Gostaria de sustentar uma tese
radical, mas que considero verdadeira: o atual sistema mundial
hoje imperante, de forma hegemônica e internalizado em cada país,
porque ele tem a sua dimensão global, tende a destruir a
democracia, liquidar com a ética e tornar supérfluos os
parlamentos das nações. Gostaria de aprofundar um pouco essa
tese. Como eu disse, ela é radical, mas acho que é verdadeira.
Todas as sociedades modernas e
as democracias nasceram sustentadas por uma sagrada trindade: a
cidadania, a solidariedade e a construção comum do bem comum;
portanto, solidariedade, cidadania, bem comum. Esses três valores
estão sendo sistematicamente erodidos por outro tipo de santíssima
trindade, do "deus do mercado", que é a liberalização,
a desregulamentação e a privatização, em todos os campos da
sociedade, não só na economia.
A lógica fundamental que
preside o processo atual — e ele não encontra quase resistências
— obedece à lógica do capital. Essa lógica orienta-se
fundamentalmente por valores e critérios colocados como referência
exclusiva, fundados no individualismo, na magnificação da "performância"
do indivíduo e na concorrência. O processo hoje mundial,
hegemonizado pelo capital, coloca a economia como eixo
estruturador das relações mundiais. A lógica não é
cooperativa; é a lógica competitiva. A crise reside em colocar
os valores e os critérios dessa lógica como referências e critérios
exclusivos daquilo que é bom, que é útil, que é desejável
para toda a sociedade.
Essa lógica está criando uma
dupla cultura. A cultura da conquista: trata-se de conquistar
novos mercados, conquistar posições, conquistar mais dinheiro,
conquistar mais "performância" pessoal; tudo é objeto
de conquista, numa luta de todos contra todos, porque se trata de
individualismo. E uma cultura também dos meios, dos instrumentos.
O fim desse processo não é o ser humano, não são os povos. O
fim é a acumulação cada vez mais crescente de bens e serviços,
é a criação de riqueza — e, por isso, a "performância"
da economia tem de ser viável —, esquecendo que tudo isso,
economia, mercado, mercadoria, é da natureza dos meios. São
meios para atender necessidades coletivas dos povos ou
necessidades pessoais e individuais, porque esses são os fins. O
ser humano não tem centralidade. A centralidade é ocupada pela
busca acelerada e maximizada da riqueza.
As pessoas são indivíduos e não
pretendem mais viver juntas, mas buscam assegurar seu bem-estar
material individual e maximizar sua utilidade individual. Em função
disso, não se dá prioridade à solidariedade, à erradicação
da pobreza, à luta contra as exclusões, contra o racismo, contra
a xenofobia, mas ela é concedida à eficácia produtiva e à
rentabilidade financeira a curto prazo. Acho que essa lógica
dominante está destruindo os laços de sociabilidade e a
possibilidade de uma real democracia.
Quem diz isso não sou eu, pois
sou absolutamente suspeito, mas é nada menos do que George Soros,
o grande especulador do sistema, no seu livro "A Crise do
Capitalismo". Leiam esse livro, que é muito interessante.
Onde reside a crise do capitalismo, para ele? Na ordem do capital,
hoje mundializada, tudo se transformou em mercadoria, desde o sexo
à mística até à mercadoria mais direta, como produção
material de bens e serviços. Não há mais espaço para as dimensões
da gratuidade e da sociabilidade. Ele chega a dizer numa página:
"Se você buscar solidariedade, compreensão, compaixão, não
vá ao mercado e à economia, porque você errou de endereço".
A crise está aqui: essa razão utilitarista, aproveitadora,
acumuladora, está ocupando todos os espaços da sociedade. Na
sociedade onde todos dizem "eu", onde há a guerra dos
"eus", destroem-se os laços de sociabilidade.
Portanto, para mim, a questão não
é discutir se esse ou aquele procedimento é ético ou não; é
discutir se este projeto é absolutamente antiético, porque ele
se orienta por formas de relação de produção e de destruição
— e não de construção coletiva — que implica a introdução
de uma máquina de morte, que atinge as sociedades, as classes, as
pessoas, a humanidade; que atinge a natureza, pilhada
sistematicamente; e que destrói o nosso futuro, o futuro comum da
terra, como planeta, como casa comum, e a humanidade, como filhos
e filhas da terra.
George Soros aventa a idéia de
que, se não superarmos a crise do capital, podemos ir ao encontro
do pior. Eu acrescentaria que podemos conhecer, quem sabe dentro
da nossa geração ainda, o destino dos dinossauros, onde possa
haver uma devastação fantástica de seres vivos, humanos e não
humanos.
Cidadania, solidariedade, bem
comum eram os princípios fundadores da sociedade moderna, agora
erodidos, que importa resgatar.
