacional e o direito interno de ângulos distintos. A distinção
tradicional, enfatizando a pretensa diferença das relações reguladas
pelos dois ordenamentos jurídicos, dificilmente poderia fornecer uma
resposta satisfatória A?t?U?à questão da proteção internacional dos
direitos humanos: sob o direito interno as relações entre os indivíduos,
ou entre o Estado e os indivíduos, eram consideradas sob o aspecto da
"competência nacional exclusiva"; e tentava-se mesmo
argumentar que os direitos individuais reconhecidos pelo direito
internacional não se dirigiam diretamente aos beneficiários, e por
conseguinte não eram diretamente aplicáveis. Com o passar dos anos,
houve um avanço, no sentido de, ao menos, distinguir entre os países
em que certas normas dos instrumentos internacionais de direitos humanos
passaram a ter aplicabilidade direta, e os países em que necessitavam
elas ser "transformadas" em leis ou disposições de direito
interno para ser aplicadas pelos tribunais e autoridades
administrativas.
Como buscamos demonstrar
em estudo publicado na Alemanha em meados dos anos setenta, outros
abordamentos podem desvendar um campo de pesquisa bem mais rico e fértil,
quais sejam, o status interno (nacional) de disposições jurídicas
internacionais a partir do prisma do direito constitucional (comparado),
ou o exame ou a interpretação do direito interno pelos tribunais
internacionais (para verificar a compatibilidade do direito interno com
o direito internacional), ou a relevância do direito interno no
processo legal internacional, ou a implementação de decisões
judiciais internacionais pelos tribunais internos. Estes enfoques
continuam a requerer, e merecer, maior atenção.
Decorridas duas décadas
desde a publicação deste nosso estudo, é chegado o moA?t?U?mento de
retomarmos o exame do tema, tomando em conta desenvolvimentos recentes
sobre a matéria. Para tal, consideraremos de início o impacto de
instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos em
Constituições recentes. A seguir, examinaremos quatro questões, a
saber: a supervisão internacional da compatibilidade dos atos internos
dos Estado com suas obrigações internacionais de proteção; a
compatibilização e prevenção de conflitos entre as jurisdições
internacional e nacional em matéria de direitos humanos; a obrigação
internacional dos Estados de provimento de recursos de direito interno
eficazes; e a função dos órgãos e procedimentos do direito público
interno. Enfim, abordaremos as questões das normas internacionais de
proteção diretamente aplicáveis no direito interno, e da primazia da
norma mais favorável às vítimas. O campo estará, então, aberto à
apresentação de nossas conclusões.
II. O Impacto de
Instrumentos Internacionais de Proteção
dos Direitos Humanos em
Constituições Recentes.
Já não mais se
justifica que o direito internacional e o direito constitucional
continuem sendo abordados de forma estanque ou compartimentalizada, como
o foram no passado. Já não pode haver dúvida de que as grandes
transformações internas dos Estados repercutem no plano internacional,
e a nova realidade neste assim formada provoca mudanças na evolução
interna e no ordenameA?t?U?nto constitucional dos Estados afetados.
Ilustram-no, e.g., as profundas mudanças constitucionais que vêm
ocorrendo nos países de Leste Europeu a partir de 1988-1989, visando a
construção de novos Estados de Direito, durante cujo processo aqueles
países foram levados gradualmente a tornar-se Partes nos dois Pactos de
Direitos Humanos das Nações Unidas. Estas transformações recentes têm,
a um tempo, gerado um novo constitucionalismo assim como uma abertura à
internacionalização da proteção dos direitos humanos.
Com efeito, nos últimos
anos o impacto de instrumentos internacionais de proteção dos direitos
humanos tem-se feito sentir em algumas Constituições. Ilustração
pertinente é fornecida pela Constituição Portuguesa de 1976, que
estabelece que os direitos fundamentais nela consagrados "não
excluem quaisquer outros constantes das leis e das regras aplicáveis de
direito internacional", e acrescenta: - "Os preceitos
constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser
interpretados e integrados em harmonia com a Declaração Universal dos
Direitos do Homem" (artigo 16(1) e (2)). A disposição da
Constituição da Alemanha - com emendas até dezembro de 1983 - segundo
a qual "as normas gerais do Direito Internacional Público
constituem parte integrante do direito federal" e "sobrepõem-se
às leis e constituem fonte de direitos e obrigações para os
habitantes do território federal" (artigo 25), pode ser entendida
como englobando os direitos e obrigações consagrados nos instrumentos
de proteção internacional dos direitos humanos.
Um dos exemplos mais
comumente lembrados em nossos dias de Constituições recentes que,
reconhecendo a importância dos tratados de direitos humanos, os
singularizam e a eles estendem cuidado especial, é o da Constituição
Espanhola de 1978, que submete a eventual denúncia de tratados sobre
direitos e deveres fundamentais ao requisito da prévia autorização ou
aprovação do Poder Legislativo (artigos 96(2) e 94(1)(c)). Tal aprovação
congressual para a eventual denúncia daqueles tratados naturalmente
abre uma brecha em reduto do Executivo, em favor da manutenção da vigência
de tais instrumentos, mesmo porque o Legislativo só poderia autorizar
sua denúncia na forma prevista nos próprios tratados ou consoante as
regras gerais do direito internacional. Fortalecem-se, desse modo, os
tratados de direitos humanos.
Não é este um exemplo
isolado. Na América Latina, surgem mostras em nossos dias de nova
postura ante a questão clássica da hierarquia normativa dos tratados
internacionais vigentes, como revelado pela nova tendência de algumas
Constituições latino-americanas recentes de dispensar um tratamento
diferenciado ou especial aos tratados de direitos humanos ou aos
preceitos neles consagrados. Exemplo dos mais marcantes, nesta nova
linha, é fornecido pela [anterior] Constituição do Peru de 1978, cujo
artigo 105 determinava que os preceitos contidos nos tratados de
direitos humanos têm hierarquia constitucional, e não podem ser
modificados senão pelo procedimento para a reforma da própria
Constituição. Lamentavelmente não se encontra esta disposição
reiterada nos mesmos termos na atual Constituição Política do Peru de
199A?t?U?3 (referendo de 31.10.1993), a qual se limita a determinar (4a.
disposição final e transitória) que os direitos constitucionalmente
reconhecidos se interpretam de conformidade com a Declaração Universal
de Direitos Humanos e com os tratados de direitos humanos ratificados
pelo Peru. Outro exemplo reside na Constituição da Guatemala de 1985,
cujo artigo 46 estabelece que os tratados de direitos humanos
ratificados pela Guatemala têm preeminência sobre o direito interno.
Assim, enquanto a anterior Constituição Peruana atribuía hierarquia
constitucional aos tratados de direitos humanos, a atual Constituição
Guatemalteca atribui a estes hierarquia especial, com preeminência
sobre a legislação ordinária e o restante do direito interno. Outra
ilustração é dada pela nova Constituição da Nicarágua, de 1987,
que, pelo disposto em seu artigo 46, integra, para fins de proteção,
na enumeração constitucional de direitos, os direitos consagrados na
Declaração Universal dos Direitos Humanos, na Declaração Americana
dos Direitos e Deveres do Homem, nos dois Pactos de Direitos Humanos das
Nações Unidas (de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, e de
Direitos Civis e Políticos), e na Convenção Americana sobre Direitos
Humanos.
Na mesma linha de
pensamento situa-se uma das recentes modificações introduzidas na
Constituição do Chile em decorrência do plebiscito convocado para 30
de julho de 1989; pela nova reforma constitucional, de 1989, agregou-se
ao final do artigo 5(II) da Constituição Chilena a seguinte disposição:
- "É dever dos órgãos do Estado respeitar e promover tais
direitos, garantidos por esta Constituição, assim como pelos tratados
internacionais ratifA?t?U?icados pelo Chile e que se encontrem vigentes".
Desse modo, os direitos garantidos por aqueles tratados passaram a
equiparar-se hierarquicamente aos garantidos pela Constituição Chilena
reformada. Outro exemplo pertinente é fornecido pela Constituição da
Colômbia de 1991, cujo artigo 93 determina que os tratados de direitos
humanos ratificados pela Colômbia "prevalecem na ordem
interna", e que os direitos humanos constitucionalmente consagrados
serão interpretados de conformidade com os tratados de direitos humanos
ratificados pela Colômbia.
Bem próxima da postura
refletida nas soluções acima referidas encontra-se a da Constituição
Brasileira de 1988, que, após proclamar que o Brasil se rege em suas
relações internacionais pelo princípio, entre outros, da prevalência
dos direitos humanos (artigo 4(II)), constituindo-se em Estado Democrático
de Direito tendo como fundamento, inter alia, a dignidade da
pessoa humana (artigo 1(III)), estatui, - consoante proposta que avançamos
na Assembléia Nacional Constituinte e por esta aceita, - que os
direitos e garantias nela expressos não excluem outros decorrentes do
regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados
internacionais em que o Brasil seja Parte (artigo 5(2)). E acrescenta
que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm
aplicação imediata (artigo 5(1)).
O disposto no artigo 5(2)
da Constituição Brasileira de 1988 se insere na nova tendência de
Constituições latino-americanas recentes de conceder um tratamento
especial ou diferenciado A?t?U?também no plano do direito interno aos
direitos e garantias individuais internacionalmente consagrados. A
especificidade e o caráter especial dos tratados de proteção
internacional dos direitos humanos encontram-se, com efeito,
reconhecidos e sancionados pela Constituição Brasileira de 1988: se,
para os tratados internacionais em geral, se tem exigido a intermediação
pelo Poder Legislativo de ato com força de lei de modo a outorgar a
suas disposições vigência ou obrigatoriedade no plano do ordenamento
jurídico interno, distintamente no caso dos tratados de proteção
internacional dos direitos humanos em que o Brasil é Parte os direitos
fundamentais neles garantidos passam, consoante os artigos 5(2) e 5(1)
da Constituição Brasileira de 1988, a integrar o elenco dos direitos
constitucionalmente consagrados e direta e imediatamente exigíveis no
plano do ordenamento jurídico interno.
Mais recentemente,
incorporou-se à Constituição da Argentina, reformada em agosto de
1994, o artigo 75(22), pelo qual determinados tratados e instrumentos de
direitos humanos, nele enumerados, têm "hierarquia
constitucional", só podendo ser denunciados mediante prévia
aprovação de dois terços dos membros do Legislativo; tais tratados e
instrumentos de direitos humanos são "complementares" aos
direitos e garantias reconhecidos na Constituição. Outra técnica
seguida em recentes reformas constitucionais tem consistido em dispor
sobre a procedência do recurso de amparo para a salvaguarda dos
direitos consagrados nos tratados de direitos humanos (Constituição da
Costa Rica, reformada em 1989, artigo 48; além da Constituição da
Argentina, artigo 43); outras CA?t?U?onstituições optam por referir-se à
normativa internacional em relação a um determinado direito, para o
qual "a fonte internacional adquire hierarquia constitucional"
(Constituições do Equador, artigos 43 e 17; de El Salvador, artigo 28;
de Honduras, artigo 119(2)).
As Constituições
latino-americanas supracitadas reconhecem assim a relevância da proteção
internacional dos direitos humanos e dispensam atenção e tratamento
especiais à matéria. Ao reconhecerem que sua enumeração de direitos
não é exaustiva ou supressiva de outros, descartam desse modo o princípio
de interpretação das leis inclusio unius est exclusio alterius.
É alentador que as conquistas do direito internacional em favor da
proteção do ser humano venham a projetar-se no direito constitucional,
enriquecendo-o, e demonstrando que a busca de proteção cada vez mais
eficaz da pessoa humana encontra guarida nas raízes do pensamento tanto
internacionalista quanto constitucionalista.
As soluções, de direito
constitucional, quanto à hierarquia entre normas de tratados e de
direito interno, resultam de critérios valorativos e da
discricionariedade dos constituintes nacionais, variando, pois, de país
a país. Não surpreende, assim, que algumas Constituições se mostrem
mais abertas ao direito internacional do que outras. O que deve resultar
claro é que isto ocorre não em razão da natureza intrínseca da norma
jurídica; se assim fosse, não haveria a diversidade de soluções
(constitucionais) à questão. A tendência constitucional contemporânea
de dispensar um tratamentA?t?U?o especial aos tratados de direitos humanos é,
pois, sintomática de uma escala de valores na qual o ser humano passa a
ocupar posição central. Um papel importante está aqui reservado aos
advogados de supostas vítimas de violações de direitos humanos,
particularmente nos países em que aquela tendência ainda não se tem
acentuado com vigor: no intuito de buscar a redução da considerável
distância entre o reconhecimento formal, e a vigência real, dos
direitos humanos, consagrados não só na Constituição e na lei
interna como também nos tratados de proteção, cabe aos advogados
invocar estes últimos, referindo-se às obrigações internacionais que
vinculam o Estado no presente domínio de proteção, de modo a exigir
dos juízes e tribunais nacionais, no exercício permanente de suas funções,
que considerem, estudem e apliquem as normas dos tratados de direitos
humanos, e fundamentem devidamente suas decisões.
Os fundamentos últimos
da proteção dos direitos humanos transcendem o direito estatal, e o
consenso generalizado formado hoje em torno da necessidade da
internacionalização de sua proteção corresponde a uma manifestação
cultural de nossos tempos, juridicamente viabilizada pela coincidência
de objetivos entre o direito internacional e o direito interno quanto à
proteção da pessoa humana. Como, também neste domínio, a um Estado não
é dado deixar de cumprir suas obrigações convencionais sob o pretexto
de supostas dificuldades de ordem constitucional ou interna, com maior
razão ainda não haver desculpa para um Estado de não se conformar a
um tratado de direitos humanos no qual é Parte pelo simples fato de
seus tribunais interpretarem, no plano do direito interno, o tratado dA?t?U?e
modo diferente do que se impõe no plano do direito internacional. Com
estas reflexões em mente, passemos ao ponto seguinte de nosso estudo,
qual seja, o da compatibilidade dos atos internos dos Estados com suas
obrigações internacionais de proteção.
III. A Supervisão
Internacional da Compatibilidade dos Atos
Internos dos Estados com Suas Obrigações Internacionais de Proteção.
Constatamos atualmente,
por um lado, uma crescente "abertura" das Constituições
contemporâneas - de que dão exemplo marcante as de alguns países
latino-americanos e as de países tanto da Europa Oriental hodierna como
da Europa Ocidental - à normativa internacional de proteção dos
direitos humanos. A este fenômeno se agrega, por outro lado, a atribuição
de funções, pelos tratados de direitos humanos, aos órgãos internos
dos Estados, para a realização de seu objeto e propósito. A interação
resultante entre o direito internacional e o direito interno no presente
domínio de proteção é, pois, manifesta e inquestionável. E não se
limita à relação, com o direito interno, dos tratados de direitos
humanos propriamente ditos: outra ilustração, talvez menos lembrada,
no mesmo sentido da interação, reside na implementação das Convenções
internacionais do trabalho da OIT.
Alguns aspectos da interação
entre o direito internacionA?t?U?al e o direito interno na proteção dos
direitos humanos são particularmente significativos. Em primeiro lugar,
os próprios tratados de direitos humanos atribuem uma função capital
à proteção por parte dos tribunais internos, como evidenciado pelas
obrigações de fornecer recursos internos eficazes e de esgotá-los,
que recaem, respetivamente, sobre os Estados demandados e os indivíduos
reclamantes. Tendo a si confiada a proteção primária dos direitos
humanos, os tribunais internos têm, em contrapartida, que conhecer e
interpretar as disposições pertinentes dos tratados de direitos
humanos. Donde a propalada subsidiaridade do processo legal
internacional, a qual encontra sólido respaldo na prática
internacional, na jurisprudência, nos tratados, assim como na doutrina.
