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Questões sobre Bioética*

Volnei Garrafa
PAINELISTA


O mundo, nos últimos quarenta ou cinqüenta anos, evoluiu mais do que em toda a sua história até então. Nurenberg foi um momento de divisão, onde o mundo passou a refletir sobre a necessidade de que certos parâmetros morais e éticos fossem transformados. A Declaração de Nurenberg é datada de 1948. Posteriormente, surgiu a Declaração de Helsinque, em 1963, extremamente importante, e foi sucedida por novas declarações, novos adendos de conferências da Associação Médica Mundial na área da qualidade de vida para os seres humanos deste planeta.

Aproveitarei este Fórum para fazer uma denúncia. Nosso País, felizmente, mantém uma postura da maior dignidade, pelo menos nesse campo. Está sendo orquestrada, em nível internacional, uma modificação da Declaração de Helsinque, considerada uma tese vencedora no campo da cidadania e dos direitos humanos. Está marcada para outubro deste ano uma conferência da Associação Médica Mundial, a Assembléia Médica Mundial, em Israel, Jerusalém, da qual estão sendo organizadas reuniões preparatórias com propostas de modificações sutis, mas substanciais, nessa Declaração. As modificações se operam pela via da necessidade, por meio de pesquisas que estão sendo desenvolvidas contra a AIDS — a Síndrome da Imuno Deficiência Adquirida. Mais de quatorze mil variedades de AIDS estão vindo por aí, e o mundo realmente está assustado com isso. Países como a Tanzânia tiveram, dramaticamente, a sua expectativa média de vida ao nascer diminuída em quinze anos desde 1985. Foram feitos quinze ensaios clínicos, denunciados por Peter Loore, um grande investigador norte-americano que não é da área acadêmica, mas sim — e isso surpreende — da área de defesa dos direitos humanos e da cidadania, para tratar da prevenção vertical da AIDS, da mãe gestante para o feto, futuro filho. Esses quinze ensaios — quinze diferentes pesquisas — usaram, na maioria deles, placebo — para quem não sabe, é uma substância inócua. A Declaração de Helsinque prega que o placebo só pode ser utilizado em situações nas quais não há nenhuma outra terapêutica. Hoje já se tem prevenção sabida para o feto, por meio de terapêutica para a mãe grávida.

O que estão querendo modificar na Declaração de Helsinque? Querem determinar que países diferentes recebam desenhos metodológicos de pesquisas também diferentes, ou seja, querem dizer que a diferença entre as pessoas deve ser caracterizada. Ora, as mulheres, a partir dos anos 50; os negros, dos anos 60; os homossexuais, dos anos 70; têm mostrado e clamado para o mundo que o conceito de diferença não significa inferioridade. Diferente é ser uma coisa diferente, mas não desigual. Essa tentativa de mudança da Declaração de Helsinque, fortemente ancorada por laboratórios multinacionais, que querem fazer pesquisa para vender mais medicamentos, poderá trazer uma substancial mudança na questão da cidadania e dos direitos humanos para o próximo século. Penso que o Brasil deve ficar alerta. Felizmente, o Grupo da DST/AIDS, do Ministério da Saúde do Brasil, está frontalmente contra, mas somos uma voz muito pequena num contexto de uma massificação econômica na área dos medicamentos. Essa pesquisa está sendo aceita na Tailândia, em Uganda, mas no Brasil não, e, por isso, estamos sendo criticados.

A Bioética é uma nova disciplina; surgiu como um verdadeiro movimento cultural no início dos anos 70. Da mesma forma que o movimento ecológico surgiu nos anos 60, em defesa da preservação da natureza, a Bioética veio para defender a qualidade da vida humana, mas não como a dos norte-americanos: dentro dos hospitais, uma Bioética clínica, exclusivamente intro-hospitalar. Na visão planetária do seu criador, Von Werner Potter, que escreveu o livro A bridge to the future (Uma ponte para o futuro), a Bioética está relacionada com a qualidade de vida da espécie humana, inter-relacionada com a flora, a fauna e o ecossistema. Uma visão extremamente global, a qual chamamos de Bioética global. Esse tema, infelizmente, foi deixado de lado até novembro do ano passado.