Quanto à cidadania, nas suas três
dimensões já conhecidas, e não quero aprofundar-me nisso. A
cidadania, primeiro como dimensão civil, a cidadania civil:
garantir os direitos, as liberdades básicas de falar, de se
comunicar, de se expressar; a cidadania política: garantir os
meios de participação do poder por partidos, sindicatos,
imprensa, etc. E cidadania social: garantir os meios de uma
dignidade mínima para os seres humanos, em termos do trabalho, da
saúde, da relação social, da qualidade de vida. Essa cidadania
civil, política e social está sendo hoje erodida de forma sistemática,
a ponto de assustar os coordenadores mundiais que hegemonizam o
processo.
Há dois dias, num discurso, o
secretário-geral da ONU, Koffi Annan, dizia isto: "A tarefa
do começo desse milênio, desse organismo mundial, é erradicar a
pobreza, com imperativo ético e humanístico". E ele repetia
os dados já conhecidos, de que 1,9 bilhões de pessoas vivem com
menos de um dólar por dia e de que 2,8 bilhões vivem com menos
de dois dólares por dia; isto é, para mais da metade da
humanidade a vida não é sustentável. Essa economia é uma máquina
de morte que os tritura, que os devora. Os cálculos já foram
feitos. O sistema hoje integrado da economia e da política
funciona bem, e muito bem, para 1,6 bilhões de pessoas. Ocorre
que somos 6 bilhões, para as quais a vida é um purgatório ou um
inferno.
Essa economia política é
desastrosa para a humanidade, é absolutamente antiética, desde
que a ética era a forma de os seres humanos buscarem aquilo que
é bom para todos, aquilo que é útil para as comunidades, aquilo
que é desejável, para estar conforme a natureza social do ser
humano.
Essa realidade é agravada
quando internalizada, isso em termos de Brasil. O professor Arruda
aventou a África, um continente considerado absolutamente descartável.
Nem mais é dos continentes excluídos, mas absolutamente descartável,
é como se fosse um peso morto para o capital. Não há nenhum
interesse para o capital investir na África, porque não quer
tirar mais nada da África, entregue à sua própria sorte, à sua
própria Aids, ao seu desespero.
Nós temos isso no nosso país,
a herança perversa da apartação social, que já tem quinhentos
anos e que exige de nós — como numa obra recente extremamente
viável e politicamente inteligente do ex-governador de Brasília,
Cristovam Buarque —, essa herança de apartação e exclusão
demanda uma segunda abolição. Fizemos a abolição da
escravatura, mas não fizemos a abolição da miséria e da
pobreza. Esse é o desafio da nossa geração. Essas palmas são
para o professor Cristovam Buarque, não para mim. Eu consideraria
importantíssimo que ele tivesse lugar neste fórum, porque ele
tem algo a dizer para este país.
Essa estratégia, hoje
mundializada, como disse, agride, impossibilita a democracia,
destrói a ética. E um dos passos importantes dela é
desacreditar o Estado e o mundo político, porque o Estado — e
esta é a sua função — é o promotor e o garantidor do bem
comum. A palavra bem comum não se fala, foi colocada no limbo dos
conceitos políticos. Agora é criticado e condenado, não o
Estado burocrático ou Estado corrupto, mas o Estado tout court,
pura e simplesmente. Por quê? Porque ele impede, coloca barreiras
à voracidade do capital e aos itinerários meramente individuais
às pessoas que buscam o seu bem-estar individual; e também aos
políticos, que representam finalmente a coletividade. Então,
procura-se desacreditar essas instâncias, desinventar o Estado,
tornar ridícula a política.
Precisamos estar atentos às críticas
contundentes e contínuas que se fazem ao Estado e ao mundo político
por toda a mídia. Há uma segunda intenção, que não é só a
busca do combate à corrupção, o que é legítimo, mas é a
busca da invalidação do Estado e das políticas, para deixar o
campo limpo à voracidade individualista. O bem comum é entendido
assim: o interesse daquele que ganha, de forma individual,
converte-se em interesse geral, em bem comum; mas não deixa de
ser individual.
Não quero deter-me no diagnóstico.
Gostaria de avançar em como sair desse impasse, o que fazer, o
que estaria dentro das nossas possibilidades. Em primeiro lugar,
penso — e tenho cinco minutos para dizê-lo — que é preciso
reordenar as prioridades, isto é, submeter a economia à política
e a política à ética.