Em segundo lugar, a
margem de controvérsias é reduzida ou mesmo eliminada na medida em que
os próprios tratados disponham sobre a função e o procedimento dos
tribunais internos na aplicação das normas internacionais de proteção
neles consagradas. Nos casos em que a atuação dos tribunais internos
envolve a aplicação do direito internacional dos direitos humanos,
assume importância crucial a autonomia do Judiciário, a sua independência
de qualquer tipo de influência executiva. Em terceiro lugar, é certo
que os tribunais internacionais de direitos humanos existentes - as
Cortes Européia, e Interamericana de Direitos Humanos - não
"substituem" os tribunais internos, e tampouco operam como
tribunais de recursos ou de cassação de decisões dos tribunais
internos. Não obstante, os atos internos dos Estados podem vir a ser
objeto de exame por parte dos órgãos de supervisão internacionais
quanA?t?U?do se trata de verificar a sua conformidade com as obrigações
internacionais dos Estados em matéria de direitos humanos. Os atos
internos dos Estados não se encontram isentos de verificação quanto
ao seu valor de prova, porquanto podem não estar conformes as obrigações
internacionais dos Estados.
Isto se aplica à legislação
nacional assim como às decisões internas judiciais e administrativas.
Por exemplo, uma decisão judicial interna pode dar uma interpretação
incorreta a uma norma de um tratado de direitos humanos; ou qualquer
outro órgão estatal pode deixar de cumprir uma obrigação
internacional do Estado neste domínio. Em tais hipóteses pode-se
configurar a responsabilidade internacional do Estado, porquanto seus
tribunais ou outros órgãos não são os intérpretes finais de suas
obrigações internacionais em matéria de direitos humanos. Os órgãos
de supervisão internacionais não são obrigados a conhecer o direito
interno dos diversos Estados, mas sim a tomar conhecimento dele como
elemento de prova, no processo de verificação da conformidade dos atos
internos (judiciais, legislativos, administrativos) dos Estados com as
obrigações convencionais que a estes se impõem. Este exame da aplicação
do direito interno é de certo modo incidenter tantum, como parte
essencial ou integral da função de supervisão internacional, e
elemento probatório para o exame do comportamento estatal interno de
relevância internacional. Nessa ótica, é o próprio direito interno
que assume importância no processo legal internacional.
Isto se torna ainda mais
A?t?U? claro em um sistema de garantia coletiva como o da proteção dos
direitos humanos, particularmente o dos tratados de direitos humanos
dotados também de petições inter-estatais (e.g., Convenção
Americana sobre Direitos Humanos, artigo 45; Convenção Européia de
Direitos Humanos, artigo 24; Carta Africana sobre Direitos Humanos e dos
Povos, artigos 47-54; Pacto de Direitos Civis e Políticos, artigo 41;
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
Racial, artigos XI-XIII; Convenção das Nações Unidas contra a
Tortura, artigo 21), em que os órgãos de supervisão internacionais em
questão podem ser convocados por um Estado Parte para verificar se os
atos normativos, administrativos ou judiciais internos de outro Estado
Parte, em suma, o próprio comportamento deste, encontra-se ou não em
conformidade com as disposições daqueles tratados. E mesmo no tocante
ao exercício do direito de petição individual nestes consagrado
(e.g., Convenção Americana sobre Direitos Humanos, artigo 44; Convenção
Européia de Direitos Humanos, artigo 25; Carta Africana sobre Direitos
Humanos e dos Povos, artigos 55-58; [primeiro] Protocolo Facultativo ao
Pacto dos Direitos Civis e Políticos, artigos 1-3 e 5; Convenção
sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial,
artigo XIV; Convenção das Nações Unidas contra a Tortura, artigo
22), registram-se hoje inúmeros casos relativos a matérias normalmente
regidas pelo direito interno: basta lembrar, por exemplo, sob a Convenção
Européia de Direitos Humanos, os numerosos casos de petições ou
reclamações sob o artigo 6 (concernente ao direito de toda pessoa a
que a sua causa seja examinada eqüitativamente por um tribunal
independente e imparcial) e o artigo 5 (referente a prisão ou detenção
legal e o direito à liberdade e segurança de todaA?t?U? pessoa), cobrindo
matérias reguladas pelo ordenamento jurídico interno.
A par desses casos
numerosos, poder-se-ia aqui fazer referência específica ao célebre Caso
Lingüístico Belga, por exemplo, em que a Corte Européia de
Direitos Humanos deixou claro (julgamento quanto ao mérito, 1968) que não
poderia assumir a função das autoridades nacionais competentes, que
permaneciam livres para escolher e tomar as providências que
considerassem apropriadas nas matérias regidas pela Convenção Européia:
sua função de supervisão dizia respeito tão somente à conformidade
dessas providências com os requisitos da Convenção. No caso dos 23
Habitantes de Alsemberg e de Beersel versus Bélgica (1963), a
Comissão Européia de Direitos Humanos, a seu turno, observou que a
reclamação pretendia a declaração não da nulidade de uma decisão
isolada mas antes da incompatibilidade da legislação "lingüística"
belga com os requisitos da Convenção; pouco antes, no caso X versus
Bélgica (1960), a Comissão advertira que não lhe incumbia decidir
sobre a interpretação e aplicação do direito interno pelos tribunais
internos, a não ser que tal direito constituísse uma violação da
Convenção ou que na interpretação ou aplicação do direito interno
tivessem os tribunais internos cometido tal violação.
No continente americano,
a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em seu relatório anual
de 1977, constatou deficiências no direito interno de muitos países
(inoperância de garantias e meios de defesa, falta de independência do
Poder JudiciáA?t?U?rio), que deixavam de oferecer proteção adequada às vítimas
de violações de direitos humanos; era precisamente nestas circunstâncias,
- esclareceu a Comissão Interamericana no relatório de 1980 sobre a
situação dos direitos humanos na Argentina, - que se tornava necessária
a atuação dos órgãos de supervisão internacionais. Em relatórios
anuais mais recentes, a Comissão relacionou a proteção dos direitos
humanos com a própria organização política (interna) do Estado e o
exercício efetivo da democracia, e em varias ocasiões instou os
Estados-membros da OEA a incorporar aos textos de suas Constituições
certos direitos e a harmonizar suas legislações respectivas com os
preceitos contidos nos tratados de direitos humanos. Em decorrência das
recomendações gerais formuladas em seus relatórios ou dirigidas a
determinados Governos, logrou a Comissão que se modificassem ou
derrogassem leis violatórias dos direitos humanos, e que se
estabelecessem ou aperfeiçoassem recursos e procedimentos de direito
interno para a plena vigência dos direitos humanos.
Cabe, pois, naturalmente
aos tribunais internos interpretar e aplicar as leis dos países
respectivos, exercendo os órgãos internacionais especificamente a função
de supervisão, nos termos e parâmetros dos mandatos que lhes foram
atribuídos pelos tratados e instrumentos de direitos humanos
respectivos. Mas cabe, ademais, aos tribunais internos, e outros órgãos
dos Estados, assegurar a implementação a nível nacional das normas
internacionais de proteção, o que realça a importância de seu papel
em um sistema integrado como o da proteção dos direitos humanos, no
qual as obrigações convencionais abrigam um interesse comum superior
A?t?U?
de todos os Estados Partes, o da proteção do ser humano. Os órgãos
de supervisão internacionais, por sua vez, controlam a compatibilidade
da interpretação e aplicação do direito interno com as obrigações
convencionais, para determinação dos elementos factuais a serem
avaliados para o propósito da aplicação das disposições pertinentes
dos tratados de direitos humanos.
É possível que os órgãos
de supervisão venham a ocupar-se, no exame dos casos concretos, e.g.,
de erros de fato ou de direito cometidos pelos tribunais internos, na
medida em que tais erros pareçam ter resultado em violação de um dos
direitos assegurados pelos tratados de direitos humanos. Na mesma linha,
podem os órgãos de supervisão, na consideração dos casos concretos,
vir a examinar a legislação nacional, não in abstracto, mas na medida
em que sua aplicação pareça constituir uma violação de um dos
direitos assegurados pelos tratados de direitos humanos. Com efeito, graças
à atuação - desde seus primórdios - dos órgãos de supervisão próprios
aos sistemas europeu e interamericano de direitos humanos, em numerosos
casos tem-se logrado pôr fim a práticas administrativas violatórias
dos direitos humanos e alterar medidas legislativas para salvaguardar os
direitos humanos.
IV. Compatibilização
e Prevenção de Conflitos entre as Jurisdições Internacional e
Nacional em Matéria de Direitos
Humanos.
&nbsA?t?U?p;
Vê-se, do acima exposto,
que os tratados de direitos humanos impõem deveres que implicam a
interação entre suas normas e as de direito interno. Ao consagrarem
normas que acarretam esta interação, como as atinentes à
compatibilização entre seus dispositivos e os de direito interno (por
vezes com referência expressa e preceitos constitucionais e leis
internas), os tratados de direitos humanos atenderam à necessidade de
prevenir ou evitar conflitos entre as jurisdições internacional e
nacional e de harmonizar a legislação nacional com as obrigações
convencionais. Daí a total improcedência da invocação da soberania
estatal no tocante à interpretação e aplicação dos tratados de
direitos humanos vigentes. A propósito, em seu discurso na plenária de
abertura da II Conferência Mundial de Direitos Humanos (Viena, junho de
1993), o Secretário-Geral das Nações Unidas (B. Boutros-Ghali)
sugeriu que, "par leur nature, les droits de l'homme abolissent la
distinction traditionnelle entre l'ordre interne et l'ordre
international. Ils sont créateurs d'une perméabilité juridique
nouvelle. Il s'agit donc de ne les considérer, ni sous l'angle de la
souveraineté absolue, ni sous celui de l'ingérence politique. Mais, au
contraire, il faut comprendre que les droits de l'homme impliquent la
collaboration et la coordenation des États et des organisations
internationales".
A par das vias
supracitadas de compatibilização dos dispositivos convencionais e dos
de direito interno, também se voltam a este mesmo propósito as cláusulas
de derrogação e de limitações ou restrições ao exercício de
certos direitos (a serem restritivamente interpretadas), para atender às
necessA?t?U?idades dos Estados diante de situações factuais de emergência
imprevisíveis e propiciar o fiel desempenho pelos Estados de seus
deveres públicos em prol do bem comum; as reservas autorizadas ou
permitidas pelos próprios tratados (também a serem restritivamente
interpretadas, além de necessariamente compatíveis com o objeto e propósito
dos referidos tratados); a consagração do requisito do prévio
esgotamento dos recursos de direito interno nos instrumentos de proteção
internacional dos direitos humanos, a evidenciar o caráter subsidiário
dos procedimentos internacionais e a função primordial e
responsabilidade primária dos órgãos internos dos Estados como parte
integrante do sistema de proteção internacional dos direitos humanos;
e as cláusulas facultativas (e.g., de reconhecimento da competência de
órgãos de supervisão internacionais para examinar petições ou
reclamações individuais e inter-estatais, e de reconhecimento da
jurisdição compulsória de órgãos judiciais de proteção dos
direitos humanos), como alternativas abertas aos Estados pelos próprios
tratados de direitos humanos para a aceitação normal das obrigações
convencionais, de modo a possibilitar-lhes medir o grau de
comprometimento que se vêem em condições de assumir, e desse modo
viabilizar as ratificações ou adesões do maior número possível de
Estados.
Não há que confundir as
categorias acima (cláusulas de compatibilização, derrogações e
limitações ou restrições permissíveis, reservas permissíveis, prévio
esgotamento dos recursos internos, e cláusulas facultativas), todas
distintas mas contribuindo cada uma a seu modo para prevenir ou evitar
conflitos entre as jurisdições internacional e naciA?t?U?onal, e para
remover obstáculos à evolução da proteção internacional dos
direitos humanos. Nunca é demais deixar esclarecido que as eventuais
limitações ou restrições permissíveis ao exercício dos direitos
consagrados, ademais de deverem ser interpretadas restritivamente e em
favor destes últimos, devem necessariamente cumprir certos requisitos,
a saber: ser previstas em lei, ser justificadas pelo Estado, limitar-se
a situações em que sejam absolutamente necessárias e ao propósito
para o qual foram prescritas, ser aplicadas no interesse geral da
coletividade (ordre public) coadunando-se com as exigências de
uma "sociedade democrática", respeitar o princípio da
proporcionalidade, não ser aplicadas de modo arbitrário ou discriminatório,
sujeitar-se a controle por órgãos independentes (com a previsão de
recursos para os casos de abusos), e ser compatíveis com o objeto e
propósito dos tratados de direitos humanos.
É de se esperar que nos
próximos anos se intensifiquem os esforços no sentido de verificar e
assegurar o fiel cumprimento desses requisitos pelos Estados, a começar
pela ampla divulgação das iniciativas e providências por estes
tomadas; neste propósito, há que considerar, e.g., a obtenção de
informações mais detalhadas por parte de Estados que impuseram derrogações,
limitações e estados ou medidas de emergência, assim como a designação
pelos órgãos de supervisão internacionais de relatores especiais ou
órgãos subsidiários de investigação em relação a estados ou
medidas de emergência pública prolongados. Já há indicações
jurisprudenciais concretas em nosso continente para o tratamento da matéria.
Assim, no Parecer sobre o Habeas A?t?U?Corpus sob Suspensão de Garantias
(1987), a Corte Interamericana de Direitos Humanos sustentou que os
recursos de amparo e habeas corpus (a que se referem,
respectivamente, os artigos 25(1) e 7(6) da Convenção Americana sobre
Direitos Humanos) constituem "garantias judiciais indispensáveis"
à proteção dos direitos humanos e não podem ser suspensas (sob o
artigo 27(2) da Convenção); por conseguinte, acrescentou a Corte, os
ordenamentos constitucionais e legais dos Estados Partes que
autorizarem, explícita ou implicitamente, a suspensão daqueles
recursos (ou equiparáveis) em situações de emergência hão de ser
considerados "incompatíveis" com as obrigações
internacionais impostas pela Convenção Americana.
Pouco após, em outro
Parecer (do mesmo ano), sobre Garantias Judiciais em Estados de Emergência,
a Corte, ao recordar o direito a um recurso efetivo consagrado na Convenção
(artigo 25(1)), para a proteção dos direitos reconhecidos por esta,
pela Constituição ou pela lei, advertiu prontamente que não basta que
os recursos estejam formalmente previstos pelo direito interno,
porquanto requer-se sejam eles ademais eficazes. O artigo 8 da Convenção,
agregou a Corte, reconhece o due process of law que se aplica
essencialmente a "todas as garantias judiciais" referidas na
Convenção, "mesmo sob o regime de suspensão regulado pelo artigo
27 da mesma". Enfim, outras garantias, derivadas da "forma
democrática de governo" (a que se refere o artigo 29(c) da
Convenção), implicam não apenas uma determinada organização política,
mas a necessidade de que as medidas tomadas por um governo em sitA?t?U?uação
de emergência contem com garantias judiciais e estejam sujeitas a um
controle de legalidade, de modo que "se preserve o Estado de
Direito".
Uma atitude da doutrina
tem consistido em tentar medir o alcance dos tratados de direitos
humanos por seus efeitos jurídicos no direito interno dos Estados
Partes. A este respeito, cabe recordar o artigo 2 da Convenção
Americana sobre Direitos Humanos, segundo o qual se o exercício dos
direitos mencionados no artigo 1 da Convenção não estiver já
garantido por disposições legislativas ou de outro caráter, os
Estados Partes se comprometem a adotar, de acordo com seus processos
constitucionais e com as disposições da Convenção Americana, as
medidas legislativas ou de outro caráter que forem necessárias para
tornar efetivos aqueles direitos. À época da adoção da Convenção
Americana (novembro de 1969), a Delegação dos Estados Unidos à Conferência
de San José da Costa Rica argumentou (relatório de abril de 1970) que
o principal efeito do artigo 2 era o de permitir aos Estados Partes
tratar as disposições substantivas da Parte I da Convenção (artigos
I a 32) como sendo "non-self-executing"; esta seria a
intenção dos Estados Unidos, porquanto, no entender de sua Delegação,
o artigo 2 era "suficientemente flexível" para permitir a
cada país "implementar da melhor maneira" a Convenção
"de acordo com sua prática interna".