No IV Congresso Mundial de Bioética, realizado em Tóquio, no Japão, o Núcleo de Estudos de Bioética da Universidade de Brasília, o qual tenho a honra de coordenar, tratou de levar a questão da Bioética por esse caminho da Bioética global. Mandamos dois trabalhos para o Congresso Mundial no Japão, no ano passado, e tivemos os mesmos, felizmente, classificados entre os trinta que serão publicados nos Anais do Congresso Nacional, mostrando que estamos trabalhando seriamente, com muito afinco, nessa área.

A visão de Potter foi recuperada nesse Congresso no Japão: a Bioética não deve ser clínica. A Bioética pequena, tacanha, ainda é representada pela corrente hegemônica, o principialismo, pautada em quatro únicos princípios basicamente importantes, mas limitados, quais sejam: a autonomia, a não-maleficência, a beneficência e a justiça.

A Bioética não é um modismo que chegou de uma hora para outra e sobre a qual qualquer um que leia meia dúzia de páginas começa a escrever. Infelizmente, por não haver em nosso País conselhos editoriais rigorosos, acaba-se possibilitando tais publicações. No último número do Jornal do Conselho Federal de Medicina, com uma tiragem de 300 mil exemplares, há um texto sobre Bioética, na página "Ponto de Vista", escrito por um desembargador de Porto Alegre, que é uma seqüência de "asneiras".

A Bioética tem um estatuto epistemológico; é uma disciplina que já requer um rigor acadêmico; deve ser estudada com afinco e tem hoje mais de dez correntes. O nosso núcleo da UnB trabalha com a corrente contextualizada: cada situação tem de ser analisada dentro do seu contexto.

Trabalhamos com a irreversibilidade do pluralismo moral. O Brasil, felizmente, nesse aspecto, é generoso. Apesar das nossas discrepâncias gritantes no campo social, lutamos por um pluralismo religioso, social, político, ideológico, moral e sexual, dentre outros. Temos ainda muito preconceito contra o homossexualismo, contra a questão dos direitos iguais das mulheres no mercado de trabalho; somos racistas, sim, de uma forma velada; cínicos, quando vamos discutir temas como o aborto e a eutanásia — principalmente o aborto, que dizima mulheres pobres, mas que permite que ricas façam os seus em clínicas ricas da zona sul do Rio de Janeiro — e temos posto essa sujeira debaixo dos nossos tapetes. Está na hora deste País adquirir coragem cívica e democrática por meio da Bioética, que é uma disciplina pluralista, para discutirmos corajosamente, e dentro do bojo de toda a sociedade, e que sobressaia a proposta da maioria.

As boas leis feitas nos países democráticos são aquelas que espelham a moralidade da população. Não como aquela lei imbecil feita, arrogantemente, pelo Senado brasileiro há dois anos, a lei da doação presumida de órgãos, que combatemos veementemente desde o começo. Não que a lei não seja boa — é boa demais — mas para daqui a trinta anos. O Senador Lúcio Alcântara sabia que a sociedade brasileira não iria aceitar o princípio da doação presumida, que ela não iria querer ser presumivelmente doadora. O resultado está aí: 60% a 70% dos cidadãos de São Paulo, da Bahia e do Rio Grande do Sul estão optando por ser não-doadores. Os senadores, arrogantemente, votaram essa lei sem consultar a sociedade civil organizada. A Câmara dos Deputados havia feito isso na Comissão de Seguridade Social e da Família, onde essa questão tinha sido aprovada por unanimidade, com o relato do Deputado Carlos Mosconi, do PSDB de Minas Gerais. O Senado, simplesmente, não aceitou o projeto da Câmara, votou e aprovou essa lei desastrosa que está em descompasso com a moralidade da sociedade brasileira e atrasando a doação de órgãos no País, pelo menos, por duas décadas. Se a lei tivesse sido positiva, com o "sim" do doador nas carteiras de identidades, estaríamos hoje com 60% a 70% de doadores no País. Esses erros têm culpados, sim. Isso custa muito dinheiro e, mais do que dinheiro, vidas. Temos de começar a responsabilizar as nossas instituições democráticas pela pressa com que têm votado e discutido essas questões. A Bioética tem de ser democratizada, pois vem para trabalhar de forma pluralística essas questões. O importante é que o Direito uma-se a essa área, pois é um dos pilares da Bioética, juntamente com a Filosofia. Devemos analisar isso não de uma forma superficial, mas com a profundidade e o rigor científico que essa nova disciplina requer.

