
O Programa de Direitos Humanos
Maria Ignês Rocha de Souza Bierrenbach
Ex-Presidente do Condepe (SP) - Conselho Estadual de Defesa dos
Direitos da Pessoa Humana - São Paulo
Os Programas Nacional e Estadual de Direitos
Humanos - PEDH - se inscrevem no cenário mais amplo da realidade nacional
e sua estrutura econômica-política e social, na perspectiva do longo e
árduo processo de redemocratização do país.
Baseiam-se em um conjunto de princípios que os
perpassam, objetivando a construção de uma sociedade mais justa, mais
solidária, mais humana, que deve orientar a aplicação de todas as medidas
de um conjunto orgânico de proposições. Abrangem direitos
constitucionalmente consagrados, assim como ratificados pelo Brasil nas
convenções internacionais, e, portanto, com força de lei no território
nacional.
Entretanto, as ideologias, as contradições e as
relações de poder da sociedade são forças vivas e atuantes e se reproduzem
no interior dos Programas, dando-lhes sua conformação.
Os Programas de Direitos Humanos são
emblemáticos numa sociedade que dá seus primeiros passos para uma mudança
de mentalidade essencial para o resgate da cidadania em nosso país.
Numa relação etiológica, pretendem ser o
instrumento da disseminação da cultura de defesa de direitos por todo o
país e combate à violência e à impunidade. Em outras palavras, pretendem
eliminar a aplicação do direito como privilégio e resgatar a
universalidade das leis, assegurando direitos individuais, mas também os
coletivos num Estado democrático de Direito.
Entretanto, se tivéssemos que qualificá-los em
uma única palavra, diríamos, são essencialmente democráticos, tanto na sua
forma como no seu conteúdo e, portanto, imbuidos de componentes positivos
e, paradoxalmente, de componentes negativos inerentes à sua propria
natureza.
Na presente análise vamos buscar salientar os
componentes positivos, pois se constituem a força de propulsão dos
programas, sem esquecer os componentes negativos, cujo conhecimento é a
melhor forma de desmobilizá-los e ajudar a superar os inúmeros obstáculos
a serem enfrentados.
DILEMAS E DESAFIOS
O Programa Estadual, assim como seu congênere
nacional, nasceu sob os auspícios do resgate dos Direitos Humanos na nossa
sociedade e contribuiu para que a defesa de direitos, por vezes mal
interpretada e considerada uma preocupação de grupos restritos, se
ampliasse e se tornasse parte integrante da agenda política nacional. Isto
não quer dizer que o problema esteja resolvido, que não haja resistências
ou rejeição de setores da sociedade, mas cabe destacar que, na atual
conjuntura, os direitos humanos não podem ser ignorados ou considerados
uma atividade de somenos importancia ou de segunda classe.
Além disso, comprometem o Estado na proteção e
promoção dos Direitos Humanos, trazendo-os para o patamar das políticas
públicas, tal como a Educação, a Saúde, a Habitação, dimensões com as
quais interage, propondo medidas nas suas interfaces e reconhecendo o seu
alcance econômico-social e suas limitações no combate à violência
estrutural.
O Programa paulista avança em relação ao
nacional, que dá prioridade aos direitos civís, particularmente à vida, à
integridade física e à justiça, sem negar a indissociabilidade dos
direitos. O programa estadual propõe medidas de geração de renda, emprego
e aborda a questão das reformas agrária e fundiária, adotando a concepção
abrangente de direitos e se distanciando da acepção tradicional, restrita
aos direitos civís e políticos, onde ocorrem as tradicionais violações de
direitos.
O Programa Estadual de Direitos Humanos- PEDH ,
já em seu lançamento, podemos afirmar, é uma conquista da
sociedade, porque não foi concebido centralizadamente e nem imposto de
cima para baixo, mas é produto de um amplo processo de participação e
debates.
Embora não seja um produto pronto e acabado, é
expressão da clara e explicita vontade política do governo em correlação à
manifestação dos anseios da população e das necessidades dos segmentos
excluídos e será um quadro de referência do compromisso das partes
envolvidas.