A conseqüência desta
posição era negar que a Convenção pudesse beneficiar diretamente os
indivíduos, sem a legislaçãA?t?U?o interna adicional prevista no artigo 2,
- o que prontamente revela a improcedência desta tese. Se o artigo 2
fosse interpretado como o pretendia a Delegação norteamericana,
frustraria as tentativas de invocar a Convenção Americana perante os
tribunais nacionais para garantir determinados direitos (e.g., em
conflito com a legislação interna ou nesta não existentes), negando
aplicabilidade direta a toda a Parte I da Convenção, e privaria esta
última de qualquer impacto significativo na administração da justiça
quotidiana dos Estados Partes. A Convenção se tornaria virtualmente
letra morta. Não surpreendentemente, a própria Corte Interamericana de
Direitos Humanos, em Parecer de 1986, assinalou (em relação ao artigo
14(1) da Convenção) que o fato de que um artigo faça referência à
lei "não é suficiente" para que perca autoaplicabilidade
(exceto se a própria vigência do direito estiver inteiramente
condicionada à lei evocada). Assim, no entendimento da Corte, o fato de
poderem os Estados Partes determinar as condições do exercício de um
direito (no caso, do direito de retificação ou resposta), "não
impede a exigibilidade conforme ao Direito Internacional" das
obrigações contraídas sob o artigo 1(1) da Convenção; concluiu,
desse modo, a Corte que o artigo 14 (1) da Convenção é autoaplicável
(self-executing), consagrando "um direito de retificação
ou resposta internacionalmente exigível".
A obrigação do artigo 2
(supra) soma-se ao dever geral do artigo 1 da Convenção. Não
se pode condicionar a totalidade dos direitos internacionalmente
consagrados às providências legislativas internas dos Estados Partes;
trata-se dA?t?U?e uma obrigação adicional e complementar à obrigação
geral do artigo 1 da Convenção. O propósito do artigo 2 é antes o de
superar obstáculos e tomar as medidas cabíveis para assegurar a aplicação
de todas as normas (inclusive as programáticas) da Convenção e
garantir assim a proteção dos direitos nela consignados em quaisquer
circunstâncias. Se a Convenção não pudesse aplicar-se imediata e
diretamente às pessoas protegidas, estaria privada de todo efeito
significativo e estaria paralisado todo o sistema de salvaguarda dos
direitos humanos. Ademais, a Convenção contém normas que podem ser
aplicadas pelos tribunais nacionais sem medidas legislativas adicionais.
Os preceitos sobre não-discriminação, consagrados em tantos tratados
de direitos humanos, prestam-se à autoaplicação. Segundo um estudo
recente, com exceção de seis cláusulas da Parte I da Convenção
Americana que expressamente reclamam a existência de uma lei ou de
medidas complementares, todos os demais preceitos da Parte I da Convenção
são autoaplicáveis (self-executing), em razão da própria
natureza das obrigações que incorporam e de sua "exigibilidade
direta e imediata"; se deixarem de ser aplicados pelos tribunais
nacionais ou outros órgãos internos dos Estados, configurar-se-á em
conseqüência a responsabilidade internacional destes últimos por
violação de suas obrigações convencionais.
Pode-se mesmo admitir uma
presunção em favor da auto-aplicabilidade das normas substantivas dos
tratados de direitos humanos, exceto se contiverem uma estipulação
expressa de execução por meio de leis subseqüentes que condicionem
inteiramente o cumprimento das obrigações em apreço; assim como a
A?t?U?questão da hierarquia das normas (e da determinação de qual delas
deve prevalecer) tem sido tradicionalmente reservada ao direito
constitucional (daí advindo as consideráveis variações neste
particular de país a país), a determinação do caráter autoaplicável
(self-executing) de uma norma internacional constitui, como se
tem bem assinalado, por sua vez, "uma questão regida pelo Direito
Internacional, já que se trata nada menos que do cumprimento ou da
violação de uma norma de Direito Internacional". O sentido e o
alcance do artigo 2 da Convenção Americana encontram-se hoje
suficientemente esclarecidos. Talvez a sua inserção na Convenção não
tivesse sido das mais felizes, em razão das incertezas que prontamente
advirem. A despeito destas, o recente Protocolo Adicional à Convenção
Americana em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
(1988) curiosamente reedita sua formulação, ao dispor que se o exercício
dos direitos nele consagrados "ainda não estiver garantido por
disposições legislativas ou de outra natureza, os Estados Partes,
comprometem-se a adotar, de acordo com seus processos
constitucionais" e com as disposições do próprio Protocolo,
"as medidas legislativas ou de outra natureza que forem necessárias
para tornar efetivos esses direitos" (artigo 2). Mas hoje,
distintamente, já se dispõe de elementos, doutrinários e
jurisprudenciais (supra), para assegurar um entendimento e uma
aplicação apropriados desta disposição do Protocolo de San Salvador
e evitar as incertezas que pareceram circundar o equivalente artigo 2 da
Convenção Americana em seus primórdios.
V. A Obrigação
Internacional dos Estados de Provimento de Recursos de Direito Interno
Eficazes.
Assim como é possível
medir a relevância das normas internacionais de proteção no âmbito
do direito interno dos Estados pelo impacto neste último dos tratados e
instrumentos de direitos humanos (cf. supra), do mesmo modo os
meios de reparação de direito interno se fazem presentes no próprio
processo legal internacional no dever do Estado de fornecer recursos
internos eficazes e no dever correspondente do indivíduo reclamante de
utilizá-los como condição de admissibilidade da petição
internacional. Com efeito, uma nova visão desta conjunção de deveres
complementares quanto aos meios de reparação internos contribui para
uma reavaliação da questão mais ampla da interação entre o direito
internacional e o direito interno no âmbito da proteção dos direitos
humanos.
Neste âmbito de proteção,
a visão clássica do requisito formal do esgotamento - pelos indivíduos
reclamantes - dos recursos de direito interno para a instituição de
procedimento contencioso internacional perde terreno para uma nova
concepção voltada ao elemento da reparação propriamente dita.
Apercebe-se então que a regra do esgotamento, na proteção dos
direitos humanos, só pode ser considerada adequadamente em conexão com
a obrigação correspondente dos Estados de prover recursos internos
eficazes; a ênfase passa a recair na tendência de aprimoramento dos
instrumentos e mecanismos nacionais de proteção judicial. EsA?t?U?ta mudança
de ênfase atribui maior responsabilidade aos tribunais internos
(judiciais e administrativos), convocando-os a exercer atualmente um
papel mais ativo - se não criativo - do que no passado na implementação
das normas internacionais de proteção. Se, por um lado, isto pode a
curto prazo revelar ou expor suas insuficiências ou deficiências no
exercício desta função "ampliada" de administração da
justiça, por outro lado isto pode, a médio e longo prazos, acarretar
conseqüências positivas. Uma primeira é, como já assinalado, o
aprimoramento da administração interna da justiça; uma segunda é uma
maior aproximação entre os Estados, já não pela predominância clássica
dos contatos entre os poderes executivos com seu apego quase instintivo
ao dogma da soberania exclusiva, mas também pelos contatos
internacionais dos poderes judiciários, beneficiando-se assim do
conhecimento mútuo das realidades jurídicas internas dos Estados; e
uma terceira é a atuação coordenada dos tribunais internos sob os
tratados de direitos humanos, em matérias por estes regidas, a despeito
das variações nos distintos ordenamentos jurídicos internos,
propiciando um certo grau de uniformidade na aplicação das normas dos
referidos tratados.
Dada a estrutura
descentralizada do ordenamento jurídico internacional, não é de
surpreender que, ao menos no âmbito da proteção internacional dos
direitos humanos, as atenções se voltem crescentemente à função
reservada aos tribunais nacionais na implementação das normas
internacionais. A Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, por
exemplo, impõe aos Estados Partes o dever de "garantir a independência
dos tribunaiA?t?U?s" e de propiciar o estabelecimento e aperfeiçoamento
de "instituições nacionais apropriadas" de promoção e
proteção dos direitos humanos nela garantidos (artigo 26). Ademais, os
tratados de direitos humanos regulamentam hoje uma área que, no
passado, era tida como tradicionalmente reservada ao direito
constitucional, a dos direitos fundamentais dos cidadãos vis-à-vis
o poder público. Com a "internacionalização" da proteção
dos direitos humanos, viram-se os Estados na obrigação adicional de
equipar-se devidamente para dar efeito aos tratados, particularmente os
de direitos humanos que requerem medidas a nível nacional para sua
implementação (e.g., o dever de prover recursos internos eficazes).
Tais medidas (legislativas ou administrativas) são de fundamental
importância, porquanto, segundo o princípio consagrado da
responsabilidade internacional, nenhum Estado pode invocar dificuldades
ou deficiências de direito interno como desculpa para evadir suas
obrigações internacionais.
O dever de provimento
pelos Estados Partes de recursos internos eficazes, imposto pelos
tratados de direitos humanos, constitui o necessário fundamento no
direito interno do dever correspondente dos indivíduos reclamantes de
fazer uso de tais recursos antes de levar o caso aos órgãos
internacionais. Com efeito, é precisamente porque os tratados de
direitos humanos impõem aos Estados Partes o dever de assegurar às
supostas vítimas recursos eficazes perante as instâncias nacionais
contra violações de seus direitos reconhecidos (nos tratados ou no
direito interno) (e.g., Pacto de Direitos Civis e Políticos, artigo
2(3)(a); Convenção das Nações Unidas coA?t?U?ntra a Tortura, artigo 14;
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
Racial, artigo VI; Convenção Americana sobre Direitos Humanos, artigo
25(1); Convenção Européia de Direitos Humanos, artigo 13; Carta
Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, artigo 7), que, reversamente,
requerem de todo reclamante o prévio esgotamento dos recursos de
direito interno como condição de admissibilidade de suas petições a
nível internacional (e.g., [primeiro] Protocolo Facultativo Relativo ao
Pacto de Direitos Civis e Políticos, artigo 5(2)(b); Convenção das Nações
Unidas contra a Tortura, artigo 22(5)(b); Convenção sobre a Eliminação
de Todas as Formas de Discriminação Racial, artigo XIV(7)(a); Convenção
Americana sobre Direitos Humanos, artigo 46(1)(a); Convenção Européia
de Direitos Humanos, artigos 26 e 27(3); Carta Africana dos Direitos
Humanos e dos Povos, artigo 56(5) e (6)).
VI. A Função dos
Órgãos e Procedimentos do Direito Público
Interno.
Há tratados de direitos
humanos que vão mais além, prevendo inclusive o compromisso dos
Estados Partes de "desenvolver as possibilidades de recurso
judicial" (e.g., Pacto de Direitos Civis e Políticos, artigo 2(3)
(b); Convenção Americana sobre Direitos Humanos, artigo 25(2) (b)). Os
tratados supracitados confiam assim a proteção dos direitos humanos
também aos órgãos e procedimentos do direito público interno e à
legislação constitucional e ordinária. A Convenção A?t?U?das Nações
Unidas contra a Tortura, por exemplo, determina que os Estados Partes
assegurarão às vítimas (ou seus dependentes), o direito à reparação
e a uma indenização "justa e adequada", incluídos os meios
necessários para a "mais completa reabilitação possível"
(artigo 14). Também a Convenção Interamericana contra a Tortura prevê
a adoção de medidas efetivas de direito interno (artigos 6-7 e 9) para
prevenir e punir a tortura. A seu turno, a Convenção sobre a Eliminação
de Todas as Formas de Discriminação Racial consagra um elenco
significativo de medidas exigidas dos Estados Partes, a engajarem não só
os tribunais nacionais como também os demais órgãos do poder público;
a Convenção prevê, e.g., a revisão de políticas governamentais
(artigo II (1) (c)), a adoção de medidas legislativas, judiciais,
administrativas ou outras (artigo II (1) (d) e (2) e artigos IV e IX) e
de medidas educativas (artigo VIII), para a realização de seu objeto e
propósito. A adoção de tais medidas, legislativas, judiciais,
administrativas ou outras, é igualmente prevista pela Convenção sobre
a Eliminação e a Punição do Crime do Apartheid (artigos 4 e
7).
Outros exemplos podem ser
destacados. A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra a Mulher, e.g., encontra-se permeada de inúmeros
compromissos de adoção de medidas diversas pelos Estados Partes
(artigos 3-8, 10-13, 14(2), 16 e 18) para a realização de seu objeto e
propósito. Pelo artigo 2(a), os Estados Partes se comprometem inclusive
a consagrar em suas Constituições nacionais ou em outra legislação
apropriada o princípio da igualdade do homem e da mulher e assegurar
A?t?U?
por lei outros meios apropriados à "realização prática"
desse princípio; comprometem-se a adotar todas as medidas adequadas
(legislativas e outras), inclusive as sanções cabíveis, e a modificação
ou derrogação de leis, regulamentos, usos e práticas, para por fim à
discriminação contra a mulher (artigo 2(b), (f) e (g));
comprometem-se, ademais, a assegurar, por meio dos tribunais nacionais e
outras instituições públicas, a proteção jurídica efetiva da
mulher (contra todo ato de discriminação) em base de igualdade com o
homem. Ao final de um elenco longo e circunstanciado de medidas a serem
tomadas pelos Estados Partes a nível do direito interno, o artigo 24,
como que para evitar qualquer omissão nesse sentido, dispõe em suma
sobre o compromisso dos Estados Partes de "adotar todas as medidas
necessárias em âmbito nacional para alcançar a plena realização"
dos direitos reconhecidos na Convenção. Igual compromisso é assumido
pelos Estados Partes na Convenção sobre os Direitos da Criança
(artigos 4, 19, 33 e 39).
Os Estados Partes em
tratados de direitos humanos encontram-se, em suma, obrigados a
organizar o seu ordenamento jurídico interno de modo que as supostas vítimas
de violações dos direitos neles consagrados disponham de um recurso
eficaz perante as instâncias nacionais. Esta obrigação adicional
opera como uma salvaguarda contra eventuais denegações de justiça, ou
atrasos indevidos ou outras irregularidades processuais na administração
da justiça. Com isto ao menos ficam impedidos os governos dos Estados
Partes de obstruir ações ante os tribunais nacionais (no processo de
esgotamento de recursos de direito interno) para obter reparaA?t?U?ção de
danos resultantes de violações dos direitos consagrados nos tratados
de direitos humanos. A operação dos deveres complementares de utilização
dos recursos de direito interno (pelos reclamantes) e de provimento de
tais recursos eficazes (pelos Estados demandados) contribui assim para
uma melhor apreciação da interação entre o direito internacional e o
direito interno no contexto da proteção dos direitos humanos.
VII. As Normas
Internacionais de Proteção Diretamente
Aplicáveis no Direito Interno.
O impacto dos tratados de
direitos humanos nos ordenamentos jurídicos internos dos Estados Partes
(supra) tem atraído bastante atenção nos últimos anos, e tem
se notabilizado mormente em numerosos casos que acarretaram, e.g.,
alterações nas respectivas legislações nacionais com o propósito de
harmonizá-las com os referidos tratados. Reversamente, a influência do
direito interno dos Estados Partes nos sistemas dos tratados de direitos
humanos tem atraído consideravelmente menos atenção. O fato de que não
raro os tribunais internos são chamados a interpretar disposições dos
tratados de direitos humanos no exame de casos concretos contribui em
parte para explicar o impacto desses tratados no direito interno dos
Estados Partes. Ao enfocar os efeitos desses tratados no direito interno
dos Estados Partes, a atitude da doutrina clássica tem consistido em
classificar estes últimos, de modo geral, em dois grupos, a saber: os
que possA?t?U?ibilitam dar efeito direto a disposições dos referidos
tratados, tidas como self-executing ou de aplicabilidade direta,
e os países cujo direito constitucional determina que, mesmo
ratificados, tais tratados não se tornam ipso facto direito
interno, para o que se requer legislação especial.
