
Teólogo
Leonardo Boff
LEONARDO BOFF: É professor de
teologia, filosofia, espiritualidade e de ecologia, na
Universidade do Rio de Janeiro. Trabalhou mais de vinte anos como
franciscano em Petrópolis com um pé na academia e outro no meio
dos pobres. Dessa combinação nasceu a Teologia da Libertação,
que, junto com outros, ajudou a formular. Assessora comunidades de
base, dá cursos em universidades brasileiras e estrangeiras e
escreve com assiduidade. Dos mais de 60 livros que escreveu
destacam-se Jesus Cristo Libertador, Como fazer Teologia da
Libertação, o Rosto Materno de Deus, Igreja Carisma e Poder, A
Águia e a galinha, O Despertar da Águia e o recém lançado
"Saber Cuidar", onde procura detalhar o cuidado em suas
várias concretizações: com a Terra, com a sociedade sustentável,
com o corpo, com o espírito, com a grande travessia da morte.
É considerado um dos pilares da
Teologia da Libertação.
ENTREVISTA GRAVADA EM
BRASÍLIA, DIA 27/07/96, POR FELIX FILHO DURANTE A REALIZAÇÃO DO
IV CONGRESSO INTERNACIONAL DE PADRES CATÓLICOS CASADOS E SUAS FAMÍLIAS,
PARA O JORNAL IGREJA NOVA.
IN - Qual o papel do
leigo católico atualmente dentro da Igreja ?
BOFF
- Eu creio que o papel principal é o de resgatar o fato de ele
ser sujeito, porque o leigo não é sujeito. Ele não decide na
igreja e tem que pedir licença para tudo. Eu acho que o leigo,
iluminado pelo Evangelho e em solidariedade, deve abrir caminho,
iniciativas pastorais. Somente um leigo adulto livre pode ajudar
outras pessoas livres. Este é o grande desafio: superar a
menoridade histórica a que fomos condenados e recuperar, por nós
mesmos e não esperar nunca de cima , o caráter autônomo,
independente e solidário.
IN - Como você está vendo
este papel conservador da hierarquia católica ?
BOFF
- Eu creio que é uma reação às inovações que os próprios
leigos criaram na igreja , especialmente as mulheres e comunidades
de base . Todos estes movimentos questionam, a luz do Evangelho, a
centralização do poder e a clericalização da igreja . Quando
os leigos começam a estudar Teologia, eles querem ser ouvidos e
ajudar a decidir. Toda negação a essa exigência é sentida como
uma pressão . Roma faz valer a sua força e o direito canônico
para reprimir e reduzir novamente ao estado imaturo, infantil, os
leigos engajados.
IN - Até que ponto seria
uma atitude profética a denúncia da hierarquia mais conservadora
da igreja ?
BOFF
- Eu acho que a denúncia não faz sentido. Desde Lutero ela é
violenta e verdadeira. O que nós temos que fazer é abrir
caminhos , sem perder muito tempo em cobrar da hierarquia, porque
ela já tem poder e inventou critérios definindo o que é falso e
verdadeiro, e os aplica. E por aí nós não temos muita esperança.
A única coisa que move a hierarquia é quando vê leigos ativos,
por conta deles, fundando iniciativas, centros de defesa,
comunidades de base, círculos bíblicos. É mostrar que a igreja
é mais que este aparato enorme. A igreja é o movimento de Jesus
na historia e ganha muitas formas. Hoje é urgente que ganhe a
forma laica, autônoma. Cristãos que estão no mundo deixam
filtrar as experiências todas do trabalho , da vida, do
enfrentamento dos conflitos, pela luz do Evangelho. E ai nasce um
comportamento de cristãos que se deixam orientar por aquilo que
de herança , de generosidade e de divindade Jesus deixou dentro
da humanidade.
IN - Neste final de milênio,
com dois mil anos de Cristianismo, para que lado aponta a Teologia
?