É o registro do resultado de uma mudança de
diretriz nas elaborações das próprias organizações não governamentais, que
de certa forma evoluiram de uma posição denuncista, mais condizente com a
época de autoritarismo, para uma posição propositiva, de quem assume sua
parcela de responsabilidade na construção democrática do país.
O PEDH, se por um lado já cumpriu uma
importante etapa de mobilização e conscientização social, por outro lado
será um norte a ser alcançado num contexto de avanços e recuos, pois a
violência não desaparecerá num toque de mágica, mas as conquistas se darão
no contexto de lutas e contradições da sociedade.
Na atual conjuntura, as graves e recorrentes
violações de direito , a recente violência policial da chamada "Favela
Naval" de Diadema (revista arbitrária da população) e da "Fazenda da
Juta", (desocupação judicial de um conjunto habitacional), com mortes e
outros crimes, ao serem noticiados pelos meios de comunicacão,
repercutindo na sociedade, paradoxalmente, contribuiram para a
conscientização da população para o problema e engendraram a aprovação de
várias medidas legislativas (a exemplo da lei disciplinando o crime de
tortura), caracterizando-se avanços setoriais no campo de direitos
humanos.
Em outras palavras, a mídia e a indignação da
opinião pública diante dos atos de barbárie e violência têm sido
fundamentais para alavancar as propugnadas medidas de defesa de direitos
em nossa sociedade.
O PEDH é, ainda, produto de uma
parceria dos setores organizados da sociedade civil em
articulação com setores governamentais e, neste sentido, é
inovador, sobretudo ao examinar-se um passado recente
onde estas interrelações simplesmente não existiam, ou eram eivadas de
desconfiança mútuas, gerando um distanciamento programado e um fosso
intransponível.
Atualmente, são reconhecidas como essenciais as
atividades do chamado terceiro setor, as organizações não governamentais,
numa perspectiva de autonomia e auto-gestão da sociedade, sem pretender
substituir o Estado e sem prescindir do seu papel para orientar as
questões de equidade e justiça social.
Em sua dimensão política, o Programa de
Direitos Humanos, é uma articulação dos setores comprometidos da
sociedade, visando consolidar e ampliar o leque de adesões, pactos e
negociações em torno de ações concretas e efetivas a curto e a médio
prazos.
Trata-se de um programa governamental, embora
muitas medidas sejam apresentadas em forma de projetos de lei, tendo as
Assembléias Legislativas e a Câmara Federal presenças fundamentais na
aprovação do arcabouço jurídico que vai influir nas decisões do Poder
Judiciário.
Torna-se evidenciada a necessária cooperação
entre as três instâncias de poder, numa perspectiva integrada de
articulação e ação na promoção e proteção de direitos na nossa sociedade.
Entretanto, há de se ter em conta que os referidos poderes, em geral, são
estanques, não se comunicam entre si, e cada um deles não se constitui num
bloco monolítico de pensamento, mas se fragmenta em "n" linhas de
interesses, dificultando a abordagem conjunta, que tanto tem colaborado
para obstaculizar as ações de defesa de direitos.
Entretanto, não se trata de um programa
partidário, sujeito às implicações de caráter populista ou politiqueiro
que comprometeria indelevelmente seus princípios fundamentais de
universabilidade e indivisibilidade dos direitos.
A dimensão educacional do Programa está
inscrita nas relevantes medidas de "Educação para os Direitos Humanos",
numa perspectiva interdisciplinar.
Num contexto de impunidade e da cultura de
violência, o Programa de Direitos Humanos tem, também, essa atividade
didática-pedagógica, no sentido de esclarecer os conceitos e dirimir os
preconceitos e as discriminações que impregnam nossa sociedade,
contribuindo para a aceitação das diferenças, a democratização das
relações interpessoais e o arejamento das instituições.
Nesse cenário, todos são protagonistas e não há
atores secundários, o que talvez explique os altos números e a qualidade
da participação da população no processo de construção do PEDH e exija a
presença no seu monitoramento e se constitui a força e a fragilidade do
programa.
|