
Valor,
forma e conteúdo da riqueza em Marx e em Antonio Negri: uma
diferença sutil, porém essencial
Paula
Bach
Marx
destaca nos Grundrisse: “Se a sociedade tal qual é
não contivesse, ocultas, as condições materiais de produção
e de circulação para uma sociedade sem classes todas as
tentativas de fazê-la surgir seriam outras quixotadas”.
Da compreensão desta citação (em princípio muito abstrata)
pode desprender-se múltiplas interpretações sobre a atual
situação do capitalismo. A Antonio Negri cabe o mérito de ter
posto o foco numa obra da qualidade dos Grundrisse[1]
(após tantos anos de interpretação dogmática do marxismo,
manipulado e deformado pela estreiteza do pensamento
stalinista), em que se fazem poderosas definições como esta e,
por certo, o raciocínio de Negri tem, como ponto de partida,
uma particular interpretação deste conceito. Para dizê-lo de
algum modo, ao meu ver, Negri outorga um valor ilimitado ao
desenvolvimento de ditas “condições materiais de produção
e de circulação para uma sociedade sem classes”, porém, no
contexto mesmo de uma sociedade de classes. Destaco a palavra ilimitado
porque em seu raciocínio essa “ausência de limites” o leva
a saltar sobre a existência de determinadas relações de produção
e, portanto, de determinadas relações de classe. Dita ausência
de limites pareceria estar estreitamente vinculada a seu
abandono explícito da lógica dialética, a que poderíamos
chamar a “ciência” dos “limites” e que está sujeita a
uma série de leis como a interpenetração dos contrários, a
mudança de quantidade em qualidade, o desenvolvimento através
das contradições, os conflitos entre o conteúdo e a forma,
entre outras. Entendo que nas palavras de Marx, citadas acima,
está implícito um conceito fundamental: o das relações de
produção. Determinadas relações materiais de produção e de
circulação, as capitalistas, em nosso caso, contêm ocultas as
relações materiais de produção e de circulação para uma
sociedade sem classes. Todavia, que determinadas relações
materiais de produção contenham ocultas outras condições
materiais de produção significa inevitavelmente um choque, uma
contradição, a interpenetração de contrários que se faz
certamente mais e mais conflituosa, à medida que o capitalismo
sobrevive e, portanto, desenvolve ainda parcialmente as forças
produtivas. Contudo, esta interpenetração se dá sobre a base
da existência generalizada e predominante de determinadas relações
materiais de produção, as capitalistas, cuja existência
depende necessariamente da lei própria do capitalismo, a lei do
valor. E isto, muito além de todas as mediações sob as quais
se manifesta dita lei no capitalismo desenvolvido e mais ainda
em nossos dias.
Coloca-se,
assim, um problema fundamental: uma coisa é que a lei do valor
hoje subsista sob condições de crise, isto é, que resulte
cada vez mais difícil converter em capital adicionado novas
massas de trabalho não paga e outra coisa muito distinta é
afirmar, como o faz Negri, que “... a situação atual nos
permite verificar de maneira irrefutável que a lei da medida
temporal do valor (como os Grundrisse havia previsto) já não
está vigente.”[2]
Isto após indicar que “o raciocínio é, aqui, delicado:
é necessário, em efeito, entender o que significa a lei do
valor. Para mim e para alguns outros (desde os economistas clássicos),
a lei do valor significa a medida do valor.”[3]
Para Negri, então, o valor continua vigente, ainda que não sua
medida. Porém, o que significa isso? Pode o valor tornar-se
incomensurável (muito além das evidentes dificuldades para sua
medição) sem deixar de ser valor propriamente dito? Antonio
Negri considera que deve-se “buscar identificar a natureza
do valor-trabalho do ‘general intellect’, para
compreender, por conseguinte, isso que pode significar um valor
‘fora’ e ‘além da medida’ e também as dimensões e a
intensidade do valor-trabalho no contexto da ‘intelectualidade
de massa’”[4].
Todavia, já neste ponto faz-se necessária uma pergunta: a que
‘valor’ se refere Negri? Não existem, desde o ponto de
vista da crítica da economia política elaborada por Karl Marx,
múltiplos tipos de valor. Em todo caso, existem o valor como
tempo de trabalho socialmente necessário contido nas
mercadorias, o valor de troca como a forma de expressão desse
valor e o valor de uso. No valor que, segundo Negri, hoje
continua vigente, pareceria perder-se a materialidade, isto é,
sua substância. Vejamos isto mais detidamente.
