
A "primeira planetária".
Para construir uma
"outra Globalização": o Welfare mundial
Riccardo Petrella*
A expropriação do devir do
mundo
Os fenômenos de expropriação se
multiplicaram e ampliaram em toda parte.
Expropriou-se:
· a pessoa humana de seus direitos
fundamentais: enquanto "recurso humano" somente tem
direito à existência em função de sua rentabilidade e do que
doravante se chama "a empregabilidade", conceito que
substituiu o de "direito ao trabalho";
· a sociedade de sua razão de ser
enquanto sistema de organização e de valorização dos laços
interpessoais e interinstitucionais e das interações e transações
correspondentes: foi substituída pelo mercado elevado ao nível
de sistema que garante a forma e organização ótimas das transações
entre os indivíduos;
· o trabalho de seu papel de criação
de valor e de história: "mercadoria" colocada em
concorrência no mercado global, seu custo deve baixar sem cessar;
· o social de suas funções de
identidade e de solidariedade: não se valoriza senão o
individualismo, a lógica de sobrevivência e as relações de força
num contexto de competição guerreira;
· o político de seu papel
fundamental de poder de regulação, representação, controle e
legitimação, bem entendido, democrático: este papel foi
confiado ao financeiro e à tecnocracia;
· o cultural de sua variedade,
dramaticidade e sacralidade: em seu lugar foi colocada a
tecnologia, a estandardização embrutecedora, a violência dos
instintos, a barbárie da força;
· a cidade de sua função de espaço
das comunidades: fizeram dela lugar de não-pertencimento, de
fluxos, de velocidade, por onde se passa e se perde num nomadismo
permanente sem memória;
· a democracia de seus valores de
liberdade, igualdade e solidariedade: o poder efetivo foi dado a
uma nova classe oligárquica mundial da qual se começa a ver os
traços característicos, os valores e os modos de funcionamento.
Não há globalização da
sociedade. A "aldeia global" não existe. Assistiu-se à
emergência do "arquipélago capitalista mundial"
Esta vasta ação de expropriação
faz com que falar de globalização como o faz "a gente de
Davos"1, seja simplesmente retórica na medida em
que se trata, abertamente, de impostura. A realidade é que não há
globalização da sociedade, da economia, da condição humana. Não
há globalização da regulação política, do Estado, das
instituições democráticas assegurando garantias e exercendo um
controle sobre as decisões que afetam as diversas regiões e
populações do mundo, isto no interesse geral.
O que "a gente de Davos"
construiu nestes últimos trinta anos não foi uma economia
globalizada, mas o arquipélago capitalista mundial de ilhas -
grandes ou pequenas - onde estão concentradas as capacidades
científicas e tecnológicas mundiais (mais de 92% dos gastos de
R&D do mundo, mais de 90% das patentes e da potência informática
instaladas...), a potência financeira, o poder simbólico e da mídia
do tempo presente. Umas trinta cidades representam a
infraestrutura, o cérebro e o coração do arquipélago: Nova
Iorque, Los Angeles, Chicago, São Francisco, Detroit, Miami,
Toronto, Montreal, Houston, Londres, Paris, Frankfurt, Munique,
Stuttgart, Ruhr, Ranstad holandês, Copenhague, Milão, Roma,
Madrid, Barcelona, Estocolmo, Tóquio, Osaka, Nagoya, Xangai, São
Paulo, Hong Kong, Cingapura... Encontra-se aí localizados os
principais centros de negócios do mundo, os núcleos das redes de
comunicação e de informação, os assentos sociais das maiores
multinacionais industriais, financeiras e comerciais. A liberalização,
a desregulamentação, a privatização, a competitividade
apertaram os laços entre elas mais do que entre elas e o resto do
mundo. A famosa "aldeia global" é apenas o arquipélago.
A "gente de Davos" diz
que a inovação que conta é gerada e produzida nestas ilhas, das
quais algumas foram elevadas ao nível de paradigmas a
universalizar (tal que Silicon Valley [Vale do Silício]...).
