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CÂMARA NOS 500 ANOS

Parlamento Brasileiro – História e Perspectivas

Ética, Democracia e Parlamento no Brasil

Leonardo Boff - O professor Arruda fez um recorrido pelas grandes idéias ético-políticas e financeiras dos pensadores seminais do Ocidente, a partir da Grécia, chegando aos formuladores atuais do novo consenso, do novo diálogo da sociedade para buscar caminhos mais coletivos, mais solidários, em face especialmente do processo novo da globalização, com as contradições da miséria e da pobreza. Não gostaria de debater essa temática, mas de levá-la avante, no sentido de enriquecer a nossa discussão.

Gostaria de sustentar uma tese radical, mas que considero verdadeira: o atual sistema mundial hoje imperante, de forma hegemônica e internalizado em cada país, porque ele tem a sua dimensão global, tende a destruir a democracia, liquidar com a ética e tornar supérfluos os parlamentos das nações. Gostaria de aprofundar um pouco essa tese. Como eu disse, ela é radical, mas acho que é verdadeira.

Todas as sociedades modernas e as democracias nasceram sustentadas por uma sagrada trindade: a cidadania, a solidariedade e a construção comum do bem comum; portanto, solidariedade, cidadania, bem comum. Esses três valores estão sendo sistematicamente erodidos por outro tipo de santíssima trindade, do "deus do mercado", que é a liberalização, a desregulamentação e a privatização, em todos os campos da sociedade, não só na economia.

A lógica fundamental que preside o processo atual — e ele não encontra quase resistências — obedece à lógica do capital. Essa lógica orienta-se fundamentalmente por valores e critérios colocados como referência exclusiva, fundados no individualismo, na magnificação da "performância" do indivíduo e na concorrência. O processo hoje mundial, hegemonizado pelo capital, coloca a economia como eixo estruturador das relações mundiais. A lógica não é cooperativa; é a lógica competitiva. A crise reside em colocar os valores e os critérios dessa lógica como referências e critérios exclusivos daquilo que é bom, que é útil, que é desejável para toda a sociedade.

Essa lógica está criando uma dupla cultura. A cultura da conquista: trata-se de conquistar novos mercados, conquistar posições, conquistar mais dinheiro, conquistar mais "performância" pessoal; tudo é objeto de conquista, numa luta de todos contra todos, porque se trata de individualismo. E uma cultura também dos meios, dos instrumentos. O fim desse processo não é o ser humano, não são os povos. O fim é a acumulação cada vez mais crescente de bens e serviços, é a criação de riqueza — e, por isso, a "performância" da economia tem de ser viável —, esquecendo que tudo isso, economia, mercado, mercadoria, é da natureza dos meios. São meios para atender necessidades coletivas dos povos ou necessidades pessoais e individuais, porque esses são os fins. O ser humano não tem centralidade. A centralidade é ocupada pela busca acelerada e maximizada da riqueza.

As pessoas são indivíduos e não pretendem mais viver juntas, mas buscam assegurar seu bem-estar material individual e maximizar sua utilidade individual. Em função disso, não se dá prioridade à solidariedade, à erradicação da pobreza, à luta contra as exclusões, contra o racismo, contra a xenofobia, mas ela é concedida à eficácia produtiva e à rentabilidade financeira a curto prazo. Acho que essa lógica dominante está destruindo os laços de sociabilidade e a possibilidade de uma real democracia.

Quem diz isso não sou eu, pois sou absolutamente suspeito, mas é nada menos do que George Soros, o grande especulador do sistema, no seu livro "A Crise do Capitalismo". Leiam esse livro, que é muito interessante. Onde reside a crise do capitalismo, para ele? Na ordem do capital, hoje mundializada, tudo se transformou em mercadoria, desde o sexo à mística até à mercadoria mais direta, como produção material de bens e serviços. Não há mais espaço para as dimensões da gratuidade e da sociabilidade. Ele chega a dizer numa página: "Se você buscar solidariedade, compreensão, compaixão, não vá ao mercado e à economia, porque você errou de endereço". A crise está aqui: essa razão utilitarista, aproveitadora, acumuladora, está ocupando todos os espaços da sociedade. Na sociedade onde todos dizem "eu", onde há a guerra dos "eus", destroem-se os laços de sociabilidade.

Portanto, para mim, a questão não é discutir se esse ou aquele procedimento é ético ou não; é discutir se este projeto é absolutamente antiético, porque ele se orienta por formas de relação de produção e de destruição — e não de construção coletiva — que implica a introdução de uma máquina de morte, que atinge as sociedades, as classes, as pessoas, a humanidade; que atinge a natureza, pilhada sistematicamente; e que destrói o nosso futuro, o futuro comum da terra, como planeta, como casa comum, e a humanidade, como filhos e filhas da terra.