BOFF
- A Teologia aponta em duas direções: uma para frente e outra
para trás . Para trás é recuperar o sonho de Jesus, que é de
grande generosidade e de descobrir Deus como amor e misericórdia
. Isto é o que trás o Cristianismo como boa nova à humanidade e
que liberta por dentro. E para frente é descobrir que Deus chegou
antes dos missionários. Que Ele está fermentando em todas as
culturas, o Espirito trabalhando no coração das pessoas. Que há
um fogo divino na história que não depende dos seres humanos. A
função dos cristãos é ser profetas, intérpretes desta
realidade de que eles também são visitados por Deus. Seus
caminhos espirituais também são caminhos que conduzem a Deus. Nós
queremos somar a eles e renunciar à arrogância de termos o monopólio
da salvação e dos caminhos da salvação.
IN - Como a ecologia entra
na historia da salvação do homem ?
BOFF
- Escrevi ultimamente um livro intitulado “ ECOLOGIA. GRITO DA
TERRA , GRITO DOS POBRES ” . É o intento de trazer a Teologia
da Libertação para os anos 90 . Não só os pobres são
oprimidos , mas também a terra grita , porque está sendo
exaurida pelo tipo de desenvolvimento que temos. Então, a libertação
tem que incluir também a libertação da terra . A perspectiva é
de dizer : ou nós mudamos de comportamento com relação à
terra, recuperando sua sacralidade e nos sentirmos filhos e filhas
da terra, ou então corremos o risco de um cataclisma ecológico .
A terra não agüenta este tipo de exploração que se faz a ela e
pode quebrar. E tem prazos para isso.
IN - Podemos dizer que o
ser humano é um ser ameaçado ?
BOFF
- O processo mundial de acumulação capitalista sacrifica muito a
natureza e as pessoas humanas. Por isso o ser pobre, não incluído
no sistema , é marginalizado, passa fome e morre . E esse então
é o desafio ecológico porque o ser humano deve ser entendido
dentro da natureza. Toda injustiça, agressão ao ser humano, é
uma injustiça ao ser mais complexo da natureza. Então, eu creio
que uma tarefa nova da opção pelos pobres é incluir a terra
como grande pobre que está sendo explorado e reduzido na sua
riqueza interna, e que isso poderá afetar toda a biosfera e os
seres humanos. Por isso, a questão básica não é que futuro tem
a igreja , mas que futuro tem a terra. E como a igreja , o
cristianismo ajuda a salvaguardar o futuro bom da terra.
IN - Qual seria , então, o
papel de um leigo católico de classe média nesse processo em
favor dos pobres?
BOFF -
A classe média sempre tem um privilégio. É uma classe laboriosa
e que se dota dos meios de comunicação e uma formação acadêmica
melhor. Então é uma classe que acompanha o fio da história . O
desafio que vem para os cristãos de classe média é socializar o
poder que têm, profissional, econômico e intelectual.
Normalmente a classe média é convocada a imitar os que estão de
cima , a querer ser mais rica ainda . Acho que o cristão deve
fazer uma opção para baixo, como Deus fez. Não é transcendência,
é transcedecência , é descer na direção daqueles que menos
tem, associar-se a causa deles e emprestar tempo, inteligência e
capacidade para reforçar a luta do povo, e assim , o povo mesmo
possa ter mais força de lutar e conquistar seu direito e sua
justiça
IN - Qual sua mensagem para
os cristãos leigos que estão na arquidiocese de Olinda e Recife?