Os
valores de uso são, como disse Marx nas primeiras páginas de O
Capital o conteúdo material da riqueza em qualquer forma de
sociedade. O valor (ou sua forma de manifestação, o valor de
troca) é a forma específica que adquirem os valores de uso sob
as relações de produção capitalistas. Diga-se, que o
conceito de valor em contraposição ao conceito de valor de uso
é próprio e característico de relações de produção
especificamente capitalistas. Dito valor, mesmo quando está
composto de trabalho abstrato (que significa indiferenciado e não
incomensurável), é e somente pode ser definitivamente
concreto. Ou seja, é (e somente pode ser) quantidade de tempo
de trabalho socialmente necessário, substância de valor que
determina o intercâmbio entre as mercadorias[5].
Deste modo, falar da generalização e, portanto, existência do
capitalismo como modo predominante de produção é, segundo
Marx, afirmar a existência de uma sociedade fundada na
contabilidade do tempo de trabalho. Os conceitos capitalismo,
capital, lei do valor e contabilidade do tempo de trabalho são,
por isso, essencialmente inseparáveis no contexto. É
precisamente a contradição crescente entre a produção do
valor associada à efetivação da lei do valor ou a conversão
de trabalho não pago em capital e a produção de valores de
uso, já inserida originalmente na mercadoria, a que gera as
tensões agudas existentes e crescentes no interior do modo de
produção capitalista. É esta contradição entre produção
de valor e produção de valores de uso a que se manifesta, como
uma colisão violenta entre a socialização crescente da produção
e a apropriação privada de seus frutos por um lado, entre a
planificação crescente da produção no interior das unidades
produtivas e a anarquia da produção em seu conjunto.
Mas,
voltando à pergunta anterior, o que significa o conceito
“valor” para Toni Negri no capitalismo hoje? Para ele
significa um híbrido, uma indeterminação absoluta, a
expropriação da “cooperação do trabalho”, mas não sob a
forma de tempo de trabalho e sim sob a forma de um não-valor e
um não-valor de uso. Novos conceitos podem ser válidos,
conquanto sejam capazes de explicar com mais agudeza e, em última
instância, mais concreta a realidade. O caráter abstrato,
indeterminado, não é uma falha e sim uma característica dos
conceitos em sua forma mais pura. Porém, por sua vez, esses
conceitos indeterminados devem ser necessariamente capazes de
preencher-se de conteúdo, de fazer-se concretos para explicar a
realidade como uma estrutura, como uma síntese de múltiplas
abstrações. Creio que Negri, ao abandonar expressamente a dialética[6],
expressão das leis do movimento, acaba outorgando a seu valor
um caráter ideal no sentido de que não pode ser preenchido de
conteúdo para explicar a realidade[7].
Ao deixar de lado a dialética e, portanto, o entendimento da
realidade como interpenetração de contrários Negri aceita em
suma o que poderíamos chamar uma coexistência de contrários
na qual as condições materiais de produção e de circulação
ocultas podem desenvolver-se além dos limites impostos por dita
interpenetração. Neste caminho, em seu raciocínio, a figura
do valor pode separar-se sem mais de seus possibilidades de medição.
Neste
mesmo sentido, creio que Negri confunde o conceito de valor,
como ele o entende, com o conceito de riqueza, tal como colocava
Marx. Ao passar por cima da diferenciação sutil que realiza
Marx entre o conteúdo material da riqueza e o valor como a
forma particular que ela adquire no capitalismo, acaba
transformando o valor em algo ideal no sentido proposta mais
acima[8].
Este raciocínio é o que lhe permite concluir que Marx
prognostica nos Grundrisse a possibilidade de existência
de um capitalismo sem valor-trabalho. Porém, vejamos o que
disse Marx: “Na medida, entretanto, em que a grande indústria
se desenvolve, a criação da riqueza efetiva se torna menos
dependente do tempo de trabalho e do quanto de trabalho
empregados, que do poder dos agentes postos em movimento durante
o tempo de trabalho, poder que por sua vez – sua poderosa eficácia
– não guarda relação alguma com o tempo de trabalho
imediato que custa sua produção, mas sim que depende ainda
mais do estado geral da ciência e do progresso da tecnologia,
ou da aplicação desta ciência na produção (...).”[9]
Se compreendemos que Marx utiliza o termo riqueza não para se
referir a uma suposta riqueza abstrata geral mas sim aos valores
de uso, entenderemos que sua colocação está identificando a
contradição crescente entre a produção de valores de uso e a
produção de valores (ou valores de troca) no marco do
desenvolvimento da grande indústria. Marx continua dizendo que
“a riqueza efetiva se manifesta ainda melhor – e isto o
revela a grande indústria – na enorme desproporção entre o
tempo de trabalho empregado e seu produto (isto é, entre o
valor e os valores de uso, N.doR.), assim como na desproporção
qualitativa entre o trabalho, reduzido a uma pura abstração, e