É esta uma determinação
que tem cabido ao direito constitucional; no entanto, cuidou o direito
internacional de elaborar o conceito das normas diretamente aplicáveis
(self-executing) propriamente ditas, com relação a disposições
de tratados passíveis de ser invocadas por um particular ante um
tribunal ou juiz ("incorporação" automática), sem
necessidade de um ato jurídico complementar ("transformação")
para sua exigibilidade e implementação. Para que uma norma
convencional possa ser autoaplicável, passou-se a considerar necessária
a conjugação de duas condições, a saber, primeiro, que a norma
conceda ao indivíduo um direito claramente definido e exigível ante um
juiz, e segundo, que seja ela suficientemente específica para poder ser
aplicada judicialmente em um caso concreto, operando per se sem
necessidade de um ato legislativo ou medidas administrativas subseqüentes.
A norma diretamente aplicável, em suma, consagra um direito individual,
passível de pronta aplicação ou execução pelos tribunais ou juízes
nacionais.
Não obstante as variações
verificáveis de país a país quanto à questão mais ampla do status
preciso dos tratados de direitos humanos no direito interno, por ser
deixada ao critério do dirA?t?U?eito constitucional de cada Estado Parte, a
aplicação das disposições convencionais - e de modo especial as
consideradas self-executing - pelos tribunais internos revela ao
menos o alcance da influência exercida ao longo dos anos pelos tratados
de direitos humanos nos Estados Partes. No plano normativo e em
perspectiva histórica, é sempre lembrada a consagração, nas
Constituições modernas, de direitos anteriormente proclamados em
tratados e instrumentos internacionais de direitos humanos,
particularmente a partir da Declaração Universal de 1948. Muito
significativamente, os resultados concretos obtidos nas últimas décadas
sob os tratados e instrumentos de direitos humanos demonstram que não há,
como a rigor nunca houve, qualquer impossibilidade lógica ou jurídica
de que indivíduos, seres humanos, sejam beneficiários diretos de
instrumentos internacionais. A polêmica clássica entre dualistas e
monistas, em seu inelutável hermetismo, parece ter-se erigido em falsas
premissas, ao se ter em mente os sistemas contemporâneos de proteção
dos direitos humanos.
A par da função
"internacional" atribuída aos tribunais internos, as próprias
características do processo legiferante que hoje conhecemos contribuem
para desvencilhar-nos das amarras da polêmica irreconciliável entre
monistas e dualistas. Para a liberação, nesse sentido, do espírito
jurídico contemporâneo, têm ademais contribuído decisivamente o
reconhecimento da competência ou capacidade de agir dos órgãos de
supervisão internacionais e sobretudo do direito de petição
individual ou da capacidade processual internacional dos indivíduos sob
os tratados e instrumentos de direitos humanos, osA?t?U? quais têm tornado a
controvérsia clássica entre dualistas e monistas ociosa, supérflua,
dispensável, e sem resultados práticos ao menos no tocante à operação
de tais tratados e instrumentos de proteção. Há que ter em mente que,
em uma dimensão mais ampla, os reconhecimentos do direito de petição
individual e da competência dos órgãos de supervisão internacionais
têm-se dado em meio à conscientização da identidade de propósito
primordial do direito internacional e do direito público interno
contemporâneos quanto às necessidades de proteção do ser humano.
Mesmo nos Estados que
efetivamente "incorporaram" os tratados de direitos humanos no
ordenamento jurídico interno persiste uma certa diversidade quanto ao
status ou posição exata desses tratados na hierarquia legal interna, -
o que era de se esperar, por se tratar de soluções de direito interno.
Sabe-se, por exemplo, que, no início dos anos noventa, dos 22 Estados
ratificantes da Convenção Européia de Direitos Humanos 14 já haviam
assegurado a esta o status de direito interno. Nem por isso se pode
deduzir que nos 14 Estados que incorporaram a Convenção ao ordenamento
jurídico interno os direitos humanos são necessariamente melhor
protegidos como conseqüência direta daquela providência: a
"incorporação" - embora meritória - não reflete
automaticamente a realidade da observância dos direitos humanos em um
país e o grau da proteção jurídica a eles estendida, sendo medidas
mais significativas e de maior alcance prático a aceitação do direito
de petição individual e da jurisdição compulsória dos órgãos
judiciais de proteção internacional. Assim, o fato de que no início
desta década todos oA?t?U?s 22 Estados Partes na Convenção Européia haviam
aceito o direito de petição individual sob a Convenção (artigo 25) e
todos os Estados Partes (com a única exceção da Turquia) haviam
aceito a jurisdição compulsória da Corte Européia de Direitos
Humanos (artigo 46 da Convenção) - independentemente do status da
Convenção no direito interno de cada país - revela a seriedade e
maturidade dos Estados Partes e explica em grande parte o êxito daquele
sistema regional de proteção dos direitos humanos.
Os tratados de direitos
humanos beneficiam diretamente os indivíduos e grupos protegidos.
Cobrem relações (dos indivíduos frente ao poder público) cuja
regulamentação era outrora o apanágio do direito constitucional. E
diversas das Constituições modernas, a seu turno, remetem
expressamente aos direitos consagrados nos tratados de direitos humanos
(cf. supra), a um tempo revelando nova postura ante a questão clássica
da hierarquia normativa dos tratados internacionais vigentes assim como
concedendo um tratamento especial ou diferenciado também no plano do
direito interno aos direitos e garantias individuais internacionalmente
consagrados (cf. supra). Regendo a mesma gama de relações, dos
indivíduos ante o Estado, o direito internacional e o direito interno
apontam aqui na mesma direção, coincidindo no propósito básico e último
de ambos da proteção do ser humano.
VIII. A Primazia da Norma
Mais Favorável às Vítimas.
A?t?U?
Não mais há pretensão
de primazia de um ou outro, como na polêmica clássica e superada entre
monistas e dualistas. No presente domínio de proteção, a primazia é
da norma mais favorável às vítimas, seja ela norma de direito
internacional ou de direito interno. Este e aquele aqui interagem em
benefício dos seres protegidos. É a solução expressamente consagrada
em diversos tratados de direitos humanos, da maior relevância por suas
implicações práticas. Merecedora da maior atenção, tem curiosamente
passado quase despercebida na doutrina contemporânea. Concentremo-nos,
pois, no que dispõem os tratados de direitos humanos a respeito.
No plano global, o Pacto
de Direitos Civis e Políticos proíbe expressamente qualquer restrição
ou derrogação aos direitos humanos reconhecidos ou vigentes em
qualquer Estado Parte, em virtude de outras convenções, ou de leis,
regulamentos ou costumes, "sob pretexto de que o presente Pacto não
os reconheça ou os reconheça em menor grau" (artigo 5(2)). Tanto
a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados (artigo 5) quanto a
Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas (artigo 5), prevêem
igualmente que nenhuma de suas disposições prejudicará os outros
direitos e vantagens concedidos respectivamente aos refugiados e apátridas,
independentemente delas. A Convenção sobre a Eliminação de Todas as
Formas de Discriminação contra a Mulher adverte que nada do disposto
nela prejudicará "qualquer disposição que seja mais propícia à
obtenção da igualdade entre homens e mulheres e que esteja contida: a)
na legislação de um Estado Parte; ou b) em qualA?t?U?quer outra convenção,
tratado ou acordo internacional vigente nesse Estado" (artigo 23).
Na mesma linha de pensamento, a Convenção sobre os Direitos da Criança
também adverte que nada do estipulado nela afetará "disposições
que sejam mais convenientes para a realização dos direitos da criança
e que podem constar: a) das leis de um Estado Parte; b) das normas de
direito internacional vigentes para esse Estado" (artigo 41).
No plano regional, a
mesma ressalva se encontra na Convenção Americana sobre Direitos
Humanos, que proíbe a interpretação de qualquer de suas disposições
no sentido de limitar o gozo e exercício de quaisquer direitos que
"possam ser reconhecidos de acordo com as leis de qualquer dos
Estados Partes ou de acordo com outra convenção em que seja Parte um
dos referidos Estados" (artigo 29(b)); proíbe, ademais, a
interpretação de qualquer de suas disposições no sentido de excluir
ou limitar "o efeito que possam produzir a Declaração Americana
dos Direitos e Deveres do Homem e outros atos internacionais da mesma
natureza" (artigo 29(d)). Da mesma forma, o Protocolo Adicional à
Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de San Salvador) determina
que "não se poderá restringir ou limitar qualquer dos direitos
reconhecidos ou vigentes em um Estado em virtude de sua legislação
interna ou de convenções internacionais, sob pretexto de que este
Protocolo não os reconhece ou os reconhece em menor grau" (artigo
4).
No contA?t?U?inente americano
assim como no continente europeu a solução é a mesma. Estipula a
Convenção Européia de Direitos Humanos que nenhuma de suas disposições
será interpretada no sentido de limitar ou prejudicar os direitos
humanos reconhecidos de acordo com as leis de qualquer Estado Parte ou
com qualquer outra convenção em que este for Parte (artigo 60). A
Convenção Européia para Prevenção da Tortura e Tratamento ou Punição
Desumano ou Degradante esclarece que não prejudicará ela "os
dispositivos do direito interno ou de qualquer acordo internacional que
forneçam maior proteção às pessoas privadas de sua liberdade"
(artigo 17(1)). A Carta Social Européia, a seu turno, determina
igualmente que suas disposições não prejudicarão as de direito
interno nem as de tratados que "sejam mais favoráveis às pessoas
protegidas" (artigo 32).
O critério da primazia
da norma mais favorável às pessoas protegidas, consagrado
expressamente em tantos tratados de direitos humanos, contribui em
primeiro lugar para reduzir ou minimizar consideravelmente as pretensas
possibilidades de "conflitos" entre instrumentos legais em
seus aspectos normativos. Contribui, em segundo lugar, para obter maior
coordenação entre tais instrumentos, em dimensão tanto vertical
(tratados e instrumentos de direito interno) quanto horizontal (dois ou
mais tratados). No tocante a esta última, o critério da primazia da
disposição mais favorável às vítimas já em fins da década de cinqüenta
era aplicado pela Comissão Européia de Direitos Humanos (petição nº
235/56, de 1958-1959), e recebeu reconhecimento judicial da Corte
Interamericana de Direitos Humanos no Parecer de 1985 sA?t?U?obre a Associação
Obrigatória de Jornalistas. Contribui, em terceiro lugar, como
ressaltamos em nosso curso ministrado na Academia de Direito
Internacional da Haia em 1987, para demonstrar que a tendência e o propósito
da coexistência de distintos instrumentos jurídicos - garantindo os
mesmos direitos - são no sentido de ampliar e fortalecer a proteção.
O que importa em última análise é o grau de eficácia da proteção,
e por conseguinte há de impor-se a norma que no caso concreto melhor
proteja, seja ela de direito internacional ou de direito interno.
IX. Conclusões.
Nas últimas décadas, a
operação regular dos tratados e instrumentos internacionais de
direitos humanos tem demonstrado sobejamente que podem beneficiar
diretamente os indivíduos. Na verdade, é este o seu propósito último;
ao criarem obrigações para os Estados vis-à-vis os seres
humanos sob sua jurisdição, as normas dos tratados de direitos humanos
aplicam-se não só na ação conjunta (exercício de garantia coletiva)
dos Estados Partes na realização do propósito comum de proteção,
mas também e sobretudo no âmbito do ordenamento interno de cada um
deles, nas relações entre o poder público e os indivíduos. Diversas
Constituições contemporâneas, referindo-se expressamente aos tratados
de direitos humanos, concedem um tratamento especial ou diferenciado
também no plano do direito interno aos direitos humanos
internacionalmente consagrados. Os tratados de direitos humanos indicam
A?t?U? vias de compatibilização dos dispositivos convencionais e dos de
direito interno de modo a prevenir conflitos entre as jurisdições
internacional e nacional no presente domínio de proteção; impõem aos
Estados Partes o dever de provimento de recursos de direito interno
eficazes, e por vezes o compromisso de desenvolvimento das
"possibilidades de recurso judicial"; prevêem a adoção
pelos Estados Partes de medidas legislativas, judiciais, administrativas
ou outras, para a realização de seu objeto e propósito. Em suma,
contam com o concurso dos órgãos e procedimentos do direito público
interno. Há, assim, uma interpenetração entre as jurisdições
internacional e nacional no âmbito de proteção do ser humano.
O cumprimento das obrigações
internacionais de proteção requer o concurso dos órgãos internos dos
Estados, e estes são chamados a aplicar as normas internacionais. É
este o traço distintivo e talvez o mais marcante dos tratados de
direitos humanos, dotados de especificidade própria e a requererem uma
interpretação própria guiada pelos valores comuns superiores que
abrigam, diferentemente dos tratados clássicos que se limitam a
regulamentar os interesses recíprocos entre as Partes. Com a interação
entre o direito internacional e o direito interno no presente contexto,
os grandes beneficiários são as pessoas protegidas. Em um sistema
integrado como o da proteção dos direitos humanos, os atos internos
dos Estados estão sujeitos à supervisão dos órgãos internacionais
de proteção quando, no exame dos casos concretos, se trata de
verificar a sua conformidade com as obrigações internacionais dos
Estados em matéria de direitos humanos. As normas internacionais A?t?U?que
consagram e definem claramente um direito individual, passível de
vindicação ante um tribunal ou juiz nacional, são diretamente aplicáveis.
Além disso, os próprios tratados de direitos humanos
significativamente consagram o critério da primazia da norma mais favorável
às vítimas, seja ela norma de direito internacional ou de direito
interno.
Afastada, no presente domínio,
a compartimentalização, teórica e estática da doutrina clássica,
entre o direito internacional e o direito interno, em nossos dias, com a
interação dinâmica entre um e outro neste âmbito de proteção, é o
próprio Direito que se enriquece - e se justifica, - na medida em que
cumpre a sua missão última de fazer justiça. No presente contexto, o
direito internacional e o direito interno interagem e se auxiliam
mutuamente no processo de expansão e fortalecimento do direito de proteção
do ser humano. Nestes anos derradeiros a conduzir-nos ao final do século,
é alentador constatar que o direito internacional e o direito interno
caminham juntos e apontam na mesma direção, coincidindo no propósito
básico e último de ambos da proteção do ser humano.
São José da Costa Rica,
12 de junho de 1996.
A.A.C.T.
PrefácioA?t?U?
DIREITO INTERNACIONAL E
DIREITO INTERNO: SUA INTERAÇÃO NA
PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS
Por:
Antônio Augusto CANÇADO
TRINDADE
Ph.D. (Cambridge), Juiz
da Corte Interamericana de Direitos Humanos, Professor Titular da
Universidade de Brasília,
Diretor Executivo do
Instituto Interamericano de Direitos Humanos
I. Introdução.
Um dos aspectos básicos
do labor de promoção dos direitos humanos reside na difusão da
normativa de proteção. A presente iniciativa atende a esse propósito.
É, assim, com satisfação, que acedemos ao honroso convite da
Procuradoria Geral do Estado de São Paulo para elaborar, em forma de
estudo doutrinário introdutório, o Prefácio desta coA?t?U?letânea
intitulada Os Instrumentos Internacionais de Proteção aos Direitos
Humanos. Há que somar esforços em prol da causa comum da plena vigência
dos direitos humanos em nosso país; a presente publicação se dá em
meio a um alentador florescimento de interesse em nossos círculos jurídicos
pela aplicação dos instrumentos internacionais de proteção dos
direitos humanos em nosso direito interno.
Ainda há pouco, a coletânea
de ensaios que editamos intitulada A Incorporação das Normas
Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos no Direito Brasileiro
(Instituto Interamericano de Direitos Humanos, 1996, págs. 1-845),
reunindo contribuições de cerca de cinqüenta autores, em sua grande
maioria brasileiros, alcançou sua segunda edição duas semanas depois
de seu lançamento em Brasília e São Paulo. Nossas Universidades
passam, enfim, a incluir em seus currículos e cursos regulares, a temática
dos Direitos Humanos, ainda que com denominações distintas. O
despertar de nossos círculos jurídicos e universitários para os
direitos humanos como disciplina autônoma é, além de alentador,
irreversível. A presente e louvável iniciativa da Procuradoria Geral
do Estado de São Paulo vem reforçar os esforços envidados em nosso país
por todos os que acreditamos que só pode haver democracia e Estado de
Direito com a plena observância dos direitos humanos, tomados estes em
sua concepção integral, a abarcar os direitos civis, políticos,
econômicos, sociais e culturais.