BOFF
- Eu creio que eles devem olhar para frente, não perder muito
tempo com a discussão interna da Igreja . O grande problema não
é a Igreja, é a pobreza, injustiça, exclusão, miséria que está
na sociedade. É fazer da fé cristã , do seu capital de
generosidade e solidariedade uma força transformadora da
sociedade, comprometida em mudar a realidade. Essa mudança começa
com a gente mesmo, não da barriga prá frente, mas das costas prá
frente, nos incluindo nessas mudanças. Então, já em casa, viver
uma nova relação homem /mulher, família / filhos. Ter uma
atitude mais benevolente com a natureza, não viver só atolado
pelo trabalho, mas reservar espaço de gratuidade, de conversa com
a família, e ver a dimensão sabática, a dimensão de descanso
que a pessoa se refaz da sua humanidade e depois volta ao seu
trabalho na perspectiva não obsessiva, mas como forma de
colaborar e conseguir o seu sustento. Os leigos tm uma tarefa
enorme de inaugurar um cristianismo não clerical, evangélico,
mais simples, sem muitas doutrinas e dogmas , fundamentalmente
iluminado pelo exemplo de Jesus. Os cristãos têm que dar seu
testemunho por conta deles , sem perguntar a ninguém a não ser
ao evangelho e aqueles que estão à sua volta.
ENTREVISTA
EXCLUSIVA COM LEONARDO BOFF
ENTREVISTA EXCLUSIVA COM
LEONARDO BOFF, CONCEDIDA AO GRUPO IGREJA NOVA NO DIA 21 DE
JANEIRO, DURANTE SUA VISITA AO RECIFE.
IGREJA NOVA - Leonardo, o que
Dom Helder, esta grande figura da Igreja e do mundo representa
para você?
LEONARDO BOFF - Para mim,
Dom Helder é a pessoa que mais me inspirou, inclusive no carisma
franciscano. Ele é uma das figuras mais franciscanas que a Igreja
universal tem, especialmente no seu incomensurável amor aos
pobres e na sua imensa capacidade de enternecimento, de abraço,
de cordialidade com todas as pessoas. Essas características eram
as típicas de São Francisco.
IN - Fale-nos um pouco de sua experiência
pessoal com Dom Helder.
BOFF - Há um lado meu,
profundamente subjetivo: encontrei em Dom Helder sempre um grande
amigo, mais que um amigo um irmão, que nunca me deixou, em nenhum
momento das minhas crises com as instituições do Vaticano; que
sempre me defendeu e me apoiou. Hoje mesmo me disse num encontro:
"nós sempre fomos irmãos, nós sempre nos apoiamos, nós
sempre nos entendemos". E de fato é isso. É essa a experiência
pessoal que tenho com ele.
IN -Qual é a sua identificação
teológica com ele ?
BOFF - Como teólogo eu
vejo, e hoje com certa distância mais claro ainda, que, mais do
que Gustavo Gutierrez e João Luiz II, o verdadeiro pai da
Teologia da Libertação foi Helder Câmara.Ele inaugurou a prática
libertadora de trabalhar com os pobres, na perspectiva dos pobres,
contra a pobreza deles e em função da sua vida e da sua
liberdade. Foi ele que criou a expressão "Libertação
integral", em 1967, na reunião do CELAM, em Montevidéu. Ele
cunhou essa expressão que caracteriza a Teologia da Libertação.
Não foi o Vaticano e nem foi o Papa, que nos obrigaram a pensar a
integralidade da libertação. Ela nasceu já na perspectiva
integral de um duplo sentido: integral no sentido de atingir o ser
humano todo e em todas as dimensões e integral no sentido de ser
universal. Dom Helder, já naquele tempo, dizia: "A dor dos
pobres é uma só e todo pobre, em qualquer parte do mundo, é um
grito em favor de sua
libertação". Ele entendeu, já no
final dos anos 60, quando ninguém ainda falava em globalização,
que a libertação tem que ser integral e globalizada ,porque os
pobres estão em todas as dimensões do globo. Ele é o verdadeiro
pai, no sentido de que foi o primeiro a inaugurar uma prática da
libertação e o primeiro a fazer reflexões profético -
pastorais sobre a libertação. Nós teólogos viemos depois,
fizemos reflexões teológicas, críticas, exegéticas, históricas
sobre a libertação e aí nasceu a Teologia da Libertação com
uma visão global. Mas o verdadeiro pai, a fonte inspiradora, de
prática e de vida, foi Helder Câmara.
IN - Você considera Dom Helder um
profeta?