Segundo eles, estas ilhas estão na origem da "nova sociedade
da informação" e estariam parindo a "sociedade do
conhecimento", o universo da riqueza desmaterializada, os
novos saberes. Daí, a única opção realista para as outras regiões
do mundo seria a de tentar, a qualquer preço, agarrar-se a uma
das ilhas do arquipélago na esperança de tornar-se em seguida
parte integrante. Aqueles que não conseguem articulação serão
– diz a "gente de Davos" – inevitavelmente
abandonados, não serão nem mesmo periferia mas estarão
"fora do futuro". A alfabetização "internáutica"
torna-se, para eles, uma passagem obrigatória para o
estabelecimento de passarelas e pontes para o arquipélago. Por
esta razão, a construção de canais e redes do ciberespaço
torna-se, em qualquer lugar, uma das prioridades maiores ainda
mais importantes que a criação de torneiras de água potável
das quais, no entanto, mais de dois bilhões de pessoas têm
atualmente necessidade vital.
Re-apropriar-se do devir,
juntos. O objetivo prioritário há vinte/trinta anos: o Welfare
mundial por uma nova representação política e controle da
produtividade.
Hoje, as lutas sociais, "cidadãs"
mais significativas e duras pelo mundo tratam do acesso à vida,
às fontes de vida, para satisfazer necessidades individuais e
coletivas de base para a existência. Tratam da ocupação,
utilização e distribuição da terra, do direito de
alimentar-se, de ter acesso à água potável, de aquecer-se.
Tratam da habitação, habitat digno de seres humanos. Tratam do
direito ao trabalho, das condições de trabalho, do nível dos
salários e, mais geralmente do direito a uma renda digna de um
"cidadão". Concernem os direitos das crianças (Convenção
Internacional de 1989) e em particular, os direitos de organização
e educação das crianças para o trabalho, assim como o direito
de greve e as liberdades sindicais cada vez mais restritas pelo
fechamento de empresas frente às quais os poderes públicos se
declaram de mais a mais impotentes. Tratam do acesso aos cuidados
de saúde e a uma educação de base para todas e todos. Tentam
defender o direito à existência e à assistência mínima em
caso de doença, acidentes e às condições para viver uma
velhice razoável. Tratam da democracia, a vida em comum, o
respeito e reconhecimento dos direitos humanos elementares dos
imigrantes, refugiados. Devem tratar, ainda freqüentemente
demais, da liberação da mulher e da igualdade dos direitos entre
o homem e a mulher. Tratam, enfim, da proteção do meio ambiente
e do direito das gerações futuras de herdar um planeta vivível.
Pelo conjunto destas lutas, é forçoso
constatar que a prioridade das prioridades para a enorme maioria
da população mundial retorna ou permanece (na aurora do III milênio!)
o direito à vida, à cidadania civil social e política.
O Welfare para todos, em todos os níveis,
é o grande desafio das sociedades nos trinta próximos anos. E
como no fim do século XIX, as lutas pelo Welfare nacional
trataram do controle da representação política (batalhas pelo
sufrágio universal direto e pela autodeterminação das "nações")
e da produtividade (oposição cada vez mais organizada entre
capital e trabalho), assim como neste começo de novo século, as
lutas pelo Welfare mundial se traduzem pela pesquisa de uma nova
política em escala local e mundial tanto quanto por uma nova
regulação mundial da redistribuição dos lucros da
produtividade.
A "primeira planetária"
tira sua razão histórica – ideológica e política – destes
dois campos de luta.
A "primeira planetária":
o campo da representação política
É preciso reconstituir o político,
o que significa reconstruir a representação política de escala
local em escala mundial. A representação política nascida no
curso dos séculos XVI ao XX encontrou sua referência (enquanto
fundamento, legitimação e tema), além das múltiplas ambigüidades
e contradições, na "nação", no "povo" daí
o conjunto dos conceitos e das práticas em torno do Estado,
soberania, independência, autodeterminação, unidade...
A elaboração de um corpus
legislativo nacional, a organização do Estado em âmbito
nacional (dito central) e comunitário (dito local), a criação
de parlamentos, a constituição de movimentos e partidos políticos
no quadro do Estado-Nação, o sufrágio universal direto, a
constituição de sindicatos e organizações de interesse deram
um enquadre no interior do qual dinâmicas múltiplas e
diversificadas de representação política puderam se manifestar
e se desenvolver.
Há uns trinta anos, a representação
política está "em crise", "prorrogada",
"em questão" e nossas sociedades estão em busca de
novas respostas dentre as quais a da "governabilidade mundial
sem estado pelas redes mercantis auto-reguladas" parece, por
enquanto, ir de vento em popa, o que constitui uma evolução
particularmente perigosa.
