
(Humberto
Maturana)
O
QUE É EDUCAR?
O
educar se constitui no processo em que a criança ou o
adulto convive com o outro e, ao conviver com o outro, se
transforma espontaneamente, de maneira que seu modo de
viver se faz progressivamente mais congruente com o do
outro no espaço de convivência.
O
educar ocorre, portanto, todo o tempo e de maneira recíproca.
Ocorre como uma transformação estrutural contingente com
uma história no conviver, e o resultado disso é que as
pessoas aprendem a viver de uma maneira que se configura
de acordo com o conviver da comunidade em que vivem. A educação
como “sistema educacional” configura um mundo, e
os educandos confirmam em seu viver o mundo que viveram em
sua educação.
Os
educadores, por sua vez, confirmam o mundo que viveram ao
ser educados no educar.
A
educação é um processo contínuo que dura toda a vida,
e que faz da comunidade onde vivemos é um processo contínuo
que dura toda a vida, e que faz da comunidade onde vivemos
um mundo espontaneamente conservador, ao qual o educar se
refere. Isto não significa, é claro, que o mundo do
educar não mude, mas sim que a educação, como sistema
de formação da criança e do adulto, tem efeitos de
longa duração que não mudam facilmente. Há duas épocas
ou períodos cruciais na história de toda pessoa que têm
conseqüências fundamentais para o tipo de comunidade que
trazem consigo em seu viver. São elas a infância e a
juventude. Na infância, a criança vive o mundo em que se
funda sua possibilidade de converter-se num ser capaz de
aceitar e respeitar o outro a partir da aceitação e do
respeito de si mesma. Na juventude, experimenta-se a
validade desse mundo de convivência na aceitação e no
respeito pelo outro a partir da aceitação e do respeito
por si mesmo, no começo de uma vida adulta social e
individualmente responsável.
Como
vivermos é como educaremos, e conservaremos no viver o
mundo que vivemos como educandos. E educaremos outros com
o nosso viver com eles, o mundo que vivermos ao conviver.
Mas
que mundo queremos?
Quero
um mundo em que meus filhos cresçam como pessoas que se
aceitam e se respeitam, aceitando e respeitando outros num
espaço de convivência em que os outros os aceitam e
respeitam a partir do aceitar-se e respeitar-se a si
mesmos. Num espaço de convivência desse tipo, a negação
do outro será sempre um erro detectável que se pode e se
deseja corrigir. Como conseguir isso? É fácil: vivendo
esse espaço de convivência.
Vivamos
nosso educar de modo que a criança aprenda a aceitar-se e
a respeitar-se, ao ser aceita e respeitada em seu ser,
porque assim aprenderá a aceitar e a respeitar os outros.
Para fazer isso, devemos reconhecer que não somos de
nenhum modo transcendentes, mas somos num devir, num contínuo
ser variável, mas que não é absoluto nem
necessariamente para sempre. Todo sistema é conservador
naquilo que lhe é constitutivo, ou se desintegra. Se
dizemos que uma criança é de certa maneira boa, má,
inteligente ou boba, estabilizamos nossa relação com ela
de acordo com o que dizemos, e a criança, a menos que se
aceite e se respeite, não terá escapatória e cairá na
armadilha da não aceitação e do não respeito por si
mesma, porque seu devir depende de como ela surge – como
criança boa, má, inteligente ou boba – na sua relação
conosco. E se a criança não pode aceitar-se e
respeitar-se não pode aceitar e respeitar o outro. Vai
temer, invejar ou depreciar o outro, mas não o aceitará
nem respeitará. E sem aceitação e respeito pelo outro
como legítimo outro na convivência não há fenômeno
social. Vejamos o que é aceitar e respeitar a si mesmo.
Há
alguns dias uma amiga me contou uma conversa que teve com
a sua filha, pedindo minha opinião. Seu relato foi o
seguinte: “Tive uma conversa com minha filha (Juanita,
de 8 anos) que me disse: - Mamãe, você não me conhece.
