
Globalizar
a solidariedade
Vicente
Paulo da Silva
Presidente
da Central Única dos Trabalhadores CUT)
“Quero
que a justiça reine em meu pais
Quero
a liberdade, quero vinho e pão
Quero
ser amizade, quero amor, prazer
Quero
nossa cidade sempre ensolarada
Os
meninos na praça e o povo no poder
Eu
quero ver”.
(Milton
Nascimento)
Não
há grandes mistérios no que queremos como trabalhadores e
trabalhadoras quando falamos em uma sociedade justa: estarmos livres de
repressão, sem fome, sentirmo-nos participantes das coisas que acontecem
ao nosso redor, podermos utilizar a nossa criatividade para ajudar o mundo
a se desenvolver em harmonia, sem destruição, com paz, amor, estímulo e
orgulho do trabalho; enfim, a alegria de rir com os outros. Mas, nós,
classe trabalhadora, aprendemos logo cedo que para isso precisamos nos
organizar.
Na
América Latina, nossa luta é conturbada. O processo democrático foi
interrompido em vários países e por diversas vezes, com violência,
conflitos, ditaduras construídas a partir de golpes militares. Houve
milhares de mortes, torturas e perseguições. As organizações
populares foram golpeadas diretamente, inclusive as organizações
sindicais autênticas.
Nos
100 últimos anos, com muita esperança, garra e resistência, os
trabalhadores e trabalhadoras brasileiros construíram suas organizações
locais e nacionais, que foram atingidas por inúmeras posturas antidemocráticas,
muitas vezes ligadas e apoiadas até por interesses estrangeiros: prisões
de dirigentes, ocupações militares, intervenções e fechamento de
sindicatos por parte do Estado. Isto demonstra como tem sido árdua e heróica
a nossa luta. Mesmo assim, a Central Única dos Trabalhadores (CUT)
conseguiu completar 16 anos, cm 1999, o mais longo período de existência
de uma central sindical na história do sindicalismo brasileiro. Hoje, a
principal ameaça aos valores da democracia e da solidariedade humana não
vem mais das baionetas, mas das políticas econômicas que, de um lado,
favorecem a concentração de renda e de poder, e de outro impossibilitam
que a grande maioria aproveite as liberdades formais que conquistamos nas
lutas contra as ditaduras.
Hoje,
a nossa Central representa 19.451.589 trabalhadores e trabalhadoras em
todo o pais. Destes, 6.028.620 são sindicalizados, em 2.570 sindicatos
filiados. A Central representa, negocia e defende os trabalhadores diante
do governo, empresários, forças políticas e forças sociais.
Vivemos
uma contradição gritante. Somos reconhecidos como legítimos
representantes da classe trabalhadora por toda a sociedade, inclusive pelo
parlamento, que faz a lei, e pelo Poder judiciário, que a aplica.
Apesar de tudo isso a nossa Central ainda não é reconhecida pela
Constituição brasileira.
Nascemos
em plena ditadura militar e contra ela, com princípios que nos norteíam
até hoje: um sindicalismo de base, classista, democrático e autônomo
frente aos partidos políticos, Estado, empresários e regiões.
Com
característica de autenticidade e combatividade.
Em
função desses princípios, crescemos, nos consolidamos e buscamos
evoluir em nossas ações e pensamentos. Mesmo porque o mundo evolui, e o
poder econômico e político, com seus objetivos e ações envolventes,
evolui mais rapidamente, ainda que para isso gere desemprego, crie
precarização, produza miseráveis, provoque a dor humana, cause a morte,
atingindo crianças, jovens, mulheres, negros, índios, idosos... Cada vez
mais, o ódio, o preconceito, a xenofobia e a violência crescem!
O
que nem as ditaduras militares conseguiram a concepção neoliberal de
mercado vem fazendo: a destruição da solidariedade humana, a força-motor
para uma evolução rumo a um mundo mais justo, igualitário e fraterno.
No Brasil, proprietários de gigantescas áreas de terras se sentem
defendidos pela democracia formal, enquanto milhares de famílias passam
fome, ainda que com disposição para cultivar as terras improdutivas.