Uma publicação como a
presente atende, com efeito, a dois objetivos básA?t?U?icos e complementares:
em primeiro lugar, alcançar a mais ampla difusão dos instrumentos
internacionais de proteção dos direitos humanos, o que se reveste de
suma importância, porquanto o passo inicial para a vindicação dos
direitos consiste em bem conhecê-los. Em segundo lugar, visa contribuir
à fiel aplicação dos instrumentos internacionais relacionados, no
plano do direito interno. A tarefa de legislação internacional no
presente domínio já se encontra bastante avançada; cumpre agora dar
real efetividade aos múltiplos instrumentos internacionais coexistentes
no plano do direito interno.
A incorporação da
normativa internacional de proteção no direito interno dos Estados
constitui alta prioridade em nossos dias: pensamos que, da adoção e
aperfeiçoamento de medidas nacionais de implementação depende
em grande parte o futuro da própria proteção internacional dos
direitos humanos. Na verdade, como se pode depreender de um exame
cuidadoso da matéria, no presente domínio de proteção o direito
internacional e o direito interno conformam um todo indivisível:
apontam na mesma direção, desvendando o propósito comum de proteção
da pessoa humana. O direito internacional e o direito interno aqui se
mostram, desse modo, em constante interação, em benefício dos seres
humanos protegidos. Senão vejamos.
O antagonismo irreconciliável
entre as posições monista e dualista clássicas provavelmente levou os
juristas a abordar mais recentemente a relação entre o direito
internacional e o direito interno de ângulos distintos. A distinção
A?t?U? tradicional, enfatizando a pretensa diferença das relações reguladas
pelos dois ordenamentos jurídicos, dificilmente poderia fornecer uma
resposta satisfatória à questão da proteção internacional dos
direitos humanos: sob o direito interno as relações entre os indivíduos,
ou entre o Estado e os indivíduos, eram consideradas sob o aspecto da
"competência nacional exclusiva"; e tentava-se mesmo
argumentar que os direitos individuais reconhecidos pelo direito
internacional não se dirigiam diretamente aos beneficiários, e por
conseguinte não eram diretamente aplicáveis. Com o passar dos anos,
houve um avanço, no sentido de, ao menos, distinguir entre os países
em que certas normas dos instrumentos internacionais de direitos humanos
passaram a ter aplicabilidade direta, e os países em que necessitavam
elas ser "transformadas" em leis ou disposições de direito
interno para ser aplicadas pelos tribunais e autoridades
administrativas.
Como buscamos demonstrar
em estudo publicado na Alemanha em meados dos anos setenta, outros
abordamentos podem desvendar um campo de pesquisa bem mais rico e fértil,
quais sejam, o status interno (nacional) de disposições jurídicas
internacionais a partir do prisma do direito constitucional (comparado),
ou o exame ou a interpretação do direito interno pelos tribunais
internacionais (para verificar a compatibilidade do direito interno com
o direito internacional), ou a relevância do direito interno no
processo legal internacional, ou a implementação de decisões
judiciais internacionais pelos tribunais internos. Estes enfoques
continuam a requerer, e merecer, maior atenção.
Decorridas duas décadas
desde a publicação deste nosso estudo, é chegado o momento de
retomarmos o exame do tema, tomando em conta desenvolvimentos recentes
sobre a matéria. Para tal, consideraremos de início o impacto de
instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos em
Constituições recentes. A seguir, examinaremos quatro questões, a
saber: a supervisão internacional da compatibilidade dos atos internos
dos Estado com suas obrigações internacionais de proteção; a
compatibilização e prevenção de conflitos entre as jurisdições
internacional e nacional em matéria de direitos humanos; a obrigação
internacional dos Estados de provimento de recursos de direito interno
eficazes; e a função dos órgãos e procedimentos do direito público
interno. Enfim, abordaremos as questões das normas internacionais de
proteção diretamente aplicáveis no direito interno, e da primazia da
norma mais favorável às vítimas. O campo estará, então, aberto à
apresentação de nossas conclusões.
II. O Impacto de
Instrumentos Internacionais de Proteção
dos Direitos Humanos em
Constituições Recentes.
Já não mais se
justifica que o direito internacional e o direito constitucional
continuem sendo abordados de forma estanque ou compartimentalizada, como
o foram no passado. Já não pode haver dúvida de que as grandes
transformações internas dos EA?t?U?stados repercutem no plano internacional,
e a nova realidade neste assim formada provoca mudanças na evolução
interna e no ordenamento constitucional dos Estados afetados.
Ilustram-no, e.g., as profundas mudanças constitucionais que vêm
ocorrendo nos países de Leste Europeu a partir de 1988-1989, visando a
construção de novos Estados de Direito, durante cujo processo aqueles
países foram levados gradualmente a tornar-se Partes nos dois Pactos de
Direitos Humanos das Nações Unidas. Estas transformações recentes têm,
a um tempo, gerado um novo constitucionalismo assim como uma abertura à
internacionalização da proteção dos direitos humanos.
Com efeito, nos últimos
anos o impacto de instrumentos internacionais de proteção dos direitos
humanos tem-se feito sentir em algumas Constituições. Ilustração
pertinente é fornecida pela Constituição Portuguesa de 1976, que
estabelece que os direitos fundamentais nela consagrados "não
excluem quaisquer outros constantes das leis e das regras aplicáveis de
direito internacional", e acrescenta: - "Os preceitos
constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser
interpretados e integrados em harmonia com a Declaração Universal dos
Direitos do Homem" (artigo 16(1) e (2)). A disposição da
Constituição da Alemanha - com emendas até dezembro de 1983 - segundo
a qual "as normas gerais do Direito Internacional Público
constituem parte integrante do direito federal" e "sobrepõem-se
às leis e constituem fonte de direitos e obrigações para os
habitantes do território federal" (artigo 25), pode ser entendida
como englobando os direitos e obrigações consagrados nos instrumentos
A?t?U? de proteção internacional dos direitos humanos.
Um dos exemplos mais
comumente lembrados em nossos dias de Constituições recentes que,
reconhecendo a importância dos tratados de direitos humanos, os
singularizam e a eles estendem cuidado especial, é o da Constituição
Espanhola de 1978, que submete a eventual denúncia de tratados sobre
direitos e deveres fundamentais ao requisito da prévia autorização ou
aprovação do Poder Legislativo (artigos 96(2) e 94(1)(c)). Tal aprovação
congressual para a eventual denúncia daqueles tratados naturalmente
abre uma brecha em reduto do Executivo, em favor da manutenção da vigência
de tais instrumentos, mesmo porque o Legislativo só poderia autorizar
sua denúncia na forma prevista nos próprios tratados ou consoante as
regras gerais do direito internacional. Fortalecem-se, desse modo, os
tratados de direitos humanos.
Não é este um exemplo
isolado. Na América Latina, surgem mostras em nossos dias de nova
postura ante a questão clássica da hierarquia normativa dos tratados
internacionais vigentes, como revelado pela nova tendência de algumas
Constituições latino-americanas recentes de dispensar um tratamento
diferenciado ou especial aos tratados de direitos humanos ou aos
preceitos neles consagrados. Exemplo dos mais marcantes, nesta nova
linha, é fornecido pela [anterior] Constituição do Peru de 1978, cujo
artigo 105 determinava que os preceitos contidos nos tratados de
direitos humanos têm hierarquia constitucional, e não podem ser
modificados senão pelo procedimento para a reforma da própria
ConsA?t?U?tituição. Lamentavelmente não se encontra esta disposição
reiterada nos mesmos termos na atual Constituição Política do Peru de
1993 (referendo de 31.10.1993), a qual se limita a determinar (4a.
disposição final e transitória) que os direitos constitucionalmente
reconhecidos se interpretam de conformidade com a Declaração Universal
de Direitos Humanos e com os tratados de direitos humanos ratificados
pelo Peru. Outro exemplo reside na Constituição da Guatemala de 1985,
cujo artigo 46 estabelece que os tratados de direitos humanos
ratificados pela Guatemala têm preeminência sobre o direito interno.
Assim, enquanto a anterior Constituição Peruana atribuía hierarquia
constitucional aos tratados de direitos humanos, a atual Constituição
Guatemalteca atribui a estes hierarquia especial, com preeminência
sobre a legislação ordinária e o restante do direito interno. Outra
ilustração é dada pela nova Constituição da Nicarágua, de 1987,
que, pelo disposto em seu artigo 46, integra, para fins de proteção,
na enumeração constitucional de direitos, os direitos consagrados na
Declaração Universal dos Direitos Humanos, na Declaração Americana
dos Direitos e Deveres do Homem, nos dois Pactos de Direitos Humanos das
Nações Unidas (de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, e de
Direitos Civis e Políticos), e na Convenção Americana sobre Direitos
Humanos.
Na mesma linha de
pensamento situa-se uma das recentes modificações introduzidas na
Constituição do Chile em decorrência do plebiscito convocado para 30
de julho de 1989; pela nova reforma constitucional, de 1989, agregou-se
ao final do artigo 5(II) da Constituição Chilena a seguinte disposição:
- "É dever dos órA?t?U?gãos do Estado respeitar e promover tais
direitos, garantidos por esta Constituição, assim como pelos tratados
internacionais ratificados pelo Chile e que se encontrem vigentes".
Desse modo, os direitos garantidos por aqueles tratados passaram a
equiparar-se hierarquicamente aos garantidos pela Constituição Chilena
reformada. Outro exemplo pertinente é fornecido pela Constituição da
Colômbia de 1991, cujo artigo 93 determina que os tratados de direitos
humanos ratificados pela Colômbia "prevalecem na ordem
interna", e que os direitos humanos constitucionalmente consagrados
serão interpretados de conformidade com os tratados de direitos humanos
ratificados pela Colômbia.
Bem próxima da postura
refletida nas soluções acima referidas encontra-se a da Constituição
Brasileira de 1988, que, após proclamar que o Brasil se rege em suas
relações internacionais pelo princípio, entre outros, da prevalência
dos direitos humanos (artigo 4(II)), constituindo-se em Estado Democrático
de Direito tendo como fundamento, inter alia, a dignidade da
pessoa humana (artigo 1(III)), estatui, - consoante proposta que avançamos
na Assembléia Nacional Constituinte e por esta aceita, - que os
direitos e garantias nela expressos não excluem outros decorrentes do
regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados
internacionais em que o Brasil seja Parte (artigo 5(2)). E acrescenta
que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm
aplicação imediata (artigo 5(1)).
O disposto no artigo 5(2)
da Constituição Brasileira A?t?U?de 1988 se insere na nova tendência de
Constituições latino-americanas recentes de conceder um tratamento
especial ou diferenciado também no plano do direito interno aos
direitos e garantias individuais internacionalmente consagrados. A
especificidade e o caráter especial dos tratados de proteção
internacional dos direitos humanos encontram-se, com efeito,
reconhecidos e sancionados pela Constituição Brasileira de 1988: se,
para os tratados internacionais em geral, se tem exigido a intermediação
pelo Poder Legislativo de ato com força de lei de modo a outorgar a
suas disposições vigência ou obrigatoriedade no plano do ordenamento
jurídico interno, distintamente no caso dos tratados de proteção
internacional dos direitos humanos em que o Brasil é Parte os direitos
fundamentais neles garantidos passam, consoante os artigos 5(2) e 5(1)
da Constituição Brasileira de 1988, a integrar o elenco dos direitos
constitucionalmente consagrados e direta e imediatamente exigíveis no
plano do ordenamento jurídico interno.
Mais recentemente,
incorporou-se à Constituição da Argentina, reformada em agosto de
1994, o artigo 75(22), pelo qual determinados tratados e instrumentos de
direitos humanos, nele enumerados, têm "hierarquia
constitucional", só podendo ser denunciados mediante prévia
aprovação de dois terços dos membros do Legislativo; tais tratados e
instrumentos de direitos humanos são "complementares" aos
direitos e garantias reconhecidos na Constituição. Outra técnica
seguida em recentes reformas constitucionais tem consistido em dispor
sobre a procedência do recurso de amparo para a salvaguarda dos
direitos consagrados nos tratados de A?t?U?direitos humanos (Constituição da
Costa Rica, reformada em 1989, artigo 48; além da Constituição da
Argentina, artigo 43); outras Constituições optam por referir-se à
normativa internacional em relação a um determinado direito, para o
qual "a fonte internacional adquire hierarquia constitucional"
(Constituições do Equador, artigos 43 e 17; de El Salvador, artigo 28;
de Honduras, artigo 119(2)).
As Constituições
latino-americanas supracitadas reconhecem assim a relevância da proteção
internacional dos direitos humanos e dispensam atenção e tratamento
especiais à matéria. Ao reconhecerem que sua enumeração de direitos
não é exaustiva ou supressiva de outros, descartam desse modo o princípio
de interpretação das leis inclusio unius est exclusio alterius.
É alentador que as conquistas do direito internacional em favor da
proteção do ser humano venham a projetar-se no direito constitucional,
enriquecendo-o, e demonstrando que a busca de proteção cada vez mais
eficaz da pessoa humana encontra guarida nas raízes do pensamento tanto
internacionalista quanto constitucionalista.
As soluções, de direito
constitucional, quanto à hierarquia entre normas de tratados e de
direito interno, resultam de critérios valorativos e da
discricionariedade dos constituintes nacionais, variando, pois, de país
a país. Não surpreende, assim, que algumas Constituições se mostrem
mais abertas ao direito internacional do que outras. O que deve resultar
claro é que isto ocorre não em razão da natureza intrínseca da norma
jurídica; se assim fosse, nãA?t?U?o haveria a diversidade de soluções
(constitucionais) à questão. A tendência constitucional contemporânea
de dispensar um tratamento especial aos tratados de direitos humanos é,
pois, sintomática de uma escala de valores na qual o ser humano passa a
ocupar posição central. Um papel importante está aqui reservado aos
advogados de supostas vítimas de violações de direitos humanos,
particularmente nos países em que aquela tendência ainda não se tem
acentuado com vigor: no intuito de buscar a redução da considerável
distância entre o reconhecimento formal, e a vigência real, dos
direitos humanos, consagrados não só na Constituição e na lei
interna como também nos tratados de proteção, cabe aos advogados
invocar estes últimos, referindo-se às obrigações internacionais que
vinculam o Estado no presente domínio de proteção, de modo a exigir
dos juízes e tribunais nacionais, no exercício permanente de suas funções,
que considerem, estudem e apliquem as normas dos tratados de direitos
humanos, e fundamentem devidamente suas decisões.
Os fundamentos últimos
da proteção dos direitos humanos transcendem o direito estatal, e o
consenso generalizado formado hoje em torno da necessidade da
internacionalização de sua proteção corresponde a uma manifestação
cultural de nossos tempos, juridicamente viabilizada pela coincidência
de objetivos entre o direito internacional e o direito interno quanto à
proteção da pessoa humana. Como, também neste domínio, a um Estado não
é dado deixar de cumprir suas obrigações convencionais sob o pretexto
de supostas dificuldades de ordem constitucional ou interna, com maior
razão ainda não haver desculpa para um Estado de não se conformar a
A?t?U? um tratado de direitos humanos no qual é Parte pelo simples fato de
seus tribunais interpretarem, no plano do direito interno, o tratado de
modo diferente do que se impõe no plano do direito internacional. Com
estas reflexões em mente, passemos ao ponto seguinte de nosso estudo,
qual seja, o da compatibilidade dos atos internos dos Estados com suas
obrigações internacionais de proteção.
III. A Supervisão
Internacional da Compatibilidade dos Atos
Internos dos Estados com Suas Obrigações Internacionais de Proteção.