George Soros aventa a idéia de que, se não superarmos a crise do capital, podemos ir ao encontro do pior. Eu acrescentaria que podemos conhecer, quem sabe dentro da nossa geração ainda, o destino dos dinossauros, onde possa haver uma devastação fantástica de seres vivos, humanos e não humanos.

Cidadania, solidariedade, bem comum eram os princípios fundadores da sociedade moderna, agora erodidos, que importa resgatar.

Quanto à cidadania, nas suas três dimensões já conhecidas, e não quero aprofundar-me nisso. A cidadania, primeiro como dimensão civil, a cidadania civil: garantir os direitos, as liberdades básicas de falar, de se comunicar, de se expressar; a cidadania política: garantir os meios de participação do poder por partidos, sindicatos, imprensa, etc. E cidadania social: garantir os meios de uma dignidade mínima para os seres humanos, em termos do trabalho, da saúde, da relação social, da qualidade de vida. Essa cidadania civil, política e social está sendo hoje erodida de forma sistemática, a ponto de assustar os coordenadores mundiais que hegemonizam o processo.

Há dois dias, num discurso, o secretário-geral da ONU, Koffi Annan, dizia isto: "A tarefa do começo desse milênio, desse organismo mundial, é erradicar a pobreza, com imperativo ético e humanístico". E ele repetia os dados já conhecidos, de que 1,9 bilhões de pessoas vivem com menos de um dólar por dia e de que 2,8 bilhões vivem com menos de dois dólares por dia; isto é, para mais da metade da humanidade a vida não é sustentável. Essa economia é uma máquina de morte que os tritura, que os devora. Os cálculos já foram feitos. O sistema hoje integrado da economia e da política funciona bem, e muito bem, para 1,6 bilhões de pessoas. Ocorre que somos 6 bilhões, para as quais a vida é um purgatório ou um inferno.

Essa economia política é desastrosa para a humanidade, é absolutamente antiética, desde que a ética era a forma de os seres humanos buscarem aquilo que é bom para todos, aquilo que é útil para as comunidades, aquilo que é desejável, para estar conforme a natureza social do ser humano.

Essa realidade é agravada quando internalizada, isso em termos de Brasil. O professor Arruda aventou a África, um continente considerado absolutamente descartável. Nem mais é dos continentes excluídos, mas absolutamente descartável, é como se fosse um peso morto para o capital. Não há nenhum interesse para o capital investir na África, porque não quer tirar mais nada da África, entregue à sua própria sorte, à sua própria Aids, ao seu desespero.

Nós temos isso no nosso país, a herança perversa da apartação social, que já tem quinhentos anos e que exige de nós — como numa obra recente extremamente viável e politicamente inteligente do ex-governador de Brasília, Cristovam Buarque —, essa herança de apartação e exclusão demanda uma segunda abolição. Fizemos a abolição da escravatura, mas não fizemos a abolição da miséria e da pobreza. Esse é o desafio da nossa geração. Essas palmas são para o professor Cristovam Buarque, não para mim. Eu consideraria importantíssimo que ele tivesse lugar neste fórum, porque ele tem algo a dizer para este país.

Essa estratégia, hoje mundializada, como disse, agride, impossibilita a democracia, destrói a ética. E um dos passos importantes dela é desacreditar o Estado e o mundo político, porque o Estado — e esta é a sua função — é o promotor e o garantidor do bem comum. A palavra bem comum não se fala, foi colocada no limbo dos conceitos políticos. Agora é criticado e condenado, não o Estado burocrático ou Estado corrupto, mas o Estado tout court, pura e simplesmente. Por quê? Porque ele impede, coloca barreiras à voracidade do capital e aos itinerários meramente individuais às pessoas que buscam o seu bem-estar individual; e também aos políticos, que representam finalmente a coletividade. Então, procura-se desacreditar essas instâncias, desinventar o Estado, tornar ridícula a política.

Precisamos estar atentos às críticas contundentes e contínuas que se fazem ao Estado e ao mundo político por toda a mídia. Há uma segunda intenção, que não é só a busca do combate à corrupção, o que é legítimo, mas é a busca da invalidação do Estado e das políticas, para deixar o campo limpo à voracidade individualista. O bem comum é entendido assim: o interesse daquele que ganha, de forma individual, converte-se em interesse geral, em bem comum; mas não deixa de ser individual.

Não quero deter-me no diagnóstico. Gostaria de avançar em como sair desse impasse, o que fazer, o que estaria dentro das nossas possibilidades. Em primeiro lugar, penso — e tenho cinco minutos para dizê-lo — que é preciso reordenar as prioridades, isto é, submeter a economia à política e a política à ética.