Quando elas tentam se organizar para reverter esse quadro, são
classificadas de criminosas por atentarem contra o “sagrado direito à
propriedade privada”. Quando desistem de suas aspirações, a única
alternativa que lhes resta e se dirigir para as favelas e cortiços em
torno das grandes cidades sem perspectiva de encontrar trabalho digno.
Banqueiros
lucraram no Brasil com a inflação, que ao mesmo tempo esvaziava as
nossas conquistas nas campanhas salariais. Hoje, com a inflação sob
controle, continuam lucrando. Com garantias íncondicionais do governo,
sentem-se a vontade para especular, enquanto unidades produtivas ficam
estranguladas. O governo não assume a sua responsabilidade com os
graves problemas sociais, aprofundando a miséria em nosso país. E
continua forte e firme defendendo os interesses do capital. Os juros básicos
reais chegaram até 40% no ano. E continuam em patamares altíssimos:
perdem-se postos de trabalho e ganhamos que investem em especulação
financeira, sem conpronisso nenhum com o desenvolvimento do Brasil. Políticas
semelhantes são aplicadas em praticamente toda a América Latína.
De
um lado, aposta-se mundialmente nas bolsas, avança-se indiscriminadamente
em mais tecnologias e em novos métodos de produção. É a riqueza se
acumulando em poder de poucos.
Do
outro lado, crescem o desemprego e a informalização do mercado de
trabalho, e os salários são reduzidos. Por exemplo: o salário mínimo
no Brasil é de cerca de 65 dólares. Mesmo assim, cerca de 20 milhões de
brasileiros não chegam a ganhar até um salário mínimo mensal. As
condições de trabalho são precarizadas, aplica-se o jus
in time no ser humano: os trabalhadores têm de estar a disposição
do capital 24 horas por dia. Os trabalhadores e trabalhadoras se
transformam em instrumentos descartáveis e sem direitos.
É
a globalização, hoje, instrumento executivo da doutrina neoliberal.
Globalizam-se
os canais do lucro, nacionalizam-se os diques da miséria. E o sistema o
faz de maneira sofisticada, com requintes que atingem a consciência
popular. O sistema valoriza o egoísmo e desestímula a solidariedade.
Logo, desqualifica as organizações sociais e democráticas, a tingindo
em cheio os sindicatos de trabalhadores. Governantes e empresários,
defensores desse preceito, executam-no) com vigor, alegando
competitividade e modernidade. Na verdade, é um caminho perverso, que só
tem trazido desesperança e angústia. Se é essa a modernidade tão
propalada, não a queremos!
Nós,
trabalhadores e trabalhadoras, recebemos toda a carga negativa da
globalização: desemprego, trabalho informal, previdência social precária,
trabalho infantil, prostituição de nossos filhos e filhas, trabalho
escravo, discriminação racial, sexual e a trabalhadores imigrantes. O
desemprego no mundo é alto e tende a crescer. A precarização do
trabalho na América Latina atinge cerca de 50% dos trabalhadores e supera
a marca de 90% nos casos do Peru e Bolívia. Já se começa a perceber
esse fenômeno também nos países desenvolvidos, provocando mudanças no
perfil do emprego e, consequentemente, exigindo de nos novas formas de
organização e ação.
No
Brasil, quando Fernando Henrique Cardoso (FHC) tomou posse como
presidente da República, o desemprego disparou. E no Brasil esses
trabalhadores não têm saúde, educação, moradia... Ficam reduzidos à
pior condição humana, a de miseráveis. A reestruturação) produtiva
eliminou mais de 2,4 milhões de empregos na indústria de transformação
nos anos 90.
Apesar
de um país com tantos adultos desempregados, inúmeros empresários
exploram o trabalho de crianças. Malditos! Em 96 existiam mais de 2 milhões
e 400 mil crianças fora da escola, e aproximadamente 4 milhões de
menores de 14 anos trabalhando. O Brasil é um país no qual há grande
presença de crianças no mercado de trabalho, e que se encontram em condições
subumanas, ganhando 1/3 do salário dos adultos pela mesma função. Em
torno de 30% delas enfrentam uma jornada semanal de trabalho superior a 50
horas. E o governo brasileiro reduziu em mais de 15% os recursos para a
educação nos últimos três anos!
