Direitos Humanos no mundo hoje

Direitos Humanos é o tema
das páginas centrais deste mês que trazem a entrevista do
professor mineiro Antônio Augusto Cançado
Trindade,vice-presidente da Corte Interamericana de Direitos
Humanos, com sede na Costa Rica. Respeitável especialista no
assunto, Antônio Cançado fala sobre a atual situação dos
Direitos Humanos no mundo e destaca a importância da defesa dos
direitos fundamentais do homem.
JORNAL DO ADVOGADO - Como o senhor vê a situação atual dos
Direitos Humanos no mundo, na América Latina e mais
especificamente no Brasil?
ANTÔNIO AUGUSTO CANÇADO - Em termos gerais têm ocorrido avanços
no campo dos direitos civis e políticos, com a conquista ou a
reconquista das liberdades clássicas, direitos de liberdade de
expressão, liberdade de associação e outros. Por outro lado,
vem ocorrendo uma preocupante deterioração dos direitos econômicos
e sociais. Creio que todos nós, que atuamos no campo da proteção
dos Direitos Humanos, temos que partir necessariamente de uma
visão holística, que os considerem em seu conjunto como todos
os direitos interrelacionados - sejam civis, políticos, econômicos,
sociais e culturais. É necessário que se faça um esforço
especial em relação à proteção dos segmentos mais pobres,
mais vulneráveis da população nos diferentes países, não só
de nosso continente.
JA - O senhor vê alguma mudança na questão dos Direitos
Humanos antes e depois da globalização?
ANTÔNIO AUGUSTO CANÇADO - Vejo uma série de contradições em
relação ao que se chama de globalização. Por um lado o mundo
tornou-se mais transparente no sentido do direito à informação,
mas, por outro lado, constata-se uma preocupante concentração
de renda em escala mundial, que leva à marginalização de
amplos segmentos da população, esta talvez a contradição
mais evidente que se pode verificar em nossos dias e que é um
reflexo daquilo que eu mencionava antes, de avanços em relação
a uma categoria de direitos e retrocessos em relação a outros.
Eu creio que nós devemos encarar o ser humano de uma maneira
integral, nós não podemos separar as diferentes áreas em que
ele atua e temos necessariamente que tomar em conta a totalidade
dos seus direitos. Na verdade, o que existe em nossa época é
um processo de transformação, gerada pelas facilidades das
comunicações. Mas o que nós chamamos de globalização não
é necessariamente a mesma coisa, é um processo de concentração
de renda e
de aumento da exclusão social. Isto é totalmente diferente da
revolução das comunicações. Como as duas coisas ocorrem ao
mesmo tempo, há uma confusão entre elas. Eu creio que, em
nossos dias, em razão desta contradição,
há uma necessidade de se afirmar a perene importância dos
direitos civis e políticos que continuam tendo a mesma relevância
que tiveram em épocas anteriores, acrescida da necessidade
premente de se reverter o atual quadro de
aumento da exclusão e da marginalização social e de se buscar
uma maior vigência dos direitos econômicos, sociais e
culturais.
JA - Então para o senhor os Direitos Humanos não envolvem só
as questões da tortura, das violações, também são uma questão
do direito à saúde, direito à educação?
ANTÔNIO AUGUSTO CANÇADO - Exatamente. Eu creio que o Direito
à vida não é somente a privação arbitrária da vida, mas
também as condições de vida. Todos os Direitos Humanos para
todos é o único caminho seguro a seguir. Então, o direito ao
trabalho, à saúde, à educação são igualmente importantes
como os direitos à liberdade de expressão, de locomoção, de
associação. Todos os direitos para todos.
JA - Gostaríamos que relatasse o caso que o senhor foi chamado
a julgar na Rússia.
ANTÔNIO AUGUSTO CANÇADO - Eu estive como consultor do Conselho
da Europa em um caso relativo à Rússia, em 1995, sobre o
ingresso daquele país no Conselho da Europa, para tornar-se
parte na Convenção Européia. O Conselho da Europa
consultou dois juristas, um europeu e outro não europeu. O
representante da Europa foi o então diretor do Instituto Max
Planck. E a questão que se colocou era avaliar se a Convenção
de Minsk sobre Direitos Humanos, de 1995, poderia conflitar
com a Convenção Européia de Direitos Humanos. Nós demos os
nossos pareceres - que foram acatados pela Assembléia
Parlamentar do Conselho da Europa e, para a minha satisfação,
a Federação Russa foi admitida como Estado membro do
Conselho da Europa e hoje é parte na Convenção Européia de
Direitos Humanos.