A luta por uma "outra
globalização" passa, por conseqüência, prioritariamente
pela definição de um novo fundamento, tema, legitimação do político
e da representação política. A comunidade mundial (o povo do
mundo) deve representar o papel exercido, até o presente, pela
"nação". Para este fim, é indispensável fazer
emergir a consciência e a prática da realidade da globalização
da condição humana ao redor de dois pólos:
- a existência de bens comuns
mundiais (a água, o ar, o planeta, os oceanos, o capital biótico,
o conhecimento, a música, a arte...)
- a segurança comum (não há
sociedade sem divisão e sem gestão cooperativa da
segurança coletiva).
É tempo de elaborar e promover uma
nova narração da sociedade e do mundo a partir da qual se possa
fundar e desenvolver o político da globalização e da representação
política correspondente.
A "primeira planetária"
tem como tarefa prioritária prática agir enquanto
"movimento" com vistas a fazer nascer a nova narração
e implantar os elementos constitutivos da política da globalização.
Nova antropologia e nova
"maneira de pensar" o mundo e a história: pouco importa
os títulos. O essencial é reconhecer que o devir dos
encaminhamentos das sociedades não são necessariamente os
dominantes atualmente.
Numerosas associações, organizações,
ONGs exprimem, cada uma a sua maneira, esta vontade e exigência
da "primeira planetária":
- o Observatório da Globalização;
o Fórum das Vilas e Cidades do Mundo; a iniciativa pelo Contrato
Mundial da Água (e suas associações nacionais e redes de
parlamentares); as marchas mundiais das crianças trabalhadoras e
das mulheres; o Fórum Mundial das Alternativas; o International
Forum on Globalisation; o Third World Network ; Anistia
Internacional; Handicap International; Oxfam; Médicos sem
Fronteiras;
- para citar apenas algumas das ações
empreendidas no plano internacional nos últimos anos. Estas
ensaiam os que poderiam se tornar os atores do
"movimento".
Enquanto o âmbito
"nacional" (os Estados-Unidos, o Japão, a Rússia, a
China, a Índia, o Brasil, a França, o Egito, o Irã, a Itália,
a Austrália etc) permanece – pelo menos em uma perspectiva de
20 a 30 anos ainda - o verdadeiro nível de organização de uma
representação política (que se quer, nos nossos países
"ocidentais", democráticos) mesmo amputada, diminuída,
é impensável poder conceber uma organização da política da
globalidade fazendo economia do "nacional". Neste
sentido, uma estratégia de re-internacionalização democrática
da sociedade mundial se reveste de certa validade. O que não
exclui, entretanto, que o desenvolvimento da política da
globalização não comporte no fim uma modificação estrutural
do papel do nacional e da democracia representativa nacional. Daí,
uma estratégia de globalização democrática da política é
inevitável. Para este fim, o papel maior deve ser representado
pelos sindicatos de agricultores e trabalhadores. Estes carregam
por enquanto uma grande responsabilidade na fraqueza ou na ausência
da política em âmbito mundial. Mas eles estão
"despertando". Esta globalização não significa o
desaparecimento ou a desvalorização dos outros lugares e campos
de representação política que são o local (a cidade, a
comunidade rural), o "regional" (a Lombardia, o País de
Gales...), o nacional, o continental (a Europa, por exemplo). Mais
ela é democrática, mais a globalização da política funda-se
sobre uma valorização-cooperação destes múltiplos lugares. É
num contexto desregrado no plano político e dominado pela lógica
dos mercados que estes lugares (e sua população) existem em
competição encarniçada entre si pela sobrevivência.
Uma das passagens obrigatórias da
construção de uma globalização democrática da política é o
desarmamento financeiro, isto é, retirar do financeiro o poder
que nossos dirigentes lhe outorgaram nestes vinte e cinco últimos
anos de política, notadamente, é desapropria-lo de suas
prerrogativas e de seu papel para atribuir ao financeiro o exercício
de poderes de decisão e de controle em matéria de alocação de
recursos e da redistribuição dos lucros
da produtividade.
Restabelecer a primazia da política
sobre o financeiro é a primeira ação concreta, necessária e
indispensável do movimento da "primeira planetária" a
conduzir em plano mundial. É indispensável que a luta iniciada
pela ATTAC se torne uma luta ativa em todos os continentes,
qualquer que seja o nome que ela tomará nos diversos países.
