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Direitos
Humanos em Transição
Nilmário Miranda
A luta pelos
direitos humanos no mundo e no Brasil encontra-se em plena
transição: depois de cinco décadas dedicadas quase que
exclusivamente aos direitos humanos civis e políticos, começamos
agora a priorizar a dimensão econômica, social e cultural dos
direitos humanos.
A análise desse
movimento, que fazemos a seguir, tem por referência a evolução
dos instrumentos do direito, sobretudo o internacional,
vis-a-vis os episódios que têm influído nessas mudanças. A
referência ao direito internacional se justifica pelo fato de
os direitos humanos terem seus princípios compartilhados por
instituições e ativistas de todo o mundo. Tais princípios
constituem no mais efetivo parâmetro do processo civilizatório,
dimensionado pela existência de uma opinião pública mundial
nessa área, de tal forma que em qualquer país que ocorra uma
grave violação, ela repercutirá imediatamente em muitos
outros países, sendo impossível ignorar as pressões
decorrentes, que se manifestam tanto por meio de governos quanto
por entidades civis. Em outras palavras, os direitos humanos são
universais e inscritos em declarações, pactos e tratados
internacionais.
O mais importante
desses diplomas é, sem dúvida, a Declaração Universal dos
Direitos Humanos. Ao longo dos 50 anos de sua existência,
comemorados em 1998, a prioridade foi sem dúvida para os
direitos civis e políticos, a ponto de se confundirem com a própria
noção de direitos humanos. Sua edição se deu sob o impacto
das trágicas experiências totalitárias, acompanhadas de genocídio,
racismo e intolerância. Antes da II Guerra Mundial, 90% das vítimas
das guerras eram militares. A partir da II Guerra, a proporção
se inverteu, com 90% de civis como vítimas. Essa inversão
estava na mente dos que redigiram a 4ª Convenção de Genebra,
destinada a assegurar o direito à vida dos civis não
envolvidos diretamente nos conflitos armados. As três outras
Convenções de Genebra trataram de garantir os limites da
guerra entre as forças armadas em confronto. Assim se instituiu
o Direito Internacional Humanitário, em vigor até hoje,
apoiado nos tribunais internacionais ad-hoc para crimes de
guerra (Nuremberg e Japão e, mais recentemente, o da ex-Iuguslávia).
Os direitos civis e
políticos, agrupados no Pacto Internacional dos Direitos Civis
e Políticos (PIDCP), são constituídos pelo direito à
igualdade perante a lei; os direitos dos presos; a proibição
da tortura, da escravidão; o direito a um julgamento justo com
a presunção da inocência; o direito de ir e vir, a liberdade
de opinião, de pensamento e de religião; o direito à vida
privada, de reunir-se pacificamente, de associar-se e de
participar da vida política. Tais princípios foram sendo
consagrados em convenções e pactos internacionais,
acompanhados de orgãos de monitoramento. A Anistia
Internacional estruturou-se para fiscalizar a implementação da
Declaração Universal, ao lado de outras entidades civis que
foram sendo criadas em todo o mundo.
A instalação do
Tribunal Penal Internacional Permanente vem agora, no final do
milênio, coroar o processo de universalização dos direitos
humanos, constituindo-se em instrumento para garantir a
primazia, no Direito Internacional Público, dos direitos
humanos sobre o direito interno, quebrando a impunidade para os
crimes de genocídio, lesa-humanidade e agressão. O episódio
do processo contra o general Augusto Pinochet consolidou essa
universalização.
Desde a Conferência
Internacional de Viena, em 1993, vem sendo reafirmada a
indissociabilidade dos direitos humanos e a recusa da prioridade
dos direitos civis e políticos como primeira etapa. O evento
tornou-se um marco da consciência da importância do Pacto dos
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais como fundamento ético,
base para denúncias e combustível para a busca de caminhos
alternativos para a humanidade superar a iniqüidade e a injusta
distribuição das riquezas, do poder e do saber.
Ao fracasso das
ideologias que preconizaram o crescimento econômico ilimitado
como meio de superar a pobreza, quer pela via do socialismo
real, quer pelo neoliberalismo, sucedeu-se o reconhecimento da
Declaração Universal e dos pactos que lhe sucederam como referências
para a instauração de um sistema global de segurança econômica,
social e cultural, estendido aos pobres e às gerações
futuras.
O modelo estava
evidentemente exaurido. Após décadas de crescimento, os
problemas se agravaram: o desemprego estrutural estimado em 1,2
bilhões de pessoas, a desintegração das sociedades africanas,
o intolerável trabalho infantil para 300 milhões de crianças,
a superexploração de recursos naturais, as dívidas externas
impagáveis esmagando as nações do Sul, a liberdade absoluta
para o fluxo de capitais em detrimento de interesses nacionais e
grupos populacionais, entre outros problemas, representam hoje
um legado desse modelo falido.