– Que isso, Juanita, como não te conheço? – Mamãe,
você não conhece porque não sabe que sou uma pessoa
feliz e livre”. Ao escutar esse relato, minha reflexão
foi a seguinte: “Minha amiga, acho que compreender o que
Juanita quis dizer quando falou que é feliz é
relativamente fácil, e não tenho mais nada a dizer sobre
isso. É sobre o que é ser livre que quero dizer algo.
Juanita não fala a partir da razão, mas a partir da emoção.
E, a partir da emoção, o que ela disse é que não se
sente culpada por seus atos. Para que ela não se sinta
culpada por seus atos, ela tem que vivê-los em sua
legitimidade, porque não se sente negada em sua relação
com você, e se aceita a si mesma. Juanita não pensa e não
sente que tenha que mudar; não pensa nem sente que algo
esteja errado com ela. Ao mesmo tempo, se respeita, e não
pede desculpas pelo que faz; quer dizer, age sem fazer
essa reflexão com base em sua própria legitimidade. Meus
parabéns! Como mãe você é uma pessoa que não nega sua
filha com exigências nem com castigos, e a deixa viver o
seu devir no amor que a constitui como ser social”.
Repito:
sem aceitação por si mesmo não se pode aceitar e
respeitar o outro, e sem aceitar o outro como legítimo
outro na convivência, não há fenômeno social.
Além
disso, uma criança que não se aceita e não se respeita
não tem espaço de reflexão, porque está na contínua
negação de si mesma e na busca ansiosa do que não é e
nem pode ser.
Como
poderia a criança olhar para si mesma se o que vê não
é aceitável, porque assim a têm feito saber os adultos,
sejam seus pais ou professores? Como poderia a criança
olhar para si mesma se já sabe que algo está sempre
errado com ela, porque não é o que deve ser ou é o que
não deve ser? Se a educação chilena não faz com que as
meninas e os meninos chilenos se aceitem e se respeitem,
aceitando e respeitando os demais ao serem aceitos e
respeitados, a educação vai mal, e não serve para o
Chile.
Mas
a aceitação de si mesmo e o auto-respeito não se dão
se os afazeres de uma pessoa não são adequados ao viver.
Como posso aceitar-me e respeitar-me se o que sei, quer
dizer, se meu fazer não é adequado ao meu viver e,
portanto, não é um saber no viver cotidiano, mas sim no
viver ficcional de um mundo distante? Se o pensar que as
crianças do Chile aprendem não é um fazer no espaço da
vida cotidiana da criança no Chile que ela vive, a educação
chilena não serve para o Chile.
Como
posso aceitar-me e respeitar-me se estou aprisionado no
meu fazer (saber), porque não aprendi um fazer (pensar)
que me permitisse aprender quaisquer outros afazeres ao
mudar meu mundo, se muda meu viver cotidiano? Se a educação
no Chile não leva a crianças a fazeres (saber)
relacionados com seu viver cotidiano, de modo que ela
possa refletir sobre seus afazeres e mudar de mundo sem
deixar de respeitar a si mesma e ao outro, a educação no
Chile não serve para o Chile.
Como
posso aceitar-me e respeitar-me se não aprendi a
respeitar meus erros e a tratá-los como oportunidades legítimas
de mudança, porque fui castigado por equivocar-me? Se a
educação no Chile leva a criança a viver seus erros
como negação de sua identidade, a educação no Chile não
serve para o Chile.
Como
posso aceitar-me e respeitar-me se o valor do que faço se
mede pela referência ao outro na contínua competição
que me nega e nega o outro, e não pela seriedade e
responsabilidade com que realizo o que faço? Se a educação
no Chile estimula a competência e a negação de si mesmo
e do outro que a competição traz consigo, a educação
no Chile não serve para o Chile.