Hoje a economia tem uma natureza perversa, que contradiz toda a reflexão filosófica e a reflexão social dos últimos dois mil anos. Já em Aristóteles e Platão, mas mesmo nos clássicos, como Ricardo, a economia era sempre — e a palavra filologicamente diz isto — o atendimento das necessidades da casa. Ninguém mais sabe de economia do que uma mulher de salário mínimo, que deve gerenciar esse salário mínimo para atender as necessidades da casa e chegar ao fim do mês. A economia não tem mais essa natureza. Transformou-se na técnica de enriquecimento linear e cada vez mais crescente às custas das classes e da natureza. Então, há que se submeter a economia à política e aprender a primeira lição de Marx, que nunca devemos nos esquecer: a economia não é um subcapítulo da Matemática e da Estatística — possivelmente essa compreensão preside o Banco Central. A economia é um capítulo da política, porque é na política que os seres humanos decidem as formas de produzir, as maneiras de distribuir e estabelecem os consensos de como, juntos, viver e sobreviver.

A economia é da ordem dos meios e não da ordem dos fins. A política estabelece os fins para os cidadãos viverem em paz na seguridade e alimentar a seguridade da sua existência coletivamente garantida. Submeter a economia à política e a política à ética. A ética com aquela dimensão, aquele senso dos seres humanos de buscarem a justa medida, o comportamento reto que se adapta à nossa natureza de seres sociais e que faz com que nossa convivência não seja uma trégua e um processo de guerra de todos contra todos, mas seja a construção coletiva da paz, como algo perene nos seres humanos.

Reafirmar a primazia do ético e do político-democrático sobre o financeiro-econômico. Isso fazemos ao reforçarmos a fonte de todo o poder que pode controlar esses processos, que é reforçar a sociedade civil com todos os seus movimentos.

Aí, para mim, vem o segundo ponto, que é promover novas formas de representação política. Não bastam os partidos, porque partido é sempre parte de algo. É preciso estabelecer uma nova ponte entre Parlamento, governo e sociedade, que mais e mais se organiza em mil movimentos para que haja novas formas de poder e antipoder. Que o poder se descentralize. Que o consenso não seja negociado e construído nos muros deste Parlamento, mas seja continuamente frutificado e amadurecido no diálogo, na ida e vinda habitual, diuturna e cotidiana com a sociedade civil e com todos os seus movimentos.

Em terceiro, através desse novo diálogo com o Parlamento — palavra que vem de parlar —, com essa falação do poder social com o poder político, pode-se garantir, postular e reforçar a busca do acesso a bens e serviços necessários e indispensáveis para uma vida minimamente digna a todos os cidadãos. Essa vida não vem por si mesma; vem através de muita pressão e negociação.

Através dessa pressão e negociação da sociedade com esse poder social e político, deve-se resgatar uma dimensão básica do Estado: a dimensão ética. O Estado não é só mecanismo de poder. Representa valores, sonhos e ideais que a sociedade quer ver realizados nos portadores de poder, que não devem ser ladrões de beira de estrada, mas pessoas altamente éticas que apresentam, nas suas próprias vidas, nos seus percursos biográficos, na forma como manejam e gerenciam o poder, os valores da solidariedade, os valores éticos da colaboração e da transparência do poder. Hoje, mediante a recuperação do estatuto ético, o Estado ganha credibilidade.

Resgatar, de uma forma que parece contraditória, o caráter social do Estado. Isso é até ridículo dizer, porque o próprio Estado, por sua natureza social, está sendo privatizado, grande instrumento que ainda sobra para ser manipulado nos interesses das grandes corporações multinacionais que querem o Estado para garantir o mínimo de segurança para poderem circular dentro dos espaços econômicos. Recuperar o caráter social do Estado, isto é, que as políticas sociais do Estado não sejam relegadas a só um departamento: à Comunidade Solidária. Que as políticas sociais sejam imperativo e presença de todos os Ministérios, de todas as políticas, porque o Estado é instância delegada do poder popular e do poder social. Que não haja isonomia, que não se substantive.

Finalmente, quero dizer que o fracasso das negociações do milênio em Seattle e o fracasso do acordo multilateral dos investimentos mostraram que está surgindo uma sociedade civil mundial. Se a luta por essa sociedade que quer mais ética resgatar o sentido da democracia como solidariedade e como busca do bem comum hoje globalizado e de uma cidadania mais integrada, ela não é só desejável mas é possível e produz frutos. Ela inviabiliza as artimanhas dos poderosos que, de costas à humanidade, reúnem-se para defender privilégios, estabelecer políticas que garantam os seus ganhos e continuam sacrificando e martirizando mais da metade da humanidade.

Não é impossível que os caminhos estejam abertos para resgatarmos a democracia com o sentido de cidadania plena, com sentido ético nas suas relações, com horizonte aberto em que não somos condenados a sermos lobos uns dos outros, mas sermos cidadãos concidadãos que não são condenados a viver e a sofrer num vale de lágrimas, mas que podem ser filhos e filhas da alegria . Muito obrigado.

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