Com o fim da
polarização entre Leste e Oeste e a emergência dos efeitos
perversos da globalização econômica, principalmente nos países
periféricos, ficou mais evidente que, se não vigirem os
direitos humanos econômicos, sociais e culturais, os próprios
avanços nos direitos civis e políticos ficarão comprometidos,
com o crescimento da violência, da xenofobia, do racismo, da
intolerância e do autoritarismo. Por outro lado, o crescimento
da demanda por recursos naturais e o dever humano para com
nossos descendentes impulsionaram a consciência ambiental e
disseminaram o conceito de desenvolvimento sustentável,
enriquecendo o conceito de direitos humanos econômicos.
Nos próximos anos
questões como perdão das dívidas dos países pobres, proposta
pela Igreja Católica no chamado Jubileu da Dívida; a taxação
em cerca de 1% dos recursos das transações financeiras
internacionais para aplicação no combate à miséria,
conhecida como Taxa Tobin; outras idéias de constituição de
fundos mundiais para erradicar a fome, combater o desemprego, o
trabalho infantil e outras mazelas decorrentes das desigualdades
em escala global, passam a integrar a agenda da comunidade
internacional. Essa conjuntura demanda a imediata reorganização
da Organização das Nações Unidas (ONU) e dos demais
organismos multilaterais. Não há hoje no mundo mecanismos
objetivos para combater a marginalização dos grupos e populações
vulneráveis e para garantir os direitos das futuras gerações.
A referência para o
desafio que se coloca, pois, são os direitos humanos integrados
no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais, o qual estabelece um nível essencial para a
dignidade da pessoa humana como responsabilidade dos Estados, da
comunidade dos Estados e das autoridades públicas
internacionais.
Constituem os
Direitos Econômicos o direito à alimentação, de estar livre
da fome, o direito a um padrão de vida mínimo, com vestuário
e moradia, o direito ao trabalho e aos direitos trabalhistas. São
Direitos Sociais no Pacto o direito à seguridade social das famílias,
mães, crianças, idosos, os serviços de saúde física e
mental. Por direitos culturais entende-se o direito à educação,
de participar da vida cultural e de beneficiar-se do progresso
científico, assim como o direito das minorias étnicas e
raciais, de gênero, orientação sexual etc.
Institucionalização
dos direitos humanos
A ratificação pelo
Brasil dos dois Pactos - de Direitos Civis e Políticos e o de
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais -, ambos de 1966 e
decorrentes da Declaração Universal dos Direitos Humanos, foi
tardia. Só em 1992, sete anos após o fim do regime militar, os
dois foram ratificados. Antes, porém, a Constituição Federal
de 1988 incorporara todos os princípios da Declaração
Universal. A nova Constituição ostenta hoje os fundamentos de
nossa política para os direitos humanos. Podemos afirmar,
portanto, que os princípios da defesa dos direitos humanos em
vigor no nosso ordenamento jurídico são de elaboração
recente, incorporados num momento de retomada da ordem democrática.
O problema é que a Constituição condicionou a implementação
dos direitos a leis regulamentadoras. Daí a lenta implementação.
A institucionalização
dos direitos humanos no nosso País teve outros revezes. Por
duas vezes, em 1987 e 1991, a Mesa da Câmara dos Deputados
arquivou projetos de resolução para criar uma Comissão
Permanente de Direitos Humanos, revelando o desprezo reinante
entre as elites sobre o tema. O Poder Executivo, por sua vez, não
dispunha de organismos específicos com a função de defender e
difundir os direitos humanos.
A legislatura
1991-95 do Congresso Nacional abrigou importantes iniciativas
relacionadas aos direitos humanos, tais como a Comissão Externa
dos Desaparecidos Políticos, as CPIs do Exermínio de Crianças,
do Sistema Penitenciário, da Pistolagem, da Violência contra a
Mulher, da Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. Elas
resultaram da maior sensibilização e organização da
sociedade civil para a temática dos direitos humanos,
compelindo o Parlamento a discuti-la e a buscar o eqüacionamento
dos fenômenos que investigaram. Foi intensa a participação de
grupos e organizações não-governamentais de direitos humanos
nesse processo.
Mas o Poder
Legislativo Federal não dispunha, nessa ocasião, de foro específico
e habilitado para receber e encaminhar denúncias de violações,
promover o debate e atuar de modo articulado com as instituições
públicas e a sociedade civil nessa área. O tratamento, dessa
forma, era fragmentado e disperso, impossibilitando o acúmulo
de matéria crítica que resultasse em propostas com ampla
legitimidade, capazes de transformar anseios em conquistas.