É
difícil educar a aceitação e o respeito de si mesmo,
que leva à aceitação e ao respeito pelo outro, assim
como à seriedade do fazer? Não, só que isto requer que
o professor ou a professora saiba como interagir com os
meninos e meninas num processo que não os negue ou
castigue, seja pela forma como eles aparecem na relação,
seja porque não aparecem como as exigências culturais
dizem que deve ser. Esse professor ou professora pode fazê-lo
porque, eles também, respeitam a si mesmo e ao outro.
O
central da convivência humana é o amor, as ações que
constituem o outro como um legítimo outro na realização
do ser social que tanto vive na aceitação e respeito por
si mesmo quanto na aceitação e respeito pelo outro. A
biologia do amor se encarrega de que isso ocorra como um
processo normal se se vive nela.
Mas
como se obtém na educação a capacidade de ajustar-se a
qualquer domínio do conhecer (fazer)? É preciso, por
acaso, saber tudo desde o começo? Não, não precisa
saber tudo desde o começo, mas, sim, é necessária uma
postura reflexiva no mundo no qual se vive; são necessários
a aceitação e o respeito por si mesmo e pelos outros sem
a premência da competição. Se aprendi a conhecer e a
respeitar meu mundo, seja este o campo, a montanha, a
cidade, o bosque ou o mar, e não a negá-lo ou a destruí-lo,
e aprendi a refletir na aceitação e respeito por mim
mesmo, posso aprender qualquer fazeres. Se a educação no
Chile não leva a criança ao conhecimento de seu mundo no
respeito e na reflexão, não serve para os chilenos nem
para o Chile.
Se
a educação no Chile leva a aspirações que desvalorizam
o que nos é próprio, convidando a um pensar distante do
cotidiano na fantasia do que não se vive, a educação no
Chile não serve nem para o Chile nem para os chilenos.
A
ambição pode, ocasionalmente, levar à riqueza ou ao êxito
individual, mas não leva à transformação harmônica do
mundo na sabedoria de uma convivência que não vai gerar
nem pobreza nem abuso.
O
que digo é também válido para a educação do
adolescente. O adolescente moderno aprende valores,
virtudes que deve respeitar, mas vive num mundo adulto que
os nega. Prega-se o amor, mas ninguém sabe em que ele
consiste porque não se Vêem as ações que o constituem,
e se olha para ele como a expressão de um sentir.
Ensina-se a desejar a justiça, mas os adultos vivemos na
falsidade. A tragédia dos adolescentes é que começam a
viver um mundo que nega os valores que lhes foram
ensinados. O amor não é um sentimento, é um domínio de
ações nas quais o outro é constituído como um legítimo
outro na convivência. A justiça não é um valor
transcendente ou um sentimento de legitimidade: é um domínio
de ações no qual não se usa a mentira para justificar
as próprias ações ou as do outro.
Se
a educação média e superior no Chile se fundam na
competição, na justificativa enganosa de vantagens e
privilégios, numa noção de progresso que afasta os
jovens do conhecimento de seu mundo limitando sua
abordagem responsável da comunidade que os sustenta, a
educação média e superior do Chile não serve para o
Chile nem para os chilenos.
Se
a educação média e superior nos convida à apropriação,
à exploração do mundo natural e não à nossa coexistência
harmônica com ele, essa educação não serve nem para o
Chile nem para os chilenos.
Enfim,
a responsabilidade surge quando nos damos conta de se
queremos ou não as conseqüências de nossas ações; e a
liberdade surge quando nos damos conta de se queremos ou não
nosso querer, ou não querer as conseqüências de nossas
ações. Quer dizer, responsabilidade e liberdade surgem
na reflexão que expõe nosso pensar (fazer) no âmbito
das emoções a nosso querer ou não querer as conseqüências
de nossas ações, num processo no qual não podemos nos
dar conta de outra coisa a não ser de que o mundo que
vivemos depende de nossos desejos. Se a educação no
Chile não leva os jovens chilenos à responsabilidade e
à liberdade de serem co-criadores do mundo em que vivem
porque limita a reflexão, a educação no Chile não
serve nem para o Chile nem para os chilenos.