BOFF - Para mim, Dom Helder
é o maior profeta do Terceiro Mundo. Foi ele quem soube e
que nos ensinou a legitimidade de ter uma indignação sagrada
face à injustiça mundial, ligada ao sistema do capital. Muitos
se indignaram diante do pobre, mas Dom Helder entendeu que o pobre
não é pobre, o pobre é um empobrecido, é um oprimido, por um
sistema que produz continuamente, muita pobreza de um lado e
riqueza do outro. Ele soube, a maneira de um profeta que tem
lucidez, denunciar o causador da pobreza, que é o sistema do
capital e, em todos os foros do mundo, levantava a eminente
dignidade dos pobres e a injustiça que se faz contra eles. Daí
entender a pobreza como injustiça e a luta contra a pobreza como
a chamada
"criação de relações justas",
ao nível mundial. Ele é um profeta que antecedeu a todos nós.
Sempre mostrou um infinito enternecimento para com os pobres e
toda a pessoa que se acerca dele. Essa unidade de ternura e vigor,
para mim, caracteriza essa biografia, essa saga místico-religiosa.
Talvez seja a pessoa religiosa, no meu modo de ver, mais
importante do século XX. Mais do que papas e outros. Ele fez de
sua vida, do seu corpo, de sua fragilidade, Evangelho. Ele fala
como ser humano em sua totalidade e já se transformou em arquétipo,
e como arquétipo ele vai no inconsciente coletivo das pessoas.
Hoje ele é um dos arquétipos mais bem- fazejos que a cultura
ocidental cristã produziu para a humanidade. E quem vira arquétipo
se eterniza, vira um símbolo ,que sempre se atualiza, sempre
inspira. Nós vivemos essa inspiração.
IN - Para terminar, deixe uma
mensagem para os leitores do Igreja Nova.
BOFF - Eu creio que a
Igreja do Recife propiciou a emergência de um laicato adulto, não
infantilizado, crítico mas ao mesmo tempo profundamente evangélico,
porque se deixa inspirar pelas fontes do Evangelho, da prática de
Jesus e da melhor tradição místico-religiosa do povo
nordestino. Eu sonho com uma Igreja cada vez mais laical, no
sentido original da palavra, feita de membros do povo de Deus.
Porque leigo significa isso: membro do povo de Deus. Nesse
sentido, o papa deve ser leigo, o bispo também, um membro do povo
de Deus, nessa profunda fraternidade e solidariedade de todos, ao
redor do irmão maior que é Jesus. Eu vejo com alegria que haja
aqui, leigos que não aceitaram a lógica da imposição e que não
se amarguraram. Sofreram, com a injustiça do desmonte eclesial,
de uma igreja que era referencia mundial do cristianismo profético,
libertador, feito de pobres e da grande santidade do seu pastor,
que se espalhava por todos os
cantos do mundo. Mas que não se
resignaram. Nem choraram, nem riram. Decidiram continuar com
seriedade e estão criando um cristianismo adulto, autônomo. Não
contra a hierarquia, ou apesar da hierarquia, mas junto com a
hierarquia, com seu nível de consciência muito firme das
virtualidades que estão presentes de forma teólogica nos leigos,
de ser também, a sua maneira, um animadores da fé, profetas que
denunciam dentro e fora, que sabem celebrar a sua fé. Não
discutem e aprofundam apenas. Rezam, contemplam, dançam, festejam
e por isso são sacerdotes, no sentido pleno da palavra. Tudo isso
significa um avanço da Igreja. Acho que toda Igreja deve
reaprender a lição laical e, se um dia a Igreja do Recife foi
fonte inspiradora a partir de um pastor extraordinário que foi
Dom Helder, oxalá ela seja hoje uma fonte inspiradora também de
um modelo novo de igreja laical, madura, de comunhão, ligada à
luta dos pobres e buscando a libertação lá onde ela se encontra
e realiza, contra a pobreza, a favor da vida, da liberdade e da
solidariedade de todos os cristãos e de todos os homens.
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