Em 1995 foi afinal
criada a Comissão de Direitos Humanos na Câmara dos Deputados.
Num primeiro momento, ela atuou em sintonia com o então
ministro da Justiça, Nelson Jobim, oferecendo ao Parlamento uma
gama de proposições legislativas. Paulatinamente, foram sendo
aprovadas a Lei de reparação às famílias dos mortos e
desaparecidos políticos; a que instituiu o rito sumário na
reforma agrária; a que tipificou o crime de tortura, a que
transferiu da Justiça Militar para a Justiça comum a competência
sobre os crimes dolosos perpetrados por policiais militares, além
da ratificação de diversos tratados internacionais relevantes
para os direitos humanos. Para se ter uma idéia da rapidez com
que foram institucionalizados os direitos humanos no Poder
Legislativo nos últimos cinco anos, em 1995, quando foi criada
a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, só
havia esses colegiados em cinco Assembléias Legislativas. Em
1999 já são 25, além de centenas de comissões criadas em Câmaras
Municipais de todo o País.
A Comissão de
Direitos Humanos tornou-se o desaguadouro das inúmeras denúncias
trazidas pela sociedade ao Parlamento, permitindo uma resposta
imediata diante de violações que, de outra forma, ficariam
algumas sujeitas à incerta criação de CPIs e outras - a
maioria - ignoradas nos escaninhos burocráticos. O Congresso
Nacional dotou-se, então, de um instrumento capaz de exercer
sua função fiscalizadora com a agilidade e amplitude que essa
área exige. O poder que tem a Comissão de Direitos Humanos de
cobrar providências e soluções é um poder moral, um poder
político, pois não dispõe do poder coercitivo. Cabe mencionar
também sua influência na tramitação de projetos relacionados
aos direitos humanos, que tem sido importante no sentido de
agregar informações e o apoio de segmentos da sociedade civil.
No âmbito do Poder
Executivo, foi criada em 1995, a Secretaria Nacional de Direitos
Humanos, sendo o advogado ligado aos direitos humanos José
Gregori designado para ocupar o cargo. Em 1999 o órgão foi
fortalecido com sua transformação em Secretaria de Estado. Em
maio de 1996 foi lançado pelo presidente da República o
Programa Nacional de Direitos Humanos, com predomínio para os
direitos civis e políticos, para orientar as ações do Estado.
Em 99 foi aprovada lei instituindo o Programa Nacional de Proteção
de Vítimas e Testemunhas, e o Governo Federal reconheceu a
jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos no
Brasil. O Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, do
Ministério da Justiça, passou a ser mais atuante, tendo
participado das investigações sobre grupos de extermínio no
Acre, Espírito Santo, Rio Grande do Norte e Amazonas.
Hoje há Ouvidorias
de Polícia em seis estados. Há Conselhos Estaduais de Direitos
Humanos instituídos por leis com a participação de organizações
não-governamentais em vários estados. Todos criados
recentemente. O Brasil passou a admitir a inspeção por comissões
internacionais de verificação do cumprimento dos compromissos
internacionais e fez o relatório à ONU em 1996 sobre o
cumprimento do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos.
Em todo esse
processo, alianças políticas incomuns se estabeleceram,
movidas pelo compromisso com os direitos humanos e não por
alianças político-eleitorais. Os organismos e gestores do
Estado vinculados às políticas públicas encontraram, no
Congresso Nacional, uma parceria crítica mas eficaz com setores
da oposição ao próprio governo. A maioria da base do governo
federal não tem demonstrado interesse ou compromisso com o avanço
dos direitos humanos, ao contrário da oposição de esquerda,
com uma tradição de atuação nessa área. Essa singularidade
também evidencia a natureza universalizante dos direitos
humanos para além de fronteiras não só territoriais, como políticas
e, até certo ponto, ideológicas.
Embora inegáveis os
avanços na luta pelos direitos humanos no Brasil, é evidente a
enorme distância entre os avanços institucionais e a prática
real. Por exemplo: apenas dois policiais foram condenados por
tortura nestes dois anos de vigência da lei que tipificou essa
prática ignóbil. Ninguém é condenado por racismo. Não
conseguimos produzir alterações de vulto nas estruturas da
segurança pública. Como se sabe, as polícias civil e militar,
bem como o sistema penitenciário, são da alçada da autoridade
estadual, o que significa que avanços e retrocessos estão ao
sabor dos esforços de cada governo e da capacidade da sociedade
civil local em apresentar as demandas nesse setor.