Um dos grandes teóricos da Bioética, o médico e filósofo norte-americano Hugo Tristan Herenger Rad Júnior, da Universidade de Winston, no Texas, é autor de um grande livro: Foundation of Bioethics (Fundamentos da Bioética), publicado em português pela Editora Loyola, dos padres jesuítas. Ele é brilhante ao dizer que, no mundo de hoje, temos de conviver com estranhos morais. No dizer de Herenger, temos amigos morais — pessoas da mesma moralidade — e inimigos morais — aquelas de moralidade diferente. Jugen Habermas, o grande filósofo alemão, diferentemente de Herenger, apregoa que os conflitos devem ser discutidos até a exaustão para se chegar a um consenso. Mas alguns conflitos morais dos tempos atuais não serão resolvidos pela discussão. Para Herenger, conflitos absolutos ou extremos entre estranhos morais não têm solução, e a única solução para temas como o aborto, sobre o qual jamais teremos uma opinião universal, é aprender a viver com tolerância. Entre estranhos morais, sejamos tolerantes. Essa é uma das grandes pautas da Bioética.

A Bioética trabalha com o campo dos princípios e também com o campo das virtudes. No campo da virtude, temos de abordar temas como o da solidariedade — não como a Comunidade Solidária, que a D. Ruth Cardoso está conduzindo, na qual uma idéia maravilhosa do Herbert de Souza — nosso falecido Betinho —, que estava transformando a solidariedade numa ética prática e concreta, deixando-nos incômodos nas esquinas das nossas avenidas, onde as crianças vem nos pedir esmolas — foi transformada em "quilo de arroz e de feijão para pobre", vulgarizando o conceito de solidariedade. Solidariedade é diferente de compaixão, de acordo com o que disse Hanna Harendt e com o que já dizia Nietzche. Para estes, a compaixão só existe quando os dois sujeitos são iguais — quem dá e quem recebe — senão não é compaixão. Quem ganha é aquele que dá, porque está eternizando as diferenças. O passo adiante da compaixão é o passo da solidariedade, e esse campo das virtudes que a engloba é fundamental para essas áreas que temos de ver nesse porvir.

Um outro tema, fundamental para o assunto que estamos tratando, é o da prudência. A Bioética apregoa que, diante do desconhecido e da dúvida, devemos caminhar com prudência. As posições fechadas só devem ser escolhidas no momento em que há uma absoluta segurança sobre tudo aquilo de novo que está sendo inserido em nossa sociedade. Este País está sendo irresponsável ao discutir, da forma como está discutindo, unilateralmente, a questão dos transgênicos. Temos no País duas grandes comissões: a CTNBio, do Ministério da Ciência e Tecnologia, exclusivamente formada por "deuses", sem dúvida, os melhores "deuses do Olimpo". Não é uma crítica à competência, à capacidade das pessoas que compõem essa Comissão, muito pelo contrário. São pessoas pelas quais eu me rendo e aplaudo, só que comissões com essa responsabilidade, no mundo moderno, têm de ser obrigatoriamente pluralísticas, e não compostas exclusivamente por um único setor da sociedade, por mais capacitado que seja. O Ministério da Saúde foi um pouco mais sábio: criou a Comissão Nacional de Ética na Pesquisa com Seres Humanos, da qual tenho a honra de fazer parte, cujo presidente é um grande brasileiro, o Sr. Willian Saado Rochiner, Professor Titular da Universidade de São Paulo, já aposentado. Nessa Comissão, a sociedade civil organizada está representada, por exemplo, pelo Jornalista Mário Scheffer, representante dos grupos da AIDS em São Paulo, uma das pessoas mais profícuas e mais úteis; pelo Artur, representante do Morhan, o grupo defensor dos hansenianos, que tem trazido subsídios fundamentais para nossa Comissão. Há padres, freiras e uma pluralidade de opiniões.