Recordo-me que, na época, muitos pensavam que a Rússia poderia
baixar os padrões de proteção dos Direitos
Humanos do Conselho da Europa. Eu me opus a essa posição, e
disse que a preocupação não deveria ser essa, se a
Rússia vai ou não baixar os padrões de proteção, mas auxiliá-la
para que elevasse seus próprios padrões de
proteção, trazendo-a para dentro do Conselho da Europa e não
excluindo-a, a exemplo do que ocorreu com Cuba, no
nosso sistema interamericano.
JA - Como se inicia um processo sobre violação dos Direitos
Humanos?
ANTÔNIO AUGUSTO CANÇADO - A aplicação dos Direitos Humanos
é realizada de três formas: denúncias, relatórios e
investigações. Para iniciar um processo são necessários
alguns pré-requisitos, como o prévio esgotamento dos recursos
de
Direito do país, as petições não podem ser anônimas
(aceita-se em determinados casos o uso das iniciais do nome), não
pode
haver processos em diversas organizações ao mesmo tempo e a
petição deve ser fundamentada nos termos internacionais dos
Direitos Humanos. Para que um caso seja levado à Corte, ele
passa antes por uma análise e, se as objeções do Estado não
forem
aceitas, o caso prospera.
As Cortes Interamericana (instituída em 1976), e Européia (em
1953) são os únicos tribunais que podem proferir
decisões de caráter jurídico, emitindo a sentença para que a
Justiça do país a faça cumprir. Para assegurar a
execução das sentenças no âmbito do Direito interno, alguns
Estados preferem o concurso da via judicial interna
(Corte Suprema de Justiça do país), enquanto outros preferem o
mecanismo do Poder Executivo (comissão ou comitê
interministerial).
JA - Que tipo de casos são julgados pelas cortes
internacionais?
ANTÔNIO AUGUSTO CANÇADO - Há uma grande diferença nos casos
de Direitos Humanos julgados nas duas cortes.
Noventa por cento dos processos na Corte Européia dizem
respeito a condições de detenção ou garantias do devido
processo
penal, enquanto na Corte Interamericana a maior parte dos casos
é sobre o direito à vida, julgando-se processos como
matanças, torturas e desaparecimentos forçados. O grau de
intervenção vai depender da gravidade do caso.
JA - É grande o volume de trabalho desses organismos?
ANTÔNIO AUGUSTO CANÇADO - Até o início dos anos 90, mais de
15 mil casos já haviam sido resolvidos, tanto no sistema
europeu como no interamericano. Não avançamos muito no que diz
respeito aos Direitos Humanos porque eles dependem da
adoção de medidas eficazes no plano nacional, do Direito
Interno. É necessário que os três poderes do Estado
proporcionem a
aplicação efetiva dos Direitos Humanos. As normas
internacionais não são conhecidas pelos próprios juízes que
se preocupam
apenas com a Constituição de seu país.
Posso dar como exemplo desta realidade um caso que ocorreu, em
1996, na Venezuela, quando 16 pescadores
foram mortos pela polícia costeira porque não obedeceram à
ordem de parar seus barcos. As ONGS que os
representavam solicitaram, além das indenizações às famílias,
mudanças no Código de Justiça Militar do país. As
mudanças nas leis militares do país não foram aceitas pela
maioria da Corte, que alegou que o pedido não constava
no processo. Eu fui o único que votou pela mudança e discordo
dos meus companheiros até hoje. A Venezuela
cumpriu a sentença e pagou devidamente todas as indenizações,
mas a Justiça Militar inocentou todos os acusados.
Eu acredito que, para garantir os Direitos Humanos, deve-se
acabar com a origem da violação.
JA - A que se deve a situação precária da defesa dos Direitos
Humanos no mundo?
ANTÔNIO
AUGUSTO CANÇADO - Há uma grande barreira representada
pela não ratificação de seis das 72 convenções dos Direitos
Humanos: pactos dos direitos econômicos, sociais e culturais;
civis e políticos; convenção contra tortura; direitos
da criança, discriminação racial e contra a mulher.
Estas convenções são prioritárias e era preciso que
fossem ratificadas até o ano 2000, o que não será alcançado,
já que faltam ainda cerca de 60 a 70 países para ratificá-las.
Se não houver uma ratificação universal destas convenções,
ocorrerá uma fragmentação dos Direitos Humanos.
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