Constatamos atualmente,
por um lado, uma crescente "abertura" das Constituições
contemporâneas - de que dão exemplo marcante as de alguns países
latino-americanos e as de países tanto da Europa Oriental hodierna como
da Europa Ocidental - à normativa internacional de proteção dos
direitos humanos. A este fenômeno se agrega, por outro lado, a atribuição
de funções, pelos tratados de direitos humanos, aos órgãos internos
dos Estados, para a realização de seu objeto e propósito. A interação
resultante entre o direito internacional e o direito interno no presente
domínio de proteção é, pois, manifesta e inquestionável. E não se
limita à relação, com o direito interno, dos tratados de direitos
humanos propriamente ditos: outra ilustração, talvez menos lembrada,
no mesmo sentido da interação, reside na implementação das Convenções
internacionais do trabalho da OIT.
&nbA?t?U?sp;
Alguns aspectos da interação
entre o direito internacional e o direito interno na proteção dos
direitos humanos são particularmente significativos. Em primeiro lugar,
os próprios tratados de direitos humanos atribuem uma função capital
à proteção por parte dos tribunais internos, como evidenciado pelas
obrigações de fornecer recursos internos eficazes e de esgotá-los,
que recaem, respetivamente, sobre os Estados demandados e os indivíduos
reclamantes. Tendo a si confiada a proteção primária dos direitos
humanos, os tribunais internos têm, em contrapartida, que conhecer e
interpretar as disposições pertinentes dos tratados de direitos
humanos. Donde a propalada subsidiaridade do processo legal
internacional, a qual encontra sólido respaldo na prática
internacional, na jurisprudência, nos tratados, assim como na doutrina.
Em segundo lugar, a
margem de controvérsias é reduzida ou mesmo eliminada na medida em que
os próprios tratados disponham sobre a função e o procedimento dos
tribunais internos na aplicação das normas internacionais de proteção
neles consagradas. Nos casos em que a atuação dos tribunais internos
envolve a aplicação do direito internacional dos direitos humanos,
assume importância crucial a autonomia do Judiciário, a sua independência
de qualquer tipo de influência executiva. Em terceiro lugar, é certo
que os tribunais internacionais de direitos humanos existentes - as
Cortes Européia, e Interamericana de Direitos Humanos - não
"substituem" os tribunais internos, e tampouco operam como
tribunais de recursos ou de cassação de decisões dos tribunais
internos. Não obstantA?t?U?e, os atos internos dos Estados podem vir a ser
objeto de exame por parte dos órgãos de supervisão internacionais
quando se trata de verificar a sua conformidade com as obrigações
internacionais dos Estados em matéria de direitos humanos. Os atos
internos dos Estados não se encontram isentos de verificação quanto
ao seu valor de prova, porquanto podem não estar conformes as obrigações
internacionais dos Estados.
Isto se aplica à legislação
nacional assim como às decisões internas judiciais e administrativas.
Por exemplo, uma decisão judicial interna pode dar uma interpretação
incorreta de uma norma de um tratado de direitos humanos; ou qualquer
outro órgão estatal pode deixar de cumprir uma obrigação
internacional do Estado neste domínio. Em tais hipóteses pode-se
configurar a responsabilidade internacional do Estado, porquanto seus
tribunais ou outros órgãos não são os intérpretes finais de suas
obrigações internacionais em matéria de direitos humanos. Os órgãos
de supervisão internacionais não são obrigados a conhecer o direito
interno dos diversos Estados, mas sim a tomar conhecimento dele como
elemento de prova, no processo de verificação da conformidade dos atos
internos (judiciais, legislativos, administrativos) dos Estados com as
obrigações convencionais que a estes se impõem. Este exame da aplicação
do direito interno é de certo modo incidenter tantum, como parte
essencial ou integral da função de supervisão internacional, e
elemento probatório para o exame do comportamento estatal interno de
relevância internacional. Nessa ótica, é o próprio direito interno
que assume importância no processo legal internacional.
Isto se torna ainda mais
claro em um sistema de garantia coletiva como o da proteção dos
direitos humanos, particularmente o dos tratados de direitos humanos
dotados também de petições inter-estatais (e.g., Convenção
Americana sobre Direitos Humanos, artigo 45; Convenção Européia de
Direitos Humanos, artigo 24; Carta Africana sobre Direitos Humanos e dos
Povos, artigos 47-54; Pacto de Direitos Civis e Políticos, artigo 41;
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
Racial, artigos XI-XIII; Convenção das Nações Unidas contra a
Tortura, artigo 21), em que os órgãos de supervisão internacionais em
questão podem ser convocados por um Estado Parte para verificar se os
atos normativos, administrativos ou judiciais internos de outro Estado
Parte, em suma, o próprio comportamento deste, encontra-se ou não em
conformidade com as disposições daqueles tratados. E mesmo no tocante
ao exercício do direito de petição individual nestes consagrado
(e.g., Convenção Americana sobre Direitos Humanos, artigo 44; Convenção
Européia de Direitos Humanos, artigo 25; Carta Africana sobre Direitos
Humanos e dos Povos, artigos 55-58; [primeiro] Protocolo Facultativo ao
Pacto dos Direitos Civis e Políticos, artigos 1-3 e 5; Convenção
sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial,
artigo XIV; Convenção das Nações Unidas contra a Tortura, artigo
22), registram-se hoje inúmeros casos relativos a matérias normalmente
regidas pelo direito interno: basta lembrar, por exemplo, sob a Convenção
Européia de Direitos Humanos, os numerosos casos de petições ou
reclamações sob o artigo 6 (concernente ao direito de toda pessoa a
que a sua causa seja examinada eqüitativamente por um tribunal
A?t?U? independente e imparcial) e o artigo 5 (referente a prisão ou detenção
legal e o direito à liberdade e segurança de toda pessoa), cobrindo
matérias reguladas pelo ordenamento jurídico interno.
A par desses casos
numerosos, poder-se-ia aqui fazer referência específica ao célebre Caso
Lingüístico Belga, por exemplo, em que a Corte Européia de
Direitos Humanos deixou claro (julgamento quanto ao mérito, 1968) que não
poderia assumir a função das autoridades nacionais competentes, que
permaneciam livres para escolher e tomar as providências que
considerassem apropriadas nas matérias regidas pela Convenção Européia:
sua função de supervisão dizia respeito tão somente à conformidade
dessas providências com os requisitos da Convenção. No caso dos 23
Habitantes de Alsemberg e de Beersel versus Bélgica (1963), a
Comissão Européia de Direitos Humanos, a seu turno, observou que a
reclamação pretendia a declaração não da nulidade de uma decisão
isolada mas antes da incompatibilidade da legislação "lingüística"
belga com os requisitos da Convenção; pouco antes, no caso X versus
Bélgica (1960), a Comissão advertira que não lhe incumbia decidir
sobre a interpretação e aplicação do direito interno pelos tribunais
internos, a não ser que tal direito constituísse uma violação da
Convenção ou que na interpretação ou aplicação do direito interno
tivessem os tribunais internos cometido tal violação.
No continente americano,
a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em seu relatório anual
de 1977, constatou deficiências nA?t?U?o direito interno de muitos países
(inoperância de garantias e meios de defesa, falta de independência do
Poder Judiciário), que deixavam de oferecer proteção adequada às vítimas
de violações de direitos humanos; era precisamente nestas circunstâncias,
- esclareceu a Comissão Interamericana no relatório de 1980 sobre a
situação dos direitos humanos na Argentina, - que se tornava necessária
a atuação dos órgãos de supervisão internacionais. Em relatórios
anuais mais recentes, a Comissão relacionou a proteção dos direitos
humanos com a própria organização política (interna) do Estado e o
exercício efetivo da democracia, e em varias ocasiões instou os
Estados-membros da OEA a incorporar aos textos de suas Constituições
certos direitos e a harmonizar suas legislações respectivas com os
preceitos contidos nos tratados de direitos humanos. Em decorrência das
recomendações gerais formuladas em seus relatórios ou dirigidas a
determinados Governos, logrou a Comissão que se modificassem ou
derrogassem leis violatórias dos direitos humanos, e que se
estabelecessem ou aperfeiçoassem recursos e procedimentos de direito
interno para a plena vigência dos direitos humanos.
Cabe, pois, naturalmente
aos tribunais internos interpretar e aplicar as leis dos países
respectivos, exercendo os órgãos internacionais especificamente a função
de supervisão, nos termos e parâmetros dos mandatos que lhes foram
atribuídos pelos tratados e instrumentos de direitos humanos
respectivos. Mas cabe, ademais, aos tribunais internos, e outros órgãos
dos Estados, assegurar a implementação a nível nacional das normas
internacionais de proteção, o que realça a importância de seu papel
em um sisA?t?U?tema integrado como o da proteção dos direitos humanos, no
qual as obrigações convencionais abrigam um interesse comum superior
de todos os Estados Partes, o da proteção do ser humano. Os órgãos
de supervisão internacionais, por sua vez, controlam a compatibilidade
da interpretação e aplicação do direito interno com as obrigações
convencionais, para determinação dos elementos factuais a serem
avaliados para o propósito da aplicação das disposições pertinentes
dos tratados de direitos humanos.
É possível que os órgãos
de supervisão venham a ocupar-se, no exame dos casos concretos, e.g.,
de erros de fato ou de direito cometidos pelos tribunais internos, na
medida em que tais erros pareçam ter resultado em violação de um dos
direitos assegurados pelos tratados de direitos humanos. Na mesma linha,
podem os órgãos de supervisão, na consideração dos casos concretos,
vir a examinar a legislação nacional, não in abstracto, mas na medida
em que sua aplicação pareça constituir uma violação de um dos
direitos assegurados pelos tratados de direitos humanos. Com efeito, graças
à atuação - desde seus primórdios - dos órgãos de supervisão próprios
aos sistemas europeu e interamericano de direitos humanos, em numerosos
casos tem-se logrado pôr fim a práticas administrativas violatórias
dos direitos humanos e alterar medidas legislativas para salvaguardar os
direitos humanos.
IV. Compatibilização e
Prevenção de Conflitos entre as Jurisdições Internacional e Nacional
em Matéria de Direitos Humanos.
Vê-se, do acima exposto,
que os tratados de direitos humanos impõem deveres que implicam a
interação entre suas normas e as de direito interno. Ao consagrarem
normas que acarretam esta interação, como as atinentes à
compatibilização entre seus dispositivos e os de direito interno (por
vezes com referência expressa e preceitos constitucionais e leis
internas), os tratados de direitos humanos atenderam à necessidade de
prevenir ou evitar conflitos entre as jurisdições internacional e
nacional e de harmonizar a legislação nacional com as obrigações
convencionais. Daí a total improcedência da invocação da soberania
estatal no tocante à interpretação e aplicação dos tratados de
direitos humanos vigentes. A propósito, em seu discurso na plenária de
abertura da II Conferência Mundial de Direitos Humanos (Viena, junho de
1993), o Secretário-Geral das Nações Unidas (B. Boutros-Ghali)
sugeriu que, "par leur nature, les droits de l'homme abolissent la
distinction traditionnelle entre l'ordre interne et l'ordre
international. Ils sont créateurs d'une perméabilité juridique
nouvelle. Il s'agit donc de ne les considérer, ni sous l'angle de la
souveraineté absolue, ni sous celui de l'ingérence politique. Mais, au
contraire, il faut comprendre que les droits de l'homme impliquent la
collaboration et la coordenation des États et des organisations
internationales".
A par das vias
supracitadas de compatibilização dos dispositivos convencionais e dos
de direito interno, também se voltam a este mesmo propósito as cláusulas
de derrogação e de limitações ou restriçõeA?t?U?s ao exercício de
certos direitos (a serem restritivamente interpretadas), para atender às
necessidades dos Estados diante de situações factuais de emergência
imprevisíveis e propiciar o fiel desempenho pelos Estados de seus
deveres públicos em prol do bem comum; as reservas autorizadas ou
permitidas pelos próprios tratados (também a serem restritivamente
interpretadas, além de necessariamente compatíveis com o objeto e propósito
dos referidos tratados); a consagração do requisito do prévio
esgotamento dos recursos de direito interno nos instrumentos de proteção
internacional dos direitos humanos, a evidenciar o caráter subsidiário
dos procedimentos internacionais e a função primordial e
responsabilidade primária dos órgãos internos dos Estados como parte
integrante do sistema de proteção internacional dos direitos humanos;
e as cláusulas facultativas (e.g., de reconhecimento da competência de
órgãos de supervisão internacionais para examinar petições ou
reclamações individuais e inter-estatais, e de reconhecimento da
jurisdição compulsória de órgãos judiciais de proteção dos
direitos humanos), como alternativas abertas aos Estados pelos próprios
tratados de direitos humanos para a aceitação normal das obrigações
convencionais, de modo a possibilitar-lhes medir o grau de
comprometimento que se vêem em condições de assumir, e desse modo
viabilizar as ratificações ou adesões do maior número possível de
Estados.
Não há que confundir as
categorias acima (cláusulas de compatibilização, derrogações e
limitações ou restrições permissíveis, reservas permissíveis, prévio
esgotamento dos recursos internos, e cláusulas facultativas), todas
distintas mas coA?t?U?ntribuindo cada uma a seu modo para prevenir ou evitar
conflitos entre as jurisdições internacional e nacional, e para
remover obstáculos à evolução da proteção internacional dos
direitos humanos. Nunca é demais deixar esclarecido que as eventuais
limitações ou restrições permissíveis ao exercício dos direitos
consagrados, ademais de deverem ser interpretadas restritivamente e em
favor destes últimos, devem necessariamente cumprir certos requisitos,
a saber: ser previstas em lei, ser justificadas pelo Estado, limitar-se
a situações em que sejam absolutamente necessárias e ao propósito
para o qual foram prescritas, ser aplicadas no interesse geral da
coletividade (ordre public) coadunando-se com as exigências de
uma "sociedade democrática", respeitar o princípio da
proporcionalidade, não ser aplicadas de modo arbitrário ou discriminatório,
sujeitar-se a controle por órgãos independentes (com a previsão de
recursos para os casos de abusos), e ser compatíveis com o objeto e
propósito dos tratados de direitos humanos.
É de se esperar que nos
próximos anos se intensifiquem os esforços no sentido de verificar e
assegurar o fiel cumprimento desses requisitos pelos Estados, a começar
pela ampla divulgação das iniciativas e providências por estes
tomadas; neste propósito, há que considerar, e.g., a obtenção de
informações mais detalhadas por parte de Estados que impuseram derrogações,
limitações e estados ou medidas de emergência, assim como a designação
pelos órgãos de supervisão internacionais de relatores especiais ou
órgãos subsidiários de investigação em relação a estados ou
medidas de emergência pública prolongados. Já há indicações
jurisprA?t?U?udenciais concretas em nosso continente para o tratamento da matéria.
Assim, no Parecer sobre o Habeas Corpus sob Suspensão de Garantias
(1987), a Corte Interamericana de Direitos Humanos sustentou que os
recursos de amparo e habeas corpus (a que se referem,
respectivamente, os artigos 25(1) e 7(6) da Convenção Americana sobre
Direitos Humanos) constituem "garantias judiciais indispensáveis"
à proteção dos direitos humanos e não podem ser suspensas (sob o
artigo 27(2) da Convenção); por conseguinte, acrescentou a Corte, os
ordenamentos constitucionais e legais dos Estados Partes que
autorizarem, explícita ou implicitamente, a suspensão daqueles
recursos (ou equiparáveis) em situações de emergência hão de ser
considerados "incompatíveis" com as obrigações
internacionais impostas pela Convenção Americana.