A comunidade
internacional reconheceu os avanços nos direitos humanos no
Brasil, mas condena as dificuldades de implementação dos seus
princípios na prática. A ONU premiou o secretário de Direitos
Humanos José Gregori por ocasião do Cinqüentenário da
Declaração Universal dos Direitos Humanos. Em contrapartida,
na mesma oportunidade o Governo da França atribuiu seu
prestigioso prêmio à professora e sindicalista Luzia Canuto,
herdeira da luta de seu pai, João Canuto, assassinado em 1985
em Rio Maria-PA, um crime até hoje impune.
Convivemos com a
tortura nas delegacias, a superlotação das cadeias e presídios,
a crescente violência nos centros urbanos, a violência no
campo (com destaque para o Sul do Pará, o Paraná e
Pernambuco), a violência policial, a extrema precariedade e
insuficiência das instituições para internação de
adolescentes infratores, entre outras violações de direitos
civis. No entanto, no tocante aos direitos mais diretamente
ligados ao Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais o
atraso é ainda maior. Se o Brasil até hoje não fez o relatório
à ONU sobre o cumprimento do Pacto é porque o atual governo não
tem um programa de implementação dos direitos econômicos,
sociais e culturais.
Embora detentor de
um PIB de US$ 800 bilhões, nosso País possui 85 milhões de
pessoas situadas abaixo da linha de pobreza, percebendo menos de
R$ 132 mensais, o que provocará um retrocesso nas próprias
conquistas de direitos civis e políticos se nada fizermos. Os
piores índices de violência estão relacionados à miséria e
ao desemprego. A taxa de homicídios é elevadíssima nos bolsões
de pobreza das regiões metropolitanas. A taxa brasileira, alta
se comparada a outros países, é de 25/100 mil habitantes.
Vejamos agora alguns índices de regiões metropolitanas: na
Grande São Paulo, a taxa é de 140/100 mil em Diadema, 97,3/100
mil no Embu, 88,5/100 mil em Itapecerica da Serra. No Grande
Rio, os municípios de Duque de Caxias, Itaboraí, Belford Roxo,
São João de Meriti, Niterói e Nilópolis detêm taxas 3 vezes
maiores que a média nacional.
O Estado brasileiro
destina pouco de seus serviços e subsídios aos pobres. A rede
de proteção social existente gasta pouco e mal os escassos
recursos orçamentários, freqüentemente contingenciados pela
conveniência dos ajustes ditados pelo FMI. A obediência cega
aos padrões de ajuste fiscal monetarista obscurece a
sensibilidade para o essencial. Em agosto de 1999, enquanto vários
centros de internação de adolescentes infratores eram cenários
de rebeliões, fugas com reféns e incêndios, em protesto
contra a superlotação e os maus-tratos, as autoridades econômicas
de Brasília ordenavam o contingenciamento dos parcos R$ 18 milhões
previstos no Orçamento Geral da União para o setor.
Contudo, reverter a
miséria não é apenas uma utopia. É, sim, possível, obter
resultados concretos e em pouco tempo, se houver vontade política
e mobilização social nessa direção. Estudo do IPEA demonstra
que, com R$ 37 ao mês por pessoa, o patamar de R$ 132 é alcançado
para todos os brasileiros. Projetos de renda mínima e
bolsa-escola, no bojo de uma reforma tributária capaz de
reduzir as desigualdades sociais, pode produzir resultados
concretos em pouco tempo.
A emergência dos
direitos econômicos, sociais e culturais como direitos humanos
está sendo absorvida pelas ONGs e instituições públicas da
área no Brasil. A Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos
Deputados elegeu, como lema de 1999, "Sem direitos sociais
não há direitos humanos". A IV Conferência Nacional de
Direitos Humanos, realizada em maio de 1999 com 300 entidades de
todo o país, decidiu priorizar a dimensão econômica, social e
cultural dos direitos humanos, inclusive produzindo um relatório
da sociedade civil, um "contra-relatório", a ser
entregue à ONU, como meio de pressão ao Governo Federal, para
que ele saia afinal de sua condição de inadimplente e
apresente o seu relatório, com a análise da situação atual e
suas metas.
Essa prioridade alçou
o movimento pelos direitos humanos para o centro da agenda política
do país. Enfrentar a gravíssima crise social é, sem dúvida,
o principal desafio político do momento. Mesmo para os que têm
demonstrado desprezo ou desinteresse pela questão. Tanto que o
forte declínio da popularidade do presidente da República já
inspirou até políticos conservadores a propor políticas
sociais para erradicar a pobreza. Eis, portanto, o traço mais
marcante da conjuntura dos direitos humanos: os direitos econômicos,
sociais e culturais passam ao primeiro plano.