A primeira planetária: o campo
da produtividade
A luta pelo financeiro é essencial
uma vez que influencia as decisões em matéria de alocação dos
recursos existentes, produzidos e redistribuídos. O financeiro no
quadro da globalização atual, o desenvolvimento da tecnologia ao
impor a lógica da oferta tecnológica para melhor avançar sobre
o plano da competitividade pelo preço, pela qualidade, pela
variedade e pela flexibilidade. A tecnologia não é colocada a
serviço das necessidades da sociedade, mas antes de tudo a serviço
da maximização da rentabilidade financeira do capital investido.
A oferta tecnológica não tem outro mestre senão a utilidade
para o capital. Tudo o que não contribui para o aumento do valor
do capital não é produtivo. Então, não há valor. Logo, pode
ser abandonado ou ignorado. Esta "lei", afirma-se,
aplica-se a tudo: a uma mercadoria, a um processo de produção
tanto quanto a um serviço, um "recurso humano". Um
emprego não rentável não tem direito à existência. Uma política
fiscal distributiva tem apenas pouco sentido. Uma educação não
instrumentalizada pela necessidade da eficácia econômica é um
luxo. A produtividade tem apenas uma legitimidade: a do valor do
capital. Todo acordo social e negociação sobre a redistribuição
dos lucros da produtividade constituem um peso decisório marcado
por grande ineficiência. A produtividade faz parte do reino do
capital e não da democracia. Sua ética encontra legitimação
concreta e justa na e pela competitividade e o sucesso do melhor e
não dos 51% que podem decidir tudo respeitando os direitos da
minoria ou das minorias (49%).
A "primeira planetária"
significa definir as formas e os conteúdos da produtividade com
relação a outros parâmetros dos quais o mais importante é a
promoção da riqueza comum, a saber, os bens e serviços necessários
e indispensáveis à existência e ao desenvolvimento humanamente
dignos para o conjunto da população mundial.
Uma das passagens obrigatórias
desta luta pelo controle mundial da produtividade é representada,
numa economia que se funda cada vez mais sobre o conhecimento e o
imaterial, pelo direito à propriedade intelectual e à privatização
correspondente ao conhecimento (através de patentes). Deixar ao
capital financeiro e industrial o controle da definição das
normas e regras de gestão dos direitos de propriedade intelectual
em escala mundial constitui um erro maior por parte dos
mantenedores do Estado democrático representativo e do Estado do
Welfare. É urgente redefinir o direito de propriedade intelectual
estabelecendo os princípios de direito de propriedade intelectual
comum e de gestão/divisão mútua dos conhecimentos.
Como as lutas sociais dos séculos
XIX e XX trataram do salário e das taxas de lucro do capital, o século
XXI verá realmente afirmar-se uma luta pela apropriação dos
conhecimentos e pela promoção de bens e serviços comuns
mundiais (contra o retorno das privatizações). Aqui igualmente,
uma grande responsabilidade caberá aos sindicatos. Espera-se que
os sindicatos do imaterial (da educação, dos serviços públicos,
das mídias...) operem de maneira mais sólida e eficaz sua
reconversão e globalização. A "primeira planetária"
oferece-lhes esta oportunidade.
Estes dois "campos" de
lutas da "primeira planetária" inscrevem-se, bem
entendido, no contexto mais vasto e de mais longo termo, nos âmbitos
onde devem se operar a construção concreta de uma "outra
globalização" conforme uma "outra ordem do dia das
prioridades, das quais a segurança coletiva mundial (em todas as
suas dimensões), a desnuclearização, a desmilitarização e a
paz constituem os elementos fundamentais.
Tradução de
Mirian Giannella
______________
* Este
texto retoma – e desenvolve – a trama do documento Expropriés
du monde, construisons ensemble une "autre globalization"
assinado por Riccardo Petrella, Charles-André Udry e Christophe
Aguiton e que constituiu um dos documentos de base de "L'Autre
Davos". Encontra-se
o documento em duas partes, in F. Houtart et F. Polet, L'Autre
Davos. Globalization des résistances et des luttes, l'Harmattan,
Paris, 1994, pp. 33-39 et pp. 76-81
1.
Por "a gente de Davos" entendo as classes dirigentes do
"Norte" (notadamente), mas também do "Sul"
que – em todos os domínios – professam na sua ação
cotidiana o credo da globalização inevitável e irresistível
fundada sobre as regras da liberalização, da desregulamentação,
da privatização, da competitividade e da dupla primazia do
financeiro e da tecnologia.
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