Pouco após, em outro
Parecer (do mesmo ano), sobre Garantias Judiciais em Estados de Emergência,
a Corte, ao recordar o direito a um recurso efetivo consagrado na Convenção
(artigo 25(1)), para a proteção dos direitos reconhecidos por esta,
pela Constituição ou pela lei, advertiu prontamente que não basta que
os recursos estejam formalmente previstos pelo direito interno,
porquanto requer-se sejam eles ademais eficazes. O artigo 8 da Convenção,
agregou a Corte, reconhece o due process of law que se aplica
essencialmente a "todas as garantias judiciais" referidas na
Convenção, "mesmo sob o regime de suspensão regulado pelo artigo
27 da mesma". Enfim, outras garantias, derivadas da "forma
democrática de governo" (a que se refere o artigo 29(c) da
Convenção), implicam não apenA?t?U?as uma determinada organização política,
mas a necessidade de que as medidas tomadas por um governo em situação
de emergência contem com garantias judiciais e estejam sujeitas a um
controle de legalidade, de modo que "se preserve o Estado de
Direito".
Uma atitude da doutrina
tem consistido em tentar medir o alcance dos tratados de direitos
humanos por seus efeitos jurídicos no direito interno dos Estados
Partes. A este respeito, cabe recordar o artigo 2 da Convenção
Americana sobre Direitos Humanos, segundo o qual se o exercício dos
direitos mencionados no artigo 1 da Convenção não estiver já
garantido por disposições legislativas ou de outro caráter, os
Estados Partes se comprometem a adotar, de acordo com seus processos
constitucionais e com as disposições da Convenção Americana, as
medidas legislativas ou de outro caráter que forem necessárias para
tornar efetivos aqueles direitos. À época da adoção da Convenção
Americana (novembro de 1969), a Delegação dos Estados Unidos à Conferência
de San José da Costa Rica argumentou (relatório de abril de 1970) que
o principal efeito do artigo 2 era o de permitir aos Estados Partes
tratar as disposições substantivas da Parte I da Convenção (artigos
I a 32) como sendo "non-self-executing"; esta seria a
intenção dos Estados Unidos, porquanto, no entender de sua Delegação,
o artigo 2 era "suficientemente flexível" para permitir a
cada país "implementar da melhor maneira" a Convenção
"de acordo com sua prática interna".
A conseqüência destA?t?U?a
posição era negar que a Convenção pudesse beneficiar diretamente os
indivíduos, sem a legislação interna adicional prevista no artigo 2,
- o que prontamente revela a improcedência desta tese. Se o artigo 2
fosse interpretado como o pretendia a Delegação norteamericana,
frustraria as tentativas de invocar a Convenção Americana perante os
tribunais nacionais para garantir determinados direitos (e.g., em
conflito com a legislação interna ou nesta não existentes), negando
aplicabilidade direta a toda a Parte I da Convenção, e privaria esta
última de qualquer impacto significativo na administração da justiça
quotidiana dos Estados Partes. A Convenção se tornaria virtualmente
letra morta. Não surpreendentemente, a própria Corte Interamericana de
Direitos Humanos, em Parecer de 1986, assinalou (em relação ao artigo
14(1) da Convenção) que o fato de que um artigo faça referência à
lei "não é suficiente" para que perca autoaplicabilidade
(exceto se a própria vigência do direito estiver inteiramente
condicionada à lei evocada). Assim, no entendimento da Corte, o fato de
poderem os Estados Partes determinar as condições do exercício de um
direito (no caso, do direito de retificação ou resposta), "não
impede a exigibilidade conforme ao Direito Internacional" das
obrigações contraídas sob o artigo 1(1) da Convenção; concluiu,
desse modo, a Corte que o artigo 14 (1) da Convenção é autoaplicável
(self-executing), consagrando "um direito de retificação
ou resposta internacionalmente exigível".
A obrigação do artigo 2
(supra) soma-se ao dever geral do artigo 1 da Convenção. Não
se pode condicionar a totalidade dos direitos inA?t?U?ternacionalmente
consagrados às providências legislativas internas dos Estados Partes;
trata-se de uma obrigação adicional e complementar à obrigação
geral do artigo 1 da Convenção. O propósito do artigo 2 é antes o de
superar obstáculos e tomar as medidas cabíveis para assegurar a aplicação
de todas as normas (inclusive as programáticas) da Convenção e
garantir assim a proteção dos direitos nela consignados em quaisquer
circunstâncias. Se a Convenção não pudesse aplicar-se imediata e
diretamente às pessoas protegidas, estaria privada de todo efeito
significativo e estaria paralisado todo o sistema de salvaguarda dos
direitos humanos. Ademais, a Convenção contém normas que podem ser
aplicadas pelos tribunais nacionais sem medidas legislativas adicionais.
Os preceitos sobre não-discriminação, consagrados em tantos tratados
de direitos humanos, prestam-se à autoaplicação. Segundo um estudo
recente, com exceção de seis cláusulas da Parte I da Convenção
Americana que expressamente reclamam a existência de uma lei ou de
medidas complementares, todos os demais preceitos da Parte I da Convenção
são autoaplicáveis (self-executing), em razão da própria
natureza das obrigações que incorporam e de sua "exigibilidade
direta e imediata"; se deixarem de ser aplicados pelos tribunais
nacionais ou outros órgãos internos dos Estados, configurar-se-á em
conseqüência a responsabilidade internacional destes últimos por
violação de suas obrigações convencionais.
Pode-se mesmo admitir uma
presunção em favor da auto-aplicabilidade das normas substantivas dos
tratados de direitos humanos, exceto se contiverem uma estipulação
expressa de execução por meio de leiA?t?U?s subseqüentes que condicionem
inteiramente o cumprimento das obrigações em apreço; assim como a
questão da hierarquia das normas (e da determinação de qual delas
deve prevalecer) tem sido tradicionalmente reservada ao direito
constitucional (daí advindo as consideráveis variações neste
particular de país a país), a determinação do caráter autoaplicável
(self-executing) de uma norma internacional constitui, como se
tem bem assinalado, por sua vez, "uma questão regida pelo Direito
Internacional, já que se trata nada menos que do cumprimento ou da
violação de uma norma de Direito Internacional". O sentido e o
alcance do artigo 2 da Convenção Americana encontram-se hoje
suficientemente esclarecidos. Talvez a sua inserção na Convenção não
tivesse sido das mais felizes, em razão das incertezas que prontamente
advirem. A despeito destas, o recente Protocolo Adicional à Convenção
Americana em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
(1988) curiosamente reedita sua formulação, ao dispor que se o exercício
dos direitos nele consagrados "ainda não estiver garantido por
disposições legislativas ou de outra natureza, os Estados Partes,
comprometem-se a adotar, de acordo com seus processos
constitucionais" e com as disposições do próprio Protocolo,
"as medidas legislativas ou de outra natureza que forem necessárias
para tornar efetivos esses direitos" (artigo 2). Mas hoje,
distintamente, já se dispõe de elementos, doutrinários e
jurisprudenciais (supra), para assegurar um entendimento e uma
aplicação apropriados desta disposição do Protocolo de San Salvador
e evitar as incertezas que pareceram circundar o equivalente artigo 2 da
Convenção Americana em seus primórdios.
V. A Obrigação
Internacional dos Estados de Provimento de Recursos de Direito Interno
Eficazes.
Assim como é possível
medir a relevância das normas internacionais de proteção no âmbito
do direito interno dos Estados pelo impacto neste último dos tratados e
instrumentos de direitos humanos (cf. supra), do mesmo modo os
meios de reparação de direito interno se fazem presentes no próprio
processo legal internacional no dever do Estado de fornecer recursos
internos eficazes e no dever correspondente do indivíduo reclamante de
utilizá-los como condição de admissibilidade da petição
internacional. Com efeito, uma nova visão desta conjunção de deveres
complementares quanto aos meios de reparação internos contribui para
uma reavaliação da questão mais ampla da interação entre o direito
internacional e o direito interno no âmbito da proteção dos direitos
humanos.
Neste âmbito de proteção,
a visão clássica do requisito formal do esgotamento - pelos indivíduos
reclamantes - dos recursos de direito interno para a instituição de
procedimento contencioso internacional perde terreno para uma nova
concepção voltada ao elemento da reparação propriamente dita.
Apercebe-se então que a regra do esgotamento, na proteção dos
direitos humanos, só pode ser considerada adequadamente em conexão com
a obrigação correspondente dos Estados de prover recursos internos
eficazes; a ênfase passa a recair nA?t?U?a tendência de aprimoramento dos
instrumentos e mecanismos nacionais de proteção judicial. Esta mudança
de ênfase atribui maior responsabilidade aos tribunais internos
(judiciais e administrativos), convocando-os a exercer atualmente um
papel mais ativo - se não criativo - do que no passado na implementação
das normas internacionais de proteção. Se, por um lado, isto pode a
curto prazo revelar ou expor suas insuficiências ou deficiências no
exercício desta função "ampliada" de administração da
justiça, por outro lado isto pode, a médio e longo prazos, acarretar
conseqüências positivas. Uma primeira é, como já assinalado, o
aprimoramento da administração interna da justiça; uma segunda é uma
maior aproximação entre os Estados, já não pela predominância clássica
dos contatos entre os poderes executivos com seu apego quase instintivo
ao dogma da soberania exclusiva, mas também pelos contatos
internacionais dos poderes judiciários, beneficiando-se assim do
conhecimento mútuo das realidades jurídicas internas dos Estados; e
uma terceira é a atuação coordenada dos tribunais internos sob os
tratados de direitos humanos, em matérias por estes regidas, a despeito
das variações nos distintos ordenamentos jurídicos internos,
propiciando um certo grau de uniformidade na aplicação das normas dos
referidos tratados.
Dada a estrutura
descentralizada do ordenamento jurídico internacional, não é de
surpreender que, ao menos no âmbito da proteção internacional dos
direitos humanos, as atenções se voltem crescentemente à função
reservada aos tribunais nacionais na implementação das normas
internacionais. A Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, por
A?t?U? exemplo, impõe aos Estados Partes o dever de "garantir a independência
dos tribunais" e de propiciar o estabelecimento e aperfeiçoamento
de "instituições nacionais apropriadas" de promoção e
proteção dos direitos humanos nela garantidos (artigo 26). Ademais, os
tratados de direitos humanos regulamentam hoje uma área que, no
passado, era tida como tradicionalmente reservada ao direito
constitucional, a dos direitos fundamentais dos cidadãos vis-à-vis
o poder público. Com a "internacionalização" da proteção
dos direitos humanos, viram-se os Estados na obrigação adicional de
equipar-se devidamente para dar efeito aos tratados, particularmente os
de direitos humanos que requerem medidas a nível nacional para sua
implementação (e.g., o dever de prover recursos internos eficazes).
Tais medidas (legislativas ou administrativas) são de fundamental
importância, porquanto, segundo o princípio consagrado da
responsabilidade internacional, nenhum Estado pode invocar dificuldades
ou deficiências de direito interno como desculpa para evadir suas
obrigações internacionais.
O dever de provimento
pelos Estados Partes de recursos internos eficazes, imposto pelos
tratados de direitos humanos, constitui o necessário fundamento no
direito interno do dever correspondente dos indivíduos reclamantes de
fazer uso de tais recursos antes de levar o caso aos órgãos
internacionais. Com efeito, é precisamente porque os tratados de
direitos humanos impõem aos Estados Partes o dever de assegurar às
supostas vítimas recursos eficazes perante as instâncias nacionais
contra violações de seus direitos reconhecidos (nos tratados ou no
direito internA?t?U?o) (e.g., Pacto de Direitos Civis e Políticos, artigo
2(3)(a); Convenção das Nações Unidas contra a Tortura, artigo 14;
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
Racial, artigo VI; Convenção Americana sobre Direitos Humanos, artigo
25(1); Convenção Européia de Direitos Humanos, artigo 13; Carta
Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, artigo 7), que, reversamente,
requerem de todo reclamante o prévio esgotamento dos recursos de
direito interno como condição de admissibilidade de suas petições a
nível internacional (e.g., [primeiro] Protocolo Facultativo Relativo ao
Pacto de Direitos Civis e Políticos, artigo 5(2)(b); Convenção das Nações
Unidas contra a Tortura, artigo 22(5)(b); Convenção sobre a Eliminação
de Todas as Formas de Discriminação Racial, artigo XIV(7)(a); Convenção
Americana sobre Direitos Humanos, artigo 46(1)(a); Convenção Européia
de Direitos Humanos, artigos 26 e 27(3); Carta Africana dos Direitos
Humanos e dos Povos, artigo 56(5) e (6)).
VI. A Função dos Órgãos
e Procedimentos do Direito Público
Interno.
Há tratados de direitos
humanos que vão mais além, prevendo inclusive o compromisso dos
Estados Partes de "desenvolver as possibilidades de recurso
judicial" (e.g., Pacto de Direitos Civis e Políticos, artigo 2(3)
(b); Convenção Americana sobre Direitos Humanos, artigo 25(2) (b)). Os
tratados supracitados confiam assim a proteção dos direitos humanos
também aos órgãos e procedimentos doA?t?U? direito público interno e à
legislação constitucional e ordinária. A Convenção das Nações
Unidas contra a Tortura, por exemplo, determina que os Estados Partes
assegurarão às vítimas (ou seus dependentes), o direito à reparação
e a uma indenização "justa e adequada", incluídos os meios
necessários para a "mais completa reabilitação possível"
(artigo 14). Também a Convenção Interamericana contra a Tortura prevê
a adoção de medidas efetivas de direito interno (artigos 6-7 e 9) para
prevenir e punir a tortura. A seu turno, a Convenção sobre a Eliminação
de Todas as Formas de Discriminação Racial consagra um elenco
significativo de medidas exigidas dos Estados Partes, a engajarem não só
os tribunais nacionais como também os demais órgãos do poder público;
a Convenção prevê, e.g., a revisão de políticas governamentais
(artigo II (1) (c)), a adoção de medidas legislativas, judiciais,
administrativas ou outras (artigo II (1) (d) e (2) e artigos IV e IX) e
de medidas educativas (artigo VIII), para a realização de seu objeto e
propósito. A adoção de tais medidas, legislativas, judiciais,
administrativas ou outras, é igualmente prevista pela Convenção sobre
a Eliminação e a Punição do Crime do Apartheid (artigos 4 e
7).
Outros exemplos podem ser
destacados. A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra a Mulher, e.g., encontra-se permeada de inúmeros
compromissos de adoção de medidas diversas pelos Estados Partes
(artigos 3-8, 10-13, 14(2), 16 e 18) para a realização de seu objeto e
propósito. Pelo artigo 2(a), os Estados Partes se comprometem inclusive
a consagrar em suas Constituições nacionais ou em outra A?t?U?legislação
apropriada o princípio da igualdade do homem e da mulher e assegurar
por lei outros meios apropriados à "realização prática"
desse princípio; comprometem-se a adotar todas as medidas adequadas
(legislativas e outras), inclusive as sanções cabíveis, e a modificação
ou derrogação de leis, regulamentos, usos e práticas, para por fim à
discriminação contra a mulher (artigo 2(b), (f) e (g));
comprometem-se, ademais, a assegurar, por meio dos tribunais nacionais e
outras instituições públicas, a proteção jurídica efetiva da
mulher (contra todo ato de discriminação) em base de igualdade com o
homem. Ao final de um elenco longo e circunstanciado de medidas a serem
tomadas pelos Estados Partes a nível do direito interno, o artigo 24,
como que para evitar qualquer omissão nesse sentido, dispõe em suma
sobre o compromisso dos Estados Partes de "adotar todas as medidas
necessárias em âmbito nacional para alcançar a plena realização"
dos direitos reconhecidos na Convenção. Igual compromisso é assumido
pelos Estados Partes na Convenção sobre os Direitos da Criança
(artigos 4, 19, 33 e 39).
Os Estados Partes em
tratados de direitos humanos encontram-se, em suma, obrigados a
organizar o seu ordenamento jurídico interno de modo que as supostas vítimas
de violações dos direitos neles consagrados disponham de um recurso
eficaz perante as instâncias nacionais. Esta obrigação adicional
opera como uma salvaguarda contra eventuais denegações de justiça, ou
atrasos indevidos ou outras irregularidades processuais na administração
da justiça. Com isto ao menos ficam impedidos os governos dos Estados
Partes de obstruir ações ante os tribunais nacionaA?t?U?is (no processo de
esgotamento de recursos de direito interno) para obter reparação de
danos resultantes de violações dos direitos consagrados nos tratados
de direitos humanos. A operação dos deveres complementares de utilização
dos recursos de direito interno (pelos reclamantes) e de provimento de
tais recursos eficazes (pelos Estados demandados) contribui assim para
uma melhor apreciação da interação entre o direito internacional e o
direito interno no contexto da proteção dos direitos humanos.