Para
que educar?
Às
vezes falamos como se não houvesse alternativa para um
mundo de luta e competição, e como se devêssemos
preparar nossas crianças e jovens para essa realidade.
Tal atitude se baseia num erro e gera um engano.
Não
é a agressão a emoção fundamental que define o humano,
mas o amor, a coexistência na aceitação do outro como
um legítimo outro na convivência. Não é a luta o modo
fundamental de relação humana, mas a colaboração.
Falamos de competição e luta criando um viver em competição
e luta, e não só entre nós, mas também com o meio
natural que nos possibilita. Assim, dizem que os humanos
devemos lutar e vencer as forças naturais para
sobreviver. Mas não é assim. A história da humanidade
na guerra, na dominação que subjuga, e na apropriação
que exclui e nega o outro, se origina com o patriarcado.
Na Europa, que é nossa fonte cultural, antes do
patriarcado se vivia na harmonia com a natureza, no gozo
da congruência com o mundo natural, na maravilha de sua
beleza – não na luta com ela.
Para
que educar?
Para
recuperar essa harmonia fundamental que não destrói, que
não explora, que não abusa, que não pretende dominar o
mundo natural, mas que deseja conhecê-lo na aceitação e
respeito para que o bem-estar humano se dê no bem-estar
da natureza em que se vive. Para isso é preciso aprender
a olhar e escutar sem medo de deixar de ser, sem medo de
deixar o outro ser harmonia, sem submissão. Quero um
mundo em que respeitemos o mundo natural que nos sustenta,
um mundo no qual se devolva e que se toma emprestado da
natureza para viver. Ao sermos seres vivos, somos seres
autônomos, no viver não o somos.
Quero
um mundo no qual seja abolida a expressão “recurso
natural”, no qual reconheçamos que todo processo
natural é cíclico e que, se interrompermos seu ciclo, se
acaba. Na história da humanidade, os povos que não viram
isso se destruíram no esgotamento de seus chamados
recursos naturais. O progresso não está na contínua
complicação ou mudança tecnológica, mas na compreensão
do mundo natural, que permita recuperar a harmonia e a
beleza da existência nele, com base no seu conhecimento e
no respeito por ele. Mas para ver o mundo natural e aceitá-lo
sem pretender dominá-lo ou negá-lo, devemos aprender a aceitar-nos e a respeitar-nos como indivíduos e como
chilenos.
Uma
educação que não leva os chilenos a aceitar-nos e
respeitar-nos como indivíduos e chilenos, na dignidade de
quem conhece, aceita e respeita seu mundo na
responsabilidade e na liberdade da reflexão, não serve
para o Chile nem para os chilenos.
Jesus
era um grande biólogo. Quando ele fala de viver no reino
de Deus, fala de viver na harmonia que traz consigo o
conhecimento e o respeito pelo mundo natural que nos
sustenta, e que permite viver nele sem abusá-lo nem
destruí-lo. Para isso devemos abandonar o discurso
patriarcal da luta e da guerra, e nos entregarmos ao viver
matrístico do conhecimento da natureza, do respeito e da
colaboração na criação de um mundo que admita o erro e
possa corrigi-lo. Uma educação que nos leve a atuar na
conservação da natureza, a entendê-la para viver com
ela e nela sem pretender dominá-la, uma educação que
nos permita viver na responsabilidade individual e social
que afaste o abuso e traga consigo a colaboração na criação
de um projeto nacional em que o abuso e a pobreza sejam
erros que se possam e se queiram corrigir, esta sim, serve
para o Chile e para os chilenos.
O
que fazer? Não castiguemos nossas crianças por serem, ao
corrigir suas ações. Não desvalorizemos seu saber.
Guiemos nossas crianças na direção de um fazer (saber)
que tenha relação com seu mundo cotidiano. Convidemos
nossas crianças a olhar o que fazem e, sobretudo, não as
levemos a competir. |