o poderio do processo de produção vigiado por aquele. O
trabalho já não aparece tanto como recluso no processo de
produção, mas, melhor ainda, o homem se comporta como
supervisor e regulador com respeito ao processo de produção
mesmo (...). O trabalhador já não introduz o objeto natural
modificado, como elo intermediário, mas insere o processo
natural, ao que transforma em industrial, como meio entre si
mesmo e a natureza inorgânica, a que domina. Apresenta-se ao
lado do processo de produção, em lugar de ser seu agente
principal.” Agora, bem: “Nesta transformação o que
aparece como o pilar fundamental da produção e da riqueza não
é nem o trabalho imediato executado pelo homem nem o tempo que
este trabalha, mas sim a apropriação de sua própria força
produtiva geral, sua compreensão da natureza e seu domínio da
mesma graças à sua existência como corpo social; numa
palavra, o desenvolvimento do indivíduo social. O roubo de
tempo de trabalho alheio sobre o qual se funda a riqueza atual,
aparece como uma base miserável comparada com este fundamento,
recém desenvolvido, criado pela grande indústria mesma. Tão
pronto como o trabalho em sua forma imediata tem deixado de ser
a grande fonte da riqueza, o tempo de trabalho deixa, e tem de
deixar, de ser sua medida e, portanto, o valor de troca [deixa
de ser a medida] do valor de uso. O sobre-trabalho da massa tem
deixado de ser condição para o desenvolvimento da riqueza
social, assim como o não-trabalho de uns poucos tem deixado de
sê-lo para o desenvolvimento dos poderes gerais do intelecto
humano. Com isso, se perde a produção fundada no valor de
troca, e ao processo de produção material imediato se retira a
forma da necessidade premente e o antagonismo. Desenvolvimento
livre das individualidades e, por conseqüência, não redução
do tempo de trabalho necessário com vistas a pôr
sobre-trabalho, mas sim, em geral, redução do trabalho necessário
da sociedade a um mínimo, ao qual corresponde então a formação
artística, científica etc. dos indivíduos graças ao tempo
que se torna livre e aos meios criados para todos.”[10]
Nestas
palavras de Marx resulta de fundamental importância compreender
a contraposição que ele instala no processo de transformação.
Marx une o desenvolvimento do indivíduo social ao momento no
qual o pilar fundamental da produção e da riqueza deixa de ser
o trabalho imediato e o tempo de trabalho. Porém, a riqueza
atual, ou seja, a riqueza sob as condições capitalistas de
produção, está fundada precisamente no roubo do trabalho
alheio. No que Marx chama o processo de transformação opera
precisamente essa interpenetração de contrários que falamos.
E neste processo, a riqueza atual não pode abandonar sua forma
a menos que deixe de ser riqueza no sentido especificamente
capitalista, isto é, roubo de trabalho alheio. Por isso, Marx
apresenta como uma clara unidade o processo no qual o trabalho
deixa de ser fonte da riqueza, o tempo de trabalho deixa de ser
medida da riqueza e o valor de troca deixa de ser medida dos
valores de uso. A solução deste processo é a negação do
capitalismo, é o abandono da forma atual da riqueza (roubo de
trabalho alheio) e a substituição por seu conteúdo (valores
de uso), situação esta que, evidentemente, não pode se dar
sob relações de produção capitalistas. Esta diferenciação
é central, posto que é precisamente a dificuldade para
resolver essa contradição a que define cada vez mais o
capitalismo contemporâneo. Porque, se reconhecemos que o tempo
de trabalho expropriado é a única fonte de lucro ou de riqueza
desde o ponto de vista capitalista, compreenderemos o caráter
reacionário inevitável que tem que adotar o capital quando
cada vez menos o tempo de trabalho define a geração de riqueza
em geral (como conteúdo). Que cada vez a criação de riqueza
se torna independente mais e mais do trabalho humano significa
uma redução crescente do conjunto do tempo de trabalho necessário
da humanidade e, portanto, uma crescente criação de tempo
livre. Porém, o capital se constitui de trabalho roubado, então,
como também disse Marx nos Grundrisse: “A criação
de muito tempo disponível – aparte do tempo de trabalho
necessário –, para a sociedade em geral e para cada membro da
mesma (isto é margem para o desenvolvimento de todas as forças
produtivas do indivíduo e, conseqüentemente, também da
sociedade), esta criação de tempo de não-trabalho se
apresenta desde o ponto de vista do capital, igual a todos os
estádios precedentes, como tempo de não-trabalho ou tempo
livre para alguns. O capital, além disso, aumenta o tempo de
sobre-trabalho da massa mediante todos os recursos da arte e da
ciência, posto que sua riqueza consiste diretamente na apropriação
de valor de sobre-trabalho; já que seu objetivo é diretamente
o valor, não o valor de uso. Desta sorte, apesar de tudo, serve
de instrumento para criar as possibilidades do tempo disponível
social, para reduzir a um mínimo decrescente o tempo de
trabalho de toda a sociedade e, assim, tornar livre o tempo de