VII. As Normas
Internacionais de Proteção Diretamente
Aplicáveis no Direito Interno.
O impacto dos tratados de
direitos humanos nos ordenamentos jurídicos internos dos Estados Partes
(supra) tem atraído bastante atenção nos últimos anos, e tem
se notabilizado mormente em numerosos casos que acarretaram, e.g.,
alterações nas respectivas legislações nacionais com o propósito de
harmonizá-las com os referidos tratados. Reversamente, a influência do
direito interno dos Estados Partes nos sistemas dos tratados de direitos
humanos tem atraído consideravelmente menos atenção. O fato de que não
raro os tribunais internos são chamados a interpretar disposições dos
tratados de direitos humanos no exame de casos concretos contribui em
parte para explicar o impacto desses tratados no direito interno dos
Estados Partes. Ao enfocar os efeitos desses tratados no direito interno
dos Estados Partes, a atitude da doutrina clássica tem consistido em
classificarA?t?U? estes últimos, de modo geral, em dois grupos, a saber: os
que possibilitam dar efeito direto a disposições dos referidos
tratados, tidas como self-executing ou de aplicabilidade direta,
e os países cujo direito constitucional determina que, mesmo
ratificados, tais tratados não se tornam ipso facto direito
interno, para o que se requer legislação especial.
É esta uma determinação
que tem cabido ao direito constitucional; no entanto, cuidou o direito
internacional de elaborar o conceito das normas diretamente aplicáveis
(self-executing) propriamente ditas, com relação a disposições
de tratados passíveis de ser invocadas por um particular ante um
tribunal ou juiz ("incorporação" automática), sem
necessidade de um ato jurídico complementar ("transformação")
para sua exigibilidade e implementação. Para que uma norma
convencional possa ser autoaplicável, passou-se a considerar necessária
a conjugação de duas condições, a saber, primeiro, que a norma
conceda ao indivíduo um direito claramente definido e exigível ante um
juiz, e segundo, que seja ela suficientemente específica para poder ser
aplicada judicialmente em um caso concreto, operando per se sem
necessidade de um ato legislativo ou medidas administrativas subseqüentes.
A norma diretamente aplicável, em suma, consagra um direito individual,
passível de pronta aplicação ou execução pelos tribunais ou juízes
nacionais.
Não obstante as variações
verificáveis de país a país quanto à questão mais ampla do status
preciso dos tratados de direA?t?U?itos humanos no direito interno, por ser
deixada ao critério do direito constitucional de cada Estado Parte, a
aplicação das disposições convencionais - e de modo especial as
consideradas self-executing - pelos tribunais internos revela ao
menos o alcance da influência exercida ao longo dos anos pelos tratados
de direitos humanos nos Estados Partes. No plano normativo e em
perspectiva histórica, é sempre lembrada a consagração, nas
Constituições modernas, de direitos anteriormente proclamados em
tratados e instrumentos internacionais de direitos humanos,
particularmente a partir da Declaração Universal de 1948. Muito
significativamente, os resultados concretos obtidos nas últimas décadas
sob os tratados e instrumentos de direitos humanos demonstram que não há,
como a rigor nunca houve, qualquer impossibilidade lógica ou jurídica
de que indivíduos, seres humanos, sejam beneficiários diretos de
instrumentos internacionais. A polêmica clássica entre dualistas e
monistas, em seu inelutável hermetismo, parece ter-se erigido em falsas
premissas, ao se ter em mente os sistemas contemporâneos de proteção
dos direitos humanos.
A par da função
"internacional" atribuída aos tribunais internos, as próprias
características do processo legiferante que hoje conhecemos contribuem
para desvencilhar-nos das amarras da polêmica irreconciliável entre
monistas e dualistas. Para a liberação, nesse sentido, do espírito
jurídico contemporâneo, têm ademais contribuído decisivamente o
reconhecimento da competência ou capacidade de agir dos órgãos de
supervisão internacionais e sobretudo do direito de petição
individual ou da capacidade processual internacional doA?t?U?s indivíduos sob
os tratados e instrumentos de direitos humanos, os quais têm tornado a
controvérsia clássica entre dualistas e monistas ociosa, supérflua,
dispensável, e sem resultados práticos ao menos no tocante à operação
de tais tratados e instrumentos de proteção. Há que ter em mente que,
em uma dimensão mais ampla, os reconhecimentos do direito de petição
individual e da competência dos órgãos de supervisão internacionais
têm-se dado em meio à conscientização da identidade de propósito
primordial do direito internacional e do direito público interno
contemporâneos quanto às necessidades de proteção do ser humano.
Mesmo nos Estados que
efetivamente "incorporaram" os tratados de direitos humanos no
ordenamento jurídico interno persiste uma certa diversidade quanto ao
status ou posição exata desses tratados na hierarquia legal interna, -
o que era de se esperar, por se tratar de soluções de direito interno.
Sabe-se, por exemplo, que, no início dos anos noventa, dos 22 Estados
ratificantes da Convenção Européia de Direitos Humanos 14 já haviam
assegurado a esta o status de direito interno. Nem por isso se pode
deduzir que nos 14 Estados que incorporaram a Convenção ao ordenamento
jurídico interno os direitos humanos são necessariamente melhor
protegidos como conseqüência direta daquela providência: a
"incorporação" - embora meritória - não reflete
automaticamente a realidade da observância dos direitos humanos em um
país e o grau da proteção jurídica a eles estendida, sendo medidas
mais significativas e de maior alcance prático a aceitação do direito
de petição individual e da jurisdição compulsória dos órgãos
judiciais de proteçãoA?t?U? internacional. Assim, o fato de que no início
desta década todos os 22 Estados Partes na Convenção Européia haviam
aceito o direito de petição individual sob a Convenção (artigo 25) e
todos os Estados Partes (com a única exceção da Turquia) haviam
aceito a jurisdição compulsória da Corte Européia de Direitos
Humanos (artigo 46 da Convenção) - independentemente do status da
Convenção no direito interno de cada país - revela a seriedade e
maturidade dos Estados Partes e explica em grande parte o êxito daquele
sistema regional de proteção dos direitos humanos.
Os tratados de direitos
humanos beneficiam diretamente os indivíduos e grupos protegidos.
Cobrem relações (dos indivíduos frente ao poder público) cuja
regulamentação era outrora o apanágio do direito constitucional. E
diversas das Constituições modernas, a seu turno, remetem
expressamente aos direitos consagrados nos tratados de direitos humanos
(cf. supra), a um tempo revelando nova postura ante a questão clássica
da hierarquia normativa dos tratados internacionais vigentes assim como
concedendo um tratamento especial ou diferenciado também no plano do
direito interno aos direitos e garantias individuais internacionalmente
consagrados (cf. supra). Regendo a mesma gama de relações, dos
indivíduos ante o Estado, o direito internacional e o direito interno
apontam aqui na mesma direção, coincidindo no propósito básico e último
de ambos da proteção do ser humano.
VIII. A Primazia da Norma
Mais Favorável às Vítimas.
Não mais há pretensão
de primazia de um ou outro, como na polêmica clássica e superada entre
monistas e dualistas. No presente domínio de proteção, a primazia é
da norma mais favorável às vítimas, seja ela norma de direito
internacional ou de direito interno. Este e aquele aqui interagem em
benefício dos seres protegidos. É a solução expressamente consagrada
em diversos tratados de direitos humanos, da maior relevância por suas
implicações práticas. Merecedora da maior atenção, tem curiosamente
passado quase despercebida na doutrina contemporânea. Concentremo-nos,
pois, no que dispõem os tratados de direitos humanos a respeito.
No plano global, o Pacto
de Direitos Civis e Políticos proíbe expressamente qualquer restrição
ou derrogação aos direitos humanos reconhecidos ou vigentes em
qualquer Estado Parte, em virtude de outras convenções, ou de leis,
regulamentos ou costumes, "sob pretexto de que o presente Pacto não
os reconheça ou os reconheça em menor grau" (artigo 5(2)). Tanto
a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados (artigo 5) quanto a
Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas (artigo 5), prevêem
igualmente que nenhuma de suas disposições prejudicará os outros
direitos e vantagens concedidos respectivamente aos refugiados e apátridas,
independentemente delas. A Convenção sobre a Eliminação de Todas as
Formas de Discriminação contra a Mulher adverte que nada do disposto
nela prejudicará "qualquer disposição que seja mais propícia à
obtenção da igualdade entre homens e mulheres e queA?t?U? esteja contida: a)
na legislação de um Estado Parte; ou b) em qualquer outra convenção,
tratado ou acordo internacional vigente nesse Estado" (artigo 23).
Na mesma linha de pensamento, a Convenção sobre os Direitos da Criança
também adverte que nada do estipulado nela afetará "disposições
que sejam mais convenientes para a realização dos direitos da criança
e que podem constar: a) das leis de um Estado Parte; b) das normas de
direito internacional vigentes para esse Estado" (artigo 41).
No plano regional, a
mesma ressalva se encontra na Convenção Americana sobre Direitos
Humanos, que proíbe a interpretação de qualquer de suas disposições
no sentido de limitar o gozo e exercício de quaisquer direitos que
"possam ser reconhecidos de acordo com as leis de qualquer dos
Estados Partes ou de acordo com outra convenção em que seja Parte um
dos referidos Estados" (artigo 29(b)); proíbe, ademais, a
interpretação de qualquer de suas disposições no sentido de excluir
ou limitar "o efeito que possam produzir a Declaração Americana
dos Direitos e Deveres do Homem e outros atos internacionais da mesma
natureza" (artigo 29(d)). Da mesma forma, o Protocolo Adicional à
Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de San Salvador) determina
que "não se poderá restringir ou limitar qualquer dos direitos
reconhecidos ou vigentes em um Estado em virtude de sua legislação
interna ou de convenções internacionais, sob pretexto de que este
Protocolo não os reconhece ou os reconhece em menor grau" (artigo
4).
A?t?U?;
No continente americano
assim como no continente europeu a solução é a mesma. Estipula a
Convenção Européia de Direitos Humanos que nenhuma de suas disposições
será interpretada no sentido de limitar ou prejudicar os direitos
humanos reconhecidos de acordo com as leis de qualquer Estado Parte ou
com qualquer outra convenção em que este for Parte (artigo 60). A
Convenção Européia para Prevenção da Tortura e Tratamento ou Punição
Desumano ou Degradante esclarece que não prejudicará ela "os
dispositivos do direito interno ou de qualquer acordo internacional que
forneçam maior proteção às pessoas privadas de sua liberdade"
(artigo 17(1)). A Carta Social Européia, a seu turno, determina
igualmente que suas disposições não prejudicarão as de direito
interno nem as de tratados que "sejam mais favoráveis às pessoas
protegidas" (artigo 32).
O critério da primazia
da norma mais favorável às pessoas protegidas, consagrado
expressamente em tantos tratados de direitos humanos, contribui em
primeiro lugar para reduzir ou minimizar consideravelmente as pretensas
possibilidades de "conflitos" entre instrumentos legais em
seus aspectos normativos. Contribui, em segundo lugar, para obter maior
coordenação entre tais instrumentos, em dimensão tanto vertical
(tratados e instrumentos de direito interno) quanto horizontal (dois ou
mais tratados). No tocante a esta última, o critério da primazia da
disposição mais favorável às vítimas já em fins da década de cinqüenta
era aplicado pela Comissão Européia de Direitos Humanos (petição nº
235/56, de 1958-1959), e recebeu reconhecimento judiciA?t?U?al da Corte
Interamericana de Direitos Humanos no Parecer de 1985 sobre a Associação
Obrigatória de Jornalistas. Contribui, em terceiro lugar, como
ressaltamos em nosso curso ministrado na Academia de Direito
Internacional da Haia em 1987, para demonstrar que a tendência e o propósito
da coexistência de distintos instrumentos jurídicos - garantindo os
mesmos direitos - são no sentido de ampliar e fortalecer a proteção.
O que importa em última análise é o grau de eficácia da proteção,
e por conseguinte há de impor-se a norma que no caso concreto melhor
proteja, seja ela de direito internacional ou de direito interno.
IX. Conclusões.
Nas últimas décadas, a
operação regular dos tratados e instrumentos internacionais de
direitos humanos tem demonstrado sobejamente que podem beneficiar
diretamente os indivíduos. Na verdade, é este o seu propósito último;
ao criarem obrigações para os Estados vis-à-vis os seres
humanos sob sua jurisdição, as normas dos tratados de direitos humanos
aplicam-se não só na ação conjunta (exercício de garantia coletiva)
dos Estados Partes na realização do propósito comum de proteção,
mas também e sobretudo no âmbito do ordenamento interno de cada um
deles, nas relações entre o poder público e os indivíduos. Diversas
Constituições contemporâneas, referindo-se expressamente aos tratados
de direitos humanos, concedem um tratamento especial ou diferenciado
também no plano do direito interno aos direitos humanos
inA?t?U?ternacionalmente consagrados. Os tratados de direitos humanos indicam
vias de compatibilização dos dispositivos convencionais e dos de
direito interno de modo a prevenir conflitos entre as jurisdições
internacional e nacional no presente domínio de proteção; impõem aos
Estados Partes o dever de provimento de recursos de direito interno
eficazes, e por vezes o compromisso de desenvolvimento das
"possibilidades de recurso judicial"; prevêem a adoção
pelos Estados Partes de medidas legislativas, judiciais, administrativas
ou outras, para a realização de seu objeto e propósito. Em suma,
contam com o concurso dos órgãos e procedimentos do direito público
interno. Há, assim, uma interpenetração entre as jurisdições
internacional e nacional no âmbito de proteção do ser humano.
O cumprimento das obrigações
internacionais de proteção requer o concurso dos órgãos internos dos
Estados, e estes são chamados a aplicar as normas internacionais. É
este o traço distintivo e talvez o mais marcante dos tratados de
direitos humanos, dotados de especificidade própria e a requererem uma
interpretação própria guiada pelos valores comuns superiores que
abrigam, diferentemente dos tratados clássicos que se limitam a
regulamentar os interesses recíprocos entre as Partes. Com a interação
entre o direito internacional e o direito interno no presente contexto,
os grandes beneficiários são as pessoas protegidas. Em um sistema
integrado como o da proteção dos direitos humanos, os atos internos
dos Estados estão sujeitos à supervisão dos órgãos internacionais
de proteção quando, no exame dos casos concretos, se trata de
verificar a sua conformidade com as obrigações internacionais doA?t?U?s
Estados em matéria de direitos humanos. As normas internacionais que
consagram e definem claramente um direito individual, passível de
vindicação ante um tribunal ou juiz nacional, são diretamente aplicáveis.
Além disso, os próprios tratados de direitos humanos
significativamente consagram o critério da primazia da norma mais favorável
às vítimas, seja ela norma de direito internacional ou de direito
interno.
Afastada, no presente domínio,
a compartimentalização, teórica e estática da doutrina clássica,
entre o direito internacional e o direito interno, em nossos dias, com a
interação dinâmica entre um e outro neste âmbito de proteção, é o
próprio Direito que se enriquece - e se justifica, - na medida em que
cumpre a sua missão última de fazer justiça. No presente contexto, o
direito internacional e o direito interno interagem e se auxiliam
mutuamente no processo de expansão e fortalecimento do direito de proteção
do ser humano. Nestes anos derradeiros a conduzir-nos ao final do século,
é alentador constatar que o direito internacional e o direito interno
caminham juntos e apontam na mesma direção, coincidindo no propósito
básico e último de ambos da proteção do ser humano.
São José da Costa Rica,
12 de junho de 1996.
A.A.C.T.
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