Hoje a economia tem uma natureza
perversa, que contradiz toda a reflexão filosófica e a reflexão
social dos últimos dois mil anos. Já em Aristóteles e Platão,
mas mesmo nos clássicos, como Ricardo, a economia era sempre —
e a palavra filologicamente diz isto — o atendimento das
necessidades da casa. Ninguém mais sabe de economia do que uma
mulher de salário mínimo, que deve gerenciar esse salário mínimo
para atender as necessidades da casa e chegar ao fim do mês. A
economia não tem mais essa natureza. Transformou-se na técnica
de enriquecimento linear e cada vez mais crescente às custas das
classes e da natureza. Então, há que se submeter a economia à
política e aprender a primeira lição de Marx, que nunca devemos
nos esquecer: a economia não é um subcapítulo da Matemática e
da Estatística — possivelmente essa compreensão preside o
Banco Central. A economia é um capítulo da política, porque é
na política que os seres humanos decidem as formas de produzir,
as maneiras de distribuir e estabelecem os consensos de como,
juntos, viver e sobreviver.
A economia é da ordem dos meios
e não da ordem dos fins. A política estabelece os fins para os
cidadãos viverem em paz na seguridade e alimentar a seguridade da
sua existência coletivamente garantida. Submeter a economia à
política e a política à ética. A ética com aquela dimensão,
aquele senso dos seres humanos de buscarem a justa medida, o
comportamento reto que se adapta à nossa natureza de seres
sociais e que faz com que nossa convivência não seja uma trégua
e um processo de guerra de todos contra todos, mas seja a construção
coletiva da paz, como algo perene nos seres humanos.
Reafirmar a primazia do ético e
do político-democrático sobre o financeiro-econômico. Isso
fazemos ao reforçarmos a fonte de todo o poder que pode controlar
esses processos, que é reforçar a sociedade civil com todos os
seus movimentos.
Aí, para mim, vem o segundo
ponto, que é promover novas formas de representação política.
Não bastam os partidos, porque partido é sempre parte de algo.
É preciso estabelecer uma nova ponte entre Parlamento, governo e
sociedade, que mais e mais se organiza em mil movimentos para que
haja novas formas de poder e antipoder. Que o poder se
descentralize. Que o consenso não seja negociado e construído
nos muros deste Parlamento, mas seja continuamente frutificado e
amadurecido no diálogo, na ida e vinda habitual, diuturna e
cotidiana com a sociedade civil e com todos os seus movimentos.
Em terceiro, através desse novo
diálogo com o Parlamento — palavra que vem de parlar —, com
essa falação do poder social com o poder político, pode-se
garantir, postular e reforçar a busca do acesso a bens e serviços
necessários e indispensáveis para uma vida minimamente digna a
todos os cidadãos. Essa vida não vem por si mesma; vem através
de muita pressão e negociação.
Através dessa pressão e
negociação da sociedade com esse poder social e político,
deve-se resgatar uma dimensão básica do Estado: a dimensão ética.
O Estado não é só mecanismo de poder. Representa valores,
sonhos e ideais que a sociedade quer ver realizados nos portadores
de poder, que não devem ser ladrões de beira de estrada, mas
pessoas altamente éticas que apresentam, nas suas próprias
vidas, nos seus percursos biográficos, na forma como manejam e
gerenciam o poder, os valores da solidariedade, os valores éticos
da colaboração e da transparência do poder. Hoje, mediante a
recuperação do estatuto ético, o Estado ganha credibilidade.
Resgatar, de uma forma que
parece contraditória, o caráter social do Estado. Isso é até
ridículo dizer, porque o próprio Estado, por sua natureza
social, está sendo privatizado, grande instrumento que ainda
sobra para ser manipulado nos interesses das grandes corporações
multinacionais que querem o Estado para garantir o mínimo de
segurança para poderem circular dentro dos espaços econômicos.
Recuperar o caráter social do Estado, isto é, que as políticas
sociais do Estado não sejam relegadas a só um departamento: à
Comunidade Solidária. Que as políticas sociais sejam imperativo
e presença de todos os Ministérios, de todas as políticas,
porque o Estado é instância delegada do poder popular e do poder
social. Que não haja isonomia, que não se substantive.
Finalmente, quero dizer que o
fracasso das negociações do milênio em Seattle e o fracasso do
acordo multilateral dos investimentos mostraram que está surgindo
uma sociedade civil mundial. Se a luta por essa sociedade que quer
mais ética resgatar o sentido da democracia como solidariedade e
como busca do bem comum hoje globalizado e de uma cidadania mais
integrada, ela não é só desejável mas é possível e produz
frutos. Ela inviabiliza as artimanhas dos poderosos que, de costas
à humanidade, reúnem-se para defender privilégios, estabelecer
políticas que garantam os seus ganhos e continuam sacrificando e
martirizando mais da metade da humanidade.
Não é impossível que os
caminhos estejam abertos para resgatarmos a democracia com o
sentido de cidadania plena, com sentido ético nas suas relações,
com horizonte aberto em que não somos condenados a sermos lobos
uns dos outros, mas sermos cidadãos concidadãos que não são
condenados a viver e a sofrer num vale de lágrimas, mas que podem
ser filhos e filhas da alegria . Muito obrigado.