Sociedade democrática é aquela que procura, nas suas decisões coletivas, a voz de toda a sociedade. Não são os "cientistas-deuses" que vão dizer para as pessoas, as quais julgam inferiores, aquilo que devam ou não fazer. Os cientistas e os médicos têm um poder técnico, adquiriram um saber técnico, mas confundem, muitas vezes, esse saber com poder moral, para decidir pelos outros o que é bom ou ruim. A sociedade que tem de decidir o que é bom ou ruim para ela.

O eminente Professor italiano Giovanni Berlinguer recebeu o título de Doutor Honoris Causa da Universidade de Brasília e Cidadão Honorário de Brasília. Qualquer "pé-de-chinelo" que ganha o título de Cidadão Honorário de Brasília sai na Coluna do Gilberto Amaral ou nessas inúteis colunas sociais. Berlinguer, Presidente do Comitê Nacional de Bioética da Itália, um País onde o Comitê é tão importante que é ligado diretamente ao Primeiro-Ministro, passou despercebido. Todos os países europeus têm comitês nacionais de Bioética plurais, ligados à Presidência da República ou ao Primeiro-Ministro. Todos os anos, em dezembro, eles se reúnem num país diferente para elaborar normas comuns para a Comunidade Européia. Nós, aqui, não temos nada. Temos apenas essa Comissão do Ministério da Saúde, pequena e restrita ao seu poder e à CTNBio.

Temos de fazer um apelo à Presidência da República, mas não o que o Senador Lúcio Alcântara está fazendo mais uma vez no Senado. Esse Senador, que já foi da Arena, depois foi para o PDT do Brizola e agora está no PSDB, que fez a Lei da doação presumida, está propondo uma Comissão Nacional de Bioética dentro de uma Comissão do Senado, onde os nomes terão de passar pelo crivo do Presidente do Senado. Isso é piada. Essa comissão tem de surgir do Poder Executivo e estar ligada ao Gabinete Civil da Presidência da República. O Presidente da República tem de pedir a assessoria dessa comissão para todos os grandes temas nacionais. Antes desse tema entrar nos diversos ministérios ou ir para discussão no Congresso Nacional, o Presidente da República tem de receber, em mão, o parecer de uma grande comissão pluralista, formada por grandes juristas, por grandes jornalistas, por cientistas, pelas diversas religiões, pela sociedade civil organizada — pela democracia.

A Sociedade Brasileira de Bioética está à disposição para ajudar nesse conserto, sendo, também, laica, sem partido político e visando exclusivamente à questão da pluralidade dentro da sociedade.

Essas coisas devem ser tratadas com pressa e ao mesmo tempo com prudência: esse é o desafio. O nosso País não pode continuar sem uma Comissão Nacional responsável por temas de tamanha importância. Felizmente, temos algumas iniciativas, como esta do Superior Tribunal Justiça, que traz um pouco de luz.