todos para o próprio desenvolvimento dos mesmos. Sua tendência,
no entanto, é sempre por um lado a de criar tempo disponível,
por outro a de convertê-lo em sobre-trabalho. Se consegue o
primeiro, muito bem, experimenta uma superprodução, e então
se interromperá o trabalho necessário, porque o capital não
pode valorizar sobre-trabalho algum. Quanto mais se desenvolve
esta contradição, tanto mais evidente se torna que o
crescimento das forças produtivas já não pode estar confinado
à apropriação do sobre-trabalho alheio, mas sim que a massa
operária mesma deve apropriar-se de seu sobre-trabalho. Uma vez
que o faça – e por isso o tempo de trabalho disponível
deixará de ter uma existência antitética –, por uma parte o
tempo de trabalho necessário encontrará sua medida nas
necessidades do indivíduo social e por outra o desenvolvimento
da força produtiva social será tão rápido que, mesmo que
agora a produção se calcule em função da riqueza comum,
crescerá o tempo disponível de todos. Já que a riqueza real
é a força produtiva desenvolvida de todos os indivíduos. Já
não é, então, de modo algum, o tempo de trabalho a medida da
riqueza, mas sim o tempo disponível. O tempo de trabalho como
medida da riqueza põe a riqueza mesma como fundada sobre a
pobreza e ao tempo disponível de um indivíduo como tempo de
trabalho e por conseguinte o degrada a mero trabalhador, o
subsume no trabalho.”[11]
Nestas
palavras de Marx fica patentemente expressa a impossibilidade de
que sob o capitalismo a diminuição do tempo de trabalho necessário
se transforme em riqueza social e, portanto, em tempo livre para
a humanidade. A diminuição do tempo de trabalho socialmente
necessário para a produção do conjunto das mercadorias (que
tomado desta maneira inclui também a mais-valia, ou seja, o
trabalho excedente), é essencialmente antitética com a acumulação
do capital fundada na acumulação de trabalho alienado. Na
medida em que historicamente esta tendência se intensifica, a
massa total de trabalho social necessário (entendido como soma
de tempo de trabalho necessário e excedente que não se pode
esquecer que são termos relativos) diminui. O capital, então,
vê-se obrigado, para valorizar-se, a converter parte do
trabalho necessário em trabalho excedente (agora nos referimos
não ao trabalho total mas sim ao trabalho de distintos setores
de trabalhadores). O desemprego crescente poderia ser definido,
assim, como a forma mediante a qual o capital “valoriza” a
diminuição geral do tempo de trabalho convertendo o trabalho
necessário de massas de desempregados em trabalho excedente,
através da superexploração dos trabalhadores empregados. Ou
seja, que o capital converte tempo de trabalho socialmente
necessário em tempo de trabalho excedente. Isto é, uma operação
através da qual substitui salários (trabalho necessário) de
uns por mais-valia (trabalho excedente) de outros.
A
contradição entre forma capitalista da riqueza e conteúdo
material da riqueza é a contradição entre o valor de uso e o
valor. A própria existência do capitalismo depende da
possibilidade de que o conteúdo da riqueza adquira a forma de
valor, isto é, de tempo de trabalho não pago. As relações
capitalistas de produção, a existência da propriedade privada
e a apropriação privada dos frutos da produção são condições
necessárias para a existência dessa forma. É por isso que,
sob condições de produção capitalistas, a riqueza não pode
tornar-se independente de sua forma, ainda que o desenvolvimento
das forças produtivas choque progressivamente com essa forma
revelando a necessidade do conteúdo material da riqueza (os
valores de uso) liberar-se de sua necessária conversão
capitalista à forma de valor. Este choque faz, portanto, como
temos tratado de explicar, o capitalismo cada vez mais reacionário,
já que é parte de sua essência a unidade inquebrantável com
a forma de valor. O único modo possível de liberar o conteúdo
da riqueza de sua forma é através da ruptura da contradição
entre a produção crescentemente social e sua apropriação
privada, assim como da ruptura da contradição entre a
crescente planificação do trabalho nas unidades produtivas e a
anarquia da produção capitalista em seu conjunto. Socialização
da apropriação dos frutos da produção e planificação
social da produção são as únicas vias possíveis para
liberar o conteúdo da riqueza material (a produção de valores
de uso) de sua forma especificamente capitalista, o valor.
Socialização e planificação da produção somente podem ser
conseguidas através da expropriação dos meios de produção
das mãos da burguesia. Esta é a única via possível para
liberar a riqueza social de sua forma de valor, para converter o
tempo de não-trabalho em tempo realmente livre para os
trabalhadores, para, em definitivo, liberar progressivamente a
humanidade da pesada carga do trabalho para que a medida da
riqueza seja verdadeiramente o tempo disponível e para
desenvolver efetivamente as necessidades do indivíduo social.