A
classe trabalhadora brasileira sofre com as consequências das dívidas
que o nosso país paga, com o déficit comercial que surgiu junto com a
abertura comercial e não parou de crescer, até chegar a quase 10 bilhões
de dólares em 1997. Ao mesmo tempo, chegam notícias de que outros
brasileiros são os maiores investidores em imobiliárias em Míami e OS
turistas que mais gastam nas lojas em Paris. No ano passado, brasileiros
viajando para o exterior gastavam US$ 4,5 bi mais do que os turistas
estrangeiros no Brasil. Quem conhece a beleza do nosso país sabe que
alguma coisa está fora da ordem. Vemos ao mesmo tempo que a situação
na África está tomando proporções dramáticas. E a realidade do
outro lado do mundo não e tão maravilhosa como alguns nos queriam fazer
acreditar. O que as crises financeiras no México e na Ásia têm em comum
é o fato de que os trabalhadores pagam a conta. Como diz o economista
norte-americano Kapstein: “O mundo pode estar se movendo inexoravelmente
para um desses momentos trágicos que levará futuros historiadores a
perguntar: por que não foi feito nada a tempo?” Como pensamos o mundo
daqui a 25 anos, se as previsões modestas das Nações Unidas indicam um
crescimento da população dos atuais 6 bilhões para 8 bilhões e 500 mil
pessoas, quase que totalmente concentradas nas regiões mais pobres do
nosso planeta?
O
movimento sindical tem como compromisso histórico lutar para deixar
acesa a chama da solidariedade humana. Ao longo das últimas décadas,
acumulamos experiências em negociar com as empresas e o Estado nacional.
O capitalismo tinha de aceitar de uma forma ou de outra conviver com uma
legislação trabalhista que, com todas as possíveis falhas, reconheceu a
existência de um desequilíbrio de poder na relação capital e trabalho.
Mas por trás das expressões “revolução tecnológica” e
“globalização”, o capital está rompendo todas as amarras que os
trabalhadores conseguiram por meio da legislação trabalhista ou
diretamente por meio de contratos coletivos. Globalização e revolução
tecnológica mudam as regras do jogo e impactam um mundo já caracterizado
por profunda desigualdade. O capital está sempre mais livre, enquanto se
enfraquece o poder de barganha da classe trabalhadora e se esvaziam os
instrumentos de regulamentação. O Brasil, já cheio de contradições,
ganhou mais uma: o impacto da globalização faz com que hoje não sejam
mais os trabalhadores a questionar a legislação trabalhista, apontando
as suas limitações.
Hoje
é o governo neoliberal que questiona a rigidez da regulamentação do
mercado de trabalho. Mas o que significa “rigidez” em um país como o
nosso, no qual um trabalhador pode ser demitido a qualquer hora, sem que
a empresa precise apresentar uma justificativa?
Tanto
é verdade que o governo brasileiro, pressionado pelas empresas nacionais
e internacionais, renunciou aos compromissos contidos na Convenção 158
da OIT, que não faz outra coisa a não ser obrigar as empresas a
consultar os sindicatos em caso de demissões em massa. Mas até mesmo
essa convenção, que não garante emprego, já era considerada um incômodo
para a livre circulação do capital. E sem a livre circulação do
capital, o mundo não vai ser feliz, assim nos querem fazer acreditar. A
perda de governabilidade dá Lugar a uma concentração de poder econômico
e social. As 200 principais empresas multinacionais, das quais muitas
possuem receita anual superior à maioria dos PIBs nacionais, estão
criando um novo tipo de totalitarismo, dessa vez de cunho econômico, e não
militar, mas nem por isso menos cruel. Assistimos a criação de uma dinâmica
sobre a qual mesmo países de porte têm pouca influência. Crises
financeiras e desemprego em massa são apresentados como fenômenos
naturais, ou erros de percurso.
Mas
quem paga a conta são invariavelmente os trabalhadores.
Entretanto,
nós, trabalhadores e trabalhadoras organizados, existimos. Na luta e na
resistêncla. Com nossos erros e acertos. Está na hora de percebermos a
enorme responsabilidade que têm as organizações
dos trabalhadores. Podemos e devemos levar a bandeira da solidariedade
humana ao local de trabalho, ao bairro, passando as fronteiras, sem distinção
de raça, sexo, idade ou religião. Mas erramos quando limitamos nossa
luta aos parâmetros das nossas respectivas nações.