Engelhardt diz que o mundo de hoje, com tamanhas novidades, tem vários compartimentos — as nossas salas mentais —, onde temos pouca iluminação moral. Não sabemos muito bem qual é a decisão moral melhor para essa ou aquela situação. Engelhardt pregou ainda que, frente a campos de moralidade, ainda não muito claros, infelizmente, não temos a chave do interruptor para ligar a luz moral e iluminar todas as salas. Temos de, com muita prudência, ir colocando devagarinho, por meio da discussão, da construção democrática, um pouquinho mais de luz moral nesses campos que são tão pouco ou mal iluminados pela própria novidade, rapidez e velocidade do desenvolvimento científico e tecnológico. Por isso, a questão da virtude da prudência é extremamente importante.

A Bioética trabalha em dois campos: com o das situações persistentes — de exclusão social, racismo, discriminação da mulher no mercado de trabalho, abandono de velhos, crianças, aborto e eutanásia, temas esses que vêm desde o Velho Testamento; e com o das situações emergentes. O Curso de Especialização em Bioética da UnB se pauta totalmente dentro desses dois vieses, os quais estabelecemos como nosso paradigma.

Infelizmente, muitas pessoas têm confundido a Bioética com novidades, com um projeto de normas, com a Engenharia Genética, com a Biotecnologia. A Bioética brasileira, basicamente, é a da exclusão social. A pauta da Bioética internacional, hoje, tem dois grandes temas: por um lado, a exclusão social, e, pelo outro, a Engenharia Genética, especialmente no que se refere aos transgênicos. A Bioética é uma nova disciplina, obrigatoriamente multidisciplinar. Essa é uma das suas grandes vantagens, porque quem trabalha em Bioética tem de ser prudente, humilde, pois cada um sabe o pedacinho do seu contexto. A Bioética tem, obrigatoriamente, de beber água nas fontes da Filosofia; do Direito; da Antropologia; da Teologia; da Economia; das Ciências da Saúde; das Ciências Biológicas; da pesquisa etc. Não há bioeticista completo.

O neologismo que estão tentando implantar, chamado "Biodireito", é um aleijão. Se a Bioética já veio como uma nova disciplina e requer um pouco de cada uma e a sua grande força é a multidisciplinaridade, imaginem se começam com a Biofilosofia; a Bioeconomia; a Biomedicina; a Biobiologia; a Biopsicologia? Não é essa a concepção. Há o perigo de usar esse modismo — que é francês, para variar, mas isso não significa que a França não esteja trabalhando seriamente. Nos países que estão atuando seriamente nessa área — a Inglaterra, por exemplo —, o grande tema é Bioética e Direito, Bioethics and Law. Essa questão, ao ser reduzida, ficará compartimentalizada, e não é essa a idéia inicial. Faço um apelo para as pessoas que estão querendo colocar a palavra "Biodireito" na rua que pensem duas ou três vezes. Se "Biodireito" significar o Direito trabalhando as questões biotecnológicas, concordo, mas, se significar o "Biodireito" com respeito à Bioética, discordo flagrantemente e digo que isso é uma impureza conceitual e um erro metodológico e epistemológico grave. Se estão colocando isso na rua, é porque não leram direito todas as bases da Bioética. A confusão da Bioética com o tema das questões persistentes é um perigo. A Bioética é mais ampla, é global, tem de abordar a vida como um todo. Refere-se à vida interplanetária, na qual a questão da biossegurança, da biodiversidade e de todos esses sistemas são da maior importância.

Assim como o motor a vapor foi o grande veículo de impulsão econômica do século XIX; assim como a informática foi o grande veículo de impulsão econômica do século XX; a Biotecnologia e a Biotecnociência serão indubitavelmente o grande veículo de impulsão econômica do início do século XXI. Isso envolve muito dinheiro. Na semana em que Dolly foi clonada no Rosing Institute, na Escócia, as ações na Bolsa de Valores da Grã-Bretanha do Rosing Institute foram lá em cima.

Nessa questão de transgênicos e de bioderivados, no Brasil, há o poder econômico por trás. Um grama de ouro, hoje, custa doze dólares no mercado internacional. Para obter um grama de ouro temos de ir a Serra Pelada, abrir buraco, brigar com garimpeiro. É um trabalho complicado. Se tenho uma salinha de quatro por quatro, se tenho inteligência e instrumentais, vou fabricar clorofila bruta. Um grama de clorofila bruta custa, no mercado internacional, de seiscentos a setecentos dólares, enquanto o ouro vale doze dólares. Um grama de clorofila purificada custa vinte mil dólares. Alfa e betacaroteno, de três a seis mil dólares.

Alguns jornais publicaram a denúncia feita por um pesquisador da Fiocruz — ex-aluno da UnB, para muita honra nossa —, de que empresas norte-americanas estão tentando vender DNA de índios suruís e caritianas, de Rondônia, no mercado internacional, pois trata-se de uma matéria-prima da maior importância para a fabricação de novos imunoderivados e de novas vacinas. É muito fácil ensinar a qualquer menino de doze a catorze anos, em três ou quatro horas, num laboratório, a tirar DNA de núcleo. O DNA é a essência da vida. Só que o nosso DNA já é miscigenado, e o dos suruís — que são remanescentes — ou o dos caritianas — que são cento e quarenta resistentes e estão se acabando por falta de interesse do Estado, da Funai e pela entrada desses grupos estrangeiros — são extremamente valiosos. De quem é o DNA do Pedro Caritiano ou da Maria Suruí? É do Pedro ou da Maria? É do feiticeiro da tribo? Do cacique? Do Governador de Rondônia? Do Presidente da Funai? Do Presidente Fernando Henrique Cardoso? De Deus? É da natureza? Estão patenteando a vida das pessoas.

Transformam tudo em mercadoria hoje em dia. A reserva biológica que o nosso País tem na nossa Amazônia tem um potencial econômico extraordinário. E na lei das patentes também fomos permissivos, até mais atrasados que a Argentina. Confundimos descoberta com invenção. Permitimos que a planta transformada geneticamente, a coisa mais simples de se fazer, possa ser patenteada. Descoberta é o que está na Natureza e não pode ser patenteada; invenção é aquilo inventado, podendo ser patenteada. Hoje, com as técnicas de Engenharia Genética, um cientista transforma uma plantinha que tinha duas folhas em uma com três; ela deixa de ser uma descoberta e passa a ser uma invenção; porque inventou aquela com três folhinhas, ele a patenteia.

O Brasil está-se abrindo demais. Temos de ter cuidado, porque a nossa grande reserva não está na Serra Pelada, no ouro, nos metais ou no ferro de Minas Gerais, mas sim na nossa Natureza e temos de defendê-la, com prudência, com tolerância, mas com muita firmeza. Não temos o direito de fechar o nosso País ao progresso do mundo, mas também não temos o direito de escancará-lo, como fizemos com americanos que foram pegar o DNA dos índios suruís e carintianas, deles tirando dez centímetros cúbicos de sangue em troca de espelhinhos. Os portugueses chegaram aqui em 1500 e ludibriaram os índios com espelhinhos e com o tiro de Caramuru. Continuam a fazê-lo agora com radinho de pilha e outras coisas. Agora se leva sangue, não mais o pau-brasil. Um leucócito, um único glóbulo branco é suficiente para se tirar o DNA e duplicá-lo. E depois alguém o coloca na geladeira, o deixa em nitrogênio líquido e vai vendê-lo para o resto de sua vida.

Este é o apelo: temos uma reserva extraordinária, e o vetor econômico do século XXI vai ser esse. Temos de trabalhar com muito cuidado e com prudência. Isso não é responsabilidade exclusiva de cientista; é responsabilidade de toda a sociedade brasileira e de um tribunal como o Superior Tribunal de Justiça, que tem tanta importância para o nosso País.


*Texto baseado em notas taquigráficas, não revisado pelo autor.

 

Volnei Garrafa é Professor da Universidade de Brasília e Vice-Presidente da Sociedade Brasileira de Bioética.

 

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