Erramos
quando nos isolamos, corporatívamente.
Erramos
quando imaginamos que já conquistamos tudo e nos acomodamos.
Erramos
quando perdemos a perspectiva de classe.
Erramos
quando, como dirigentes, nos afastamos dos trabalhadores que
representamos.
Erramos
quando, ao combater as propostas com as quais não concordamos, nos
limitamos a dizer “não”, sem apresentar alternativas, quando elas
podem existir.
Erramos
quando percebemos que estamos envelhecendo e não estimulamos a participação
da juventude em nossas organizações.
Apesar
de tudo, persistimos.
Crescemos
e conquistamos.
Avançamos
quando percebemos como somos importantes. Somos produtores, e sem o nosso
trabalho não se vive.
Descobrimos”
que podemos até decidir quem serão os nossos governantes, apesar das
dificuldades impostas pela ideologia dominante. Entretanto, existimos. E
lutamos contra essa globalização.
Devemos,
cada vez mais, es tender os nossos Laços de solidariedade, globalizando
a luta o conhecimento, as conquistas, os direitos, preservando a cultura
de cada povo.
Devemos
globalizar a esperança, a alegria, o bem...
Devemos
globalizar as práticas sindicais, éticas e democráticas. Devemos
fortalecer as ações e o intercâmbio entre as organizações
Internacionais, independentemente da sua filiação, tendo como referência
a vida e a luta dos trabalhadores comuns que pretendemos representar.
Esse
contato com os trabalhadores pressupõe a simplicidade da relação
ensinar-aprendendo, aprender-ensinando. A capacidade de compreender que
se nós, sozinhos, dermos um grande passo, o efeito será muito pequeno se
comparado ao pequeno passo dado juntamente com todos os que representamos.
Às
vezes é preferível errar coletivamente do que acertar sozinhos.
E
fundamental que nos abramos a um mundo mais amplo, quebrando as amarras
cio corporativismo, do economicismo, do imediatismo.
A
solidariedade com as lutas populares nos aspectos culturais, pela
moradia, saúde, no combate á corrupção e á impunidade, em alianças
com outros segmentos, tudo isso nos colocara na condição de inseridos na
luta de um povo, de uma nação. luta por um pais com desenvolvimento
sustentável e distribuição de renda isto é socialmente justo.
Devemos
manter, permanentemente, uma ação enérgica contra qualquer tipo de
discriminação: sexual, religiosa, racial, regional, física, social...
Devemos
construir propostas alternativas para a política industrial, propostas
para a geração de empregos, como a redução da jornada de trabalho, o
fim do trabalho infantil, previdência, educação, políticas sociais,
crescimento sustentado, reforma agrária, etc. São questões que estão
além do âmbito estritamente sindical, intimamente ligadas à vida de
todo ser humano.
Devemos
nesse aspecto, poder influenciar nos destinos da nossa nação, na
perspectiva generosa da solidariedade e da justiça social.
Que
tenhamos em mente a procura do novo, em todos os sentidos que envolvem a
nossa luta. Não é proibido sonhar com um mundo novo, desde que comecemos
a construi-lo, definindo-o passo a passo.
Não
é crime sonhar um mundo mais igualitário. A nossa luta tem de ser movida
pela indignação e pela esperança. A indignação ao ver 05 milhões que
têm de viver como miseráveis, e nc1uanto outros nos tentam
convencer de que as desigualdade fazem parte do ser humano e ajudam a
liberar as forças criativas. Para nós, a fonte de liberação da nossa criatividade
são a união e a solidariedade humana. Como dizem nossos irmãos e
irmãs na África do Sul: ferir um é ferir todos.
Tenhamos
esperança!
Sejamos
altivos!
Saiamos
da crise!
Há
cerca de dois mil anos, o rebelde Jesus Cristo, filho de um carpinteiro,
fazia uma assembléia... E entre outras coisas, disse: «Felizes os que
têm fome e sede de justiça, porque serio saciados”.
Que
nós, trabalhadores, sejamos protagonistas das mudanças positivas para
todos, que com certeza saio a boa-nova no